terça-feira, 10 de julho de 2012

Cio da terra


Becos sem saída - Cio da terra
I
baitasar
A praça velha e esburacada em demasia separa a classe dos pobres, vileiros descuidados do interesse público com sua cor queimada, daquela outra humanidade, mais apetitosa de beleza e opulentos de fartura, com suas casas de avizinhação endinheiradas e carros na garagem, a terra dos ricos. Gente de cabelos bem cuidados, delicada e abundante de bom trato. Rejuvenescida. Artificial. Bichos de seda. Animais de pelúcia. Realidade cogitada para poucos.
Os Jardins Suspensos do Lago.
Aquela praça é território de distinção dos limites. Separação territorial indiferente. O chafariz e as gramas com árvores mantêm longe a vilanagem e o caminho que desemboca na praça, com seus becos de amontoamentos de gente. Gueto pensado para muitos. Os recolhidos no beco da Servidão, vila Boa Esperança, ficam onde estão. De costas para a cicatriz elevada do dique e de frente para a praça. Do outro jeito, antes da praça, é o berço de ouro em que nascem os casarões e muros sem medida. Opulência. Chão de asfalto e calçadas iluminadas. Não se vê mendigo caminhando em suas ruas. Não entram. Não passam pela caveira de velório do vigia. O bedel se faz ver na entrada. É imenso, mais parecido com um chefe de disciplina de escola de samba. Na noite, o berçário ilusório e de cobiça tem o homem pequeno de tamanho e grande de nariz vigiando de sentinela, o homenzinho controla o entra e sai. Quem não tem o necessário à vida de fartura precisa da senha de funcionário doméstico para entrar naquelas terras de abundância.
O serviço público se mantém em curva de coluna para as exigências dos Jardins. Presta serviços de boniteza. Em época de secura de chuvas, o carro pipa passa uma vez na semana, borrifa o aguamento das pequenas praças e jardins suspensos, lava o asfalto da rua e as calçadas. Trabalha como lavadeira e o grosso da poeira se some nos ralos do condutor subterrâneo da imundícia. Submundo de águas negras que na vila Boa Esperança corre a céu aberto.
Depois daquele desatino das árvores arrombadas, chegam ordens de iluminar os lados da riqueza. Não poderia haver cantos às cegas. À iluminura foi aliada a ostentação, por meio de luzes em cores vivas, ouro e prata. No show das luzes surgem as extravagâncias. Holofotes ocupam parte do espaço comumente reservados às sombras, estendendo-se pelas ruas e suas calçadas. Aquelas luzes de neon em brilho provocam a cobiça dos olhos. A corpulência da riqueza se mostra naquela abundância de luzes. O pobrerio lhe pertence, sabe fazer bom uso. Para a pobreza superabunda a sobrevivência de jardineiro, cozinheira, lavadeira, motorista, camareira, criadeira, aia de peito, lixeiro, carpinteiro, pedreiro, bombeiro hidráulico e aquela imensa cruz de madeira no meio da cicatriz.
Por lá, naquela zona de guerra não declarada, o Antena é o vigia do prefeito, as próprias vistas do dono preocupado com o sumiço das terras jogadas nos ferimentos do terreiro. Estava desencadeada a Operação Semdor. Sua missão era descobrir quem estava se desfazendo dos recursos naturais da ilha de Madalena, impedindo a cicatrização das mágoas da terra. Interrompendo a acomodação e ajuizamento dos arredores da praça. Provocando a revolta, a contrariedade. Desencantando da memória os acontecidos de descontrole e malvadeza, embaraçando a arrumação das coisas de embelezamento nos seus devidos lugares. Os buracos entupidos de enchimentos num dia amanheciam esvaziados em outro. A cada vez, um pouco mais alargados por destroços desabados. Derrubados para dentro. Engolidos por alguma boca embaciada das idéias. E foi de lá, terra prometida e de riqueza sem medida, que o Antena começou a fazer os seus primeiros registros em lápis e papel, o ócio da campana é demolidor, sobremaneira se feito na solidão do silenciamento
o luxo e a fertilidade da ganância... Gosto do luxo e sinto apertos de ganância, mas não posso, não devo, porra que vontade de mandar tudo pro inferno
e o consumo sem medidas é o alimento de uma vida inútil... Não quero ser sem importância, inútil
de repente, morro. E a imortalidade não se apresenta. Foi tudo baldio para o morto. Eu. Ficam os vivos. Não escutam. Ninguém presta atenção para ouvir da história contada pela pobreza. Deus me livre da miséria. O morto se levanta entre os vivos para gritar e se descobre funesto. Tarde demais. Trabalho desastroso de uma vida pobre de nada. Vileiro é um resto endurecido de ser vivo. Uma mutação da espécie humana. Não quero ser descartável, mas não sei inventar minha vida
A ilha de Madalena foi afundada sob as chuvas e os tanques. A água e os pedalinhos é o marco zero da entrada do golpe militar. Depois do afundamento tudo foi definido pela escolinha do professor da chefatura. As liberdades individuais, os princípios constitucionais e a legislação civil não têm efeito em terras de guerreiros marciais. Ninguém reclama. Não podem ou não querem. Cada um vive a sua vida, se puder. Os comuns têm medo que as sabotagens dos comunistas desestabilizem a segurança de todos. Ilhados da cidade e do campo. Os isolados se deixam submeter por conveniências. Interesse de ficar vivo. Vantagem de emprego. Benefício de comida.  Utilidade de escola. Serventia de moradia. Os continentinos se tornam objetos subordinados a obedecer ordens, com quem pode não se brinca. E assim, os desejos de poder supremo daqueles senhores e senhoras honradas se torna realidade. Mandam e não pedem... por enquanto, diriam os sonhadores adolescentes e velhos delinquentes guerrilheiros.
O inimigo já está dentro e começa a resistir.
Tudo pronto para combater a hostilidade interna.
Para os comandos nacionalistas, está claro, naquela praça esburacada está ocorrendo um ato comunista. O senador da república, Constantino Phallus Roubaefaz, cheio do medo zangado, lá do escritório aponta o dedo para acusar
─         O assustamento do povo é o objetivo desses comunistas de merda!
Ninguém se mexe por ali, todos sabem que a paixão e o ódio andam de mãos dadas. O senador está em épocas de achar culpados e contra a força não há resistência
─         É essa a reforma agrária de merda desses comunistas?
Caminha enjaulado de um lado para outro, não pode dar tempo ao tempo
─         Essa gente vagabunda têm a foice na mão e o demônio no coração!
Quer a prontidão imediata das forças da segurança. Logo, algum grupo extremado há de assumir o sumiço da terra
─         Isso se não surgir nenhum líder messiânico...
─         Líder do quê, chefe?
─         Canudos.
─         Quem é esse cara?
─         Esquece, Salvador, esquece...
O conflito campesino chegava à cidade. Não lhe faltava mais nada que aparecer algum maluco distribuindo terra entre esses favelados
─         Esses vagabundos não têm as terras de superfície e roubam as terras de baixo.
O delegado Salvador Calçacurta - subchefe das seguranças - gritava
─         Precisamos armar os nossos revolucionários e atirar primeiro!
Tudo fora dividido desigual entre as pessoas desiguais. Os poucos ricos ganham tudo. Sesmarias por direito feudal. Aos muitos da pobreza resta morrer por acreditar na liberdade, na justiça e na conquista da terra. Mas poucos estão dispostos a morrer pela luta da terra
─         Preciso do meu subchefe das seguranças, lá na praça!
─         Já me vou, comandante...
─         Senador! Porra! Comandante é coisa de esquerdista vagabundo e filho-da-puta...
─         É isso mesmo que eu quis dizer, chefe.
Lá na campana da praça, o Antena ficava repetindo o seu patrão para os praças de elite daquela guarda de assalto e emboscada
─         Afinal, ainda não chegou o tempo do poste mijar nos cachorros.
Estava de tocaia. Para isto, se armara de café, papel, lápis, paciência e um rádio de comunicação. Seis homens muito altos, corpulentos e monstruosos, prontos para agirem ao seu sinal de ataque, estavam em estado de feras enjauladas. A Operação Semdor é a repressão coordenada pelas forças da segurança. Com gestos exagerados de chegar ao continente perseguindo. Impressionando. Importunando. Castigando. Torturando. Depois de abertos os portões da gaiola dos bravos, haveria um carniçaria. Gladiadores carnívoros prontos para avançarem sobre os invasores das terras da praça. Elmos, granadas, pederneiras, escudos e espadas de borracha, treinadas para combater outros homens ou mulheres ou crianças, qualquer bicho-do-mato. Estão por ali, aguardando as ordens de uso da repressão violenta. É para isso que eles existem. Escravos treinados com cuidado para o uso da força desmedida e violenta.

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16 - Coxas redondas e carnudas 

18 - O afetuoso berço da vida

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