sábado, 28 de julho de 2012

Os nós dos dedos esfolados

Becos sem saída - Tuca e Farofa


III
baitasar
Quando chegam, dona Clara já espera pela aventureira, foi avisada pelos gêmeos. A Tuca fugiu na noite dos estouros e vagou perdida, até àquela hora da tarde — Coitada... — ela tem estrela, Manualdo teve destino. E a Cariciosa tem idade de moça para correr atrás do bicho assustado.
A moça patroa está acompanhada do marido, o delegado Calçacurta. O encontro foi simples, nada de muitas emoções, tudo muito contido — Obrigado, Maria.
—        Veja se isso tem razão de agradecer.
—        Mesmo assim, obrigado.
—        O que aconteceu, senhora? — as duas se olhavam como nunca antes haviam enxergado uma da outra — Os fogos de ontem, as duas ficaram enlouquecidas.
—        Esses bichos não aguentam.
—        Quando abri uma das janelas para ver os fogos, essa me pula e sai correndo pelo jardim até achar passagem. — todos falam palavras de indignação, em voz alta davam o dito das explosões e estrondos dos fogos recheados de brilho e sonhos, pelo não dito, toda a beleza virara queixume — Todo ano, é uma gastadeira despropositada de dinheiro.
—        As explosões a deixaram em pânico.
—        Em desespero, Maria... todo ano é assim.
—        Coitadinha... — Fiquei numa angústia, a minha filhinha perdida por essas vilas, com esses cachorros vira-latas soltos, por aí.
É isso mesmo dona Clara, esses vileiros são criados soltos feito bezerros. Esses bichos são a escória dos vira-latas. Têm histórias que vêm das lonjuras, no tempo dos tropeiros e das conquistas das terras aos castelhanos. Tinham gosto pelas viagens. Dormiam enfiados em algum pelego de carneiro esparramado pelo chão. Nas noites frias ficavam enrolados nas pernas dos tropeiros na volta das fogueiras, ouvindo as histórias daqueles homens duros, aquecidos pelo chimarrão. Ganharam o direito de ficar por ali, sem ter direito. Sabe como é dona Clara, foram se acumulando, gente vira-latas não carece de muito espaço. Vão se empilhando — O que importa é que ela está bem.
—        Meus amigos, não adianta chorar pelo leite derramado.
—        É isso, o que está feito... está feito.
—        Obrigado, novamente. — Não foi nada, senhor Calçacurta.
Com a Tuca no colo da dona Clara, os três se dirigem para o carro. Maria Memória aparece quase no fim da emergência, carrega a Destino no colo dos braços e faz das tetas a mamadeira da criança — Seu delegado!
—        Sim? — Como o Supimpa tem se saído?
—        O rapaz é muito bom, tem futuro... boa árvore, bom fruto.
—        Sabe o que é, seu delegado? — Diga... — a mãe Maria Memória tem um pequeno tempo de dúvida, o filho, por certo, não há de gostar do seu intrometimento
—        É que ele não tem aparecido em casa, diz que é muito serviço.
—        Nem tanto, vou conversar com o rapaz... é verdade que estamos envolvidos com alguns serviços extras, mas não é pra tanto.
—        Será que tem a ver com algum rabo de saia?
—        Talvez, dona Maria... — Vamos indo, Calçacurta. — o delegado faz um murmúrio de aprovação, enquanto segue falando. A mulher tomada de impaciência já está no automóvel da família
—        Essa semana o rapaz vai estar muito ocupado.
—        Por quê? — segue a mãe em intromissão nos negócios de polícia
—        Encaminhei ele para umas aulas sobre o jeito da policia dos gringos.
—        É mesmo? Isso é bom?
—        Sim, coisa de americano que nossa gente precisa se instruir-se.
—        Mas o meu menino não sabe a língua dessa gente... —Não precisam saber falar como os gringos, só precisam aprender a fazer como eles. — o delegado Calçacurta já começa demonstrar impaciência, de boas intenções o inferno está cheio e todos sabem que jacaré não entra no céu pelo tamanho da boca, a velha está a lhe tirar mais informações que doente de cabeceira — Na verdade, o polícia professor já morreu. Foi desviado da sua rota pela castelhanada, em Montevidéu...
—        Hã... coitado, que pena. — É a vida, mas já temos gente que pode ensinar pelo jeito do professor. — Uns vem, outros vão. — é bem assim, para morrer basta estar vivo. E sujeito na procura de encrenca encontra atalho, caminho fora da estrada comum, e aí, não tem jeito, encurta as distâncias com o eterno — Esse se foi... — Mas podia ser diferente, o senhor não acha?
O delegado lança um breve sorriso, a Memória sente um frio de espinha lhe acorrer pelo corpo, lembra de dito do Virgílio, dizendo-se as verdades, perde-se as amizades — Muito bonita a sua filha.
E entram no carro. O motorista acelera, ele mantivera o motor ligado nesse tempo todo. Memória lembra-se de comentar — Menina moça essa tua patroa...
—        É mesmo, quase guria. — Bem mais velho esse teu patrão.
—        É. — E daí... mais nada?
—        Não sei, mamã, parece que o delegado vem cuidando da dona Clara desde os doze.
—        Coitada da Virgem Santa, esse faz criação pra saber a procedência — a menina chora depois que lhe foge a teta, Maria não lhe ouve. Ninguém percebe a sua preocupação enquanto o carro lhe foge das vistas — Ta bem sua comilona, olha aqui... toma a teta.
O dia continua seu curso mormacento. No entardecer, o polícia paisano Supimpa chega a casa. A Maria Memória já tem dito que o rapaz deve ter outro domicílio de uso, pois não se para mais neste daqui — É muito serviço, mãe.
—        Mas que diabo de serviço é esse, que faz ficarem tantos dias longe de casa?
—        Não tenho permissão de contar.
—        Ahhh, agora me virou agente das coisas secretas.
—        Quase isso...
O bugre Manualdo se vem no socorro do cunhado — O que importa é que o cunhado ta no serviço do bem... — o Supimpa não está fardado de polícia, mas o jeito de olhar não é mais do guri cuidador de galinhas — ... cuidando da proteção da gente da vila.
—        Cuidando da gente de bem que não quer confusão. — o pai Ogum chega a se mexer na cadeira para fazer alguma pergunta, mas lá por dentro da sua cachola se põe a pensar que não vale a pena nenhum intrometimento. As suas desconfianças não tem fundamento de verdade. Sabe que imaginação demais põe a correr o bom senso. Tudo na medida não há de atrapalhar. Volta para sua ressaca de dormir. Nem a televisão se permite assistir. Na verdade, desde que levantou, sente o desconforto de ficar com a cueca arriada pelo meio das pernas. O elástico não tem mais força de prender na cintura. Ele puxa pra cima, ela teima e se vai pernas abaixo. Acostumou e não se anima fazer movimento de mudança. A gente se acostuma com tudo ou, pelo menos, faz cara de conformação. Vai pra lá e cá, com os fundilhos incomodando longe do assento. A tanajura a descoberta mostra o cofrinho, está sem os panos íntimos de proteção.
A conversa da mãe com o filho se vai pra cozinha, por ali, é sempre assim, terminam o que começaram na volta da mesa, sempre na cozinha — Come essa galinha, tem q-suco de uva na geladeira.
—        To com muita fome.
—        Não dão comida, por lá?
—        Mãe, a gente não tem muito tempo de comer, não. Quando muito se come um sanduíche. — a Maria Memória faz sinal de desaparecimento pra todos na volta. Um a um vão indo para os cantos. Ela senta ao lado do filho, sente saudades do pai do guri, sente saudades do irmão do guri, sente saudades daquele guri que está sumindo das suas vistas
—        Supimpa, me conta... arrumou mulher... você ta namorando?
—        Mãe, é apenas o meu serviço.
—        Tem certeza, filho? — Mãe, não se preocupa.
—        Nunca vou deixar de me preocupar.
—        Mãe, o Lamparina, sim, é motivo de preocupação.
—        Por quê, meu filho? — o coração da mãe se apequena
—        Pedi informação ao doutor Calçacurta e ele disse que por lá é complicado.
—        Como assim? — Parece terra de ninguém.
—        Ai, meu Deus! — o rapaz leva as mãos em jeito de arrumar o cabelo. Está com os nós dos dedos esfolados, ainda não criaram casca e, por certo, doíam. Esse sentou praça, deu baixa da vida de milico, mas continua sentindo-se um guerreiro, jaz como um soldado carcereiro de si mesmo, parece estar preparado para não aceitar um não como resposta — Meu filho, machucaram as tuas mãos.
—        Isso não é nada...
Deixou o coração errar, o vinho transformar-se vinagre e a doçura implacável do pão mofou.

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28 - Entre fuscas e opalas 

30 - Sim senhor! Meu senhor!

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