Becos sem saída - Cio da terra
I
baitasar
A praça velha e esburacada em demasia separa a classe dos pobres, vileiros descuidados do interesse público com
sua cor queimada, daquela outra
humanidade, mais apetitosa de beleza e opulentos de fartura, com suas casas de
avizinhação endinheiradas e carros na garagem, a terra dos ricos. Gente de
cabelos bem cuidados, delicada e abundante de bom trato. Rejuvenescida. Artificial.
Bichos de seda. Animais de pelúcia. Realidade cogitada para poucos.
Os Jardins Suspensos do Lago.
Aquela praça é território de distinção dos limites. Separação territorial
indiferente. O chafariz e as gramas com árvores mantêm longe a vilanagem e o caminho
que desemboca na praça, com seus becos de amontoamentos de gente. Gueto pensado
para muitos. Os recolhidos no beco da Servidão, vila Boa Esperança, ficam onde
estão. De costas para a cicatriz elevada do dique e de frente para a praça. Do
outro jeito, antes da praça, é o berço de ouro em que nascem os casarões e
muros sem medida. Opulência. Chão de asfalto e calçadas iluminadas. Não se vê mendigo
caminhando em suas ruas. Não entram. Não passam pela caveira de velório do
vigia. O bedel se faz ver na entrada. É imenso, mais parecido com um chefe de
disciplina de escola de samba. Na noite, o berçário ilusório e de cobiça tem o
homem pequeno de tamanho e grande de nariz vigiando de sentinela, o homenzinho controla
o entra e sai. Quem não tem o necessário à vida de fartura precisa da senha de
funcionário doméstico para entrar naquelas terras de abundância.
O serviço público se mantém em curva de coluna para as exigências dos
Jardins. Presta serviços de boniteza. Em época de secura de chuvas, o carro
pipa passa uma vez na semana, borrifa o aguamento das pequenas praças e jardins
suspensos, lava o asfalto da rua e as calçadas. Trabalha como lavadeira e o
grosso da poeira se some nos ralos do condutor subterrâneo da imundícia.
Submundo de águas negras que na vila Boa Esperança corre a céu aberto.
Depois daquele desatino das árvores arrombadas, chegam ordens de iluminar
os lados da riqueza. Não poderia haver cantos às cegas. À iluminura foi aliada
a ostentação, por meio de luzes em cores vivas, ouro e prata. No show das luzes
surgem as extravagâncias. Holofotes ocupam parte do espaço comumente reservados
às sombras, estendendo-se pelas ruas e suas calçadas. Aquelas luzes de neon em
brilho provocam a cobiça dos olhos. A corpulência da riqueza se mostra naquela
abundância de luzes. O pobrerio lhe pertence, sabe fazer bom uso. Para a
pobreza superabunda a sobrevivência de jardineiro, cozinheira, lavadeira,
motorista, camareira, criadeira, aia de peito, lixeiro, carpinteiro, pedreiro,
bombeiro hidráulico e aquela imensa cruz de madeira no meio da cicatriz.
Por lá, naquela zona de guerra não declarada, o Antena é o vigia do
prefeito, as próprias vistas do dono preocupado com o sumiço das terras jogadas
nos ferimentos do terreiro. Estava desencadeada a Operação Semdor. Sua missão
era descobrir quem estava se desfazendo dos recursos naturais da ilha de
Madalena, impedindo a cicatrização das mágoas da terra. Interrompendo a
acomodação e ajuizamento dos arredores da praça. Provocando a revolta, a
contrariedade. Desencantando da memória os acontecidos de descontrole e
malvadeza, embaraçando a arrumação das coisas de embelezamento nos seus devidos
lugares. Os buracos entupidos de enchimentos num dia amanheciam esvaziados em outro. A cada vez, um
pouco mais alargados por destroços desabados. Derrubados para dentro. Engolidos
por alguma boca embaciada das idéias. E foi de lá, terra prometida e de riqueza
sem medida, que o Antena começou a fazer os seus primeiros registros em lápis e
papel, o ócio da campana é demolidor, sobremaneira se feito na solidão do silenciamento
o luxo e a fertilidade da ganância...
Gosto do luxo e sinto apertos de ganância, mas não posso, não devo, porra que
vontade de mandar tudo pro inferno
e o consumo sem medidas é o
alimento de uma vida inútil... Não quero ser sem importância, inútil
de repente, morro. E a imortalidade
não se apresenta. Foi tudo baldio para o morto. Eu. Ficam os vivos. Não
escutam. Ninguém presta atenção para ouvir da história contada pela pobreza. Deus
me livre da miséria. O morto se levanta entre os vivos para gritar e se
descobre funesto. Tarde demais. Trabalho desastroso de uma vida pobre de nada. Vileiro
é um resto endurecido de ser vivo. Uma mutação da espécie humana. Não quero ser
descartável, mas não sei inventar minha vida
A ilha de Madalena foi afundada sob as chuvas e os tanques. A água e os
pedalinhos é o marco zero da entrada do golpe militar. Depois do afundamento tudo
foi definido pela escolinha do professor da chefatura. As liberdades individuais, os princípios
constitucionais e a legislação civil não têm efeito em terras de guerreiros
marciais. Ninguém reclama. Não podem ou não querem. Cada um vive a sua vida, se
puder. Os comuns têm medo que as sabotagens dos comunistas desestabilizem a
segurança de todos. Ilhados da cidade e do campo. Os isolados se deixam
submeter por conveniências. Interesse de ficar vivo. Vantagem de emprego.
Benefício de comida. Utilidade de escola.
Serventia de moradia. Os continentinos se tornam objetos subordinados a
obedecer ordens, com quem pode não se brinca. E assim, os desejos de poder
supremo daqueles senhores e senhoras honradas se torna realidade. Mandam e não
pedem... por enquanto, diriam os sonhadores adolescentes e velhos delinquentes
guerrilheiros.
O inimigo já está dentro e
começa a resistir.
Tudo pronto para combater a hostilidade
interna.
Para os comandos nacionalistas, está claro, naquela praça esburacada está
ocorrendo um ato comunista. O senador da república, Constantino Phallus
Roubaefaz, cheio do medo zangado, lá do escritório aponta o dedo para acusar
─ O assustamento do povo é o
objetivo desses comunistas de merda!
Ninguém se mexe por ali, todos sabem que a paixão e o ódio andam de mãos
dadas. O senador está em épocas de achar culpados e contra a força não há
resistência
─ É essa a reforma agrária
de merda desses comunistas?
Caminha enjaulado de um lado para outro, não pode dar tempo ao tempo
─ Essa gente vagabunda têm a
foice na mão e o demônio no coração!
Quer a prontidão imediata das forças da segurança. Logo, algum grupo
extremado há de assumir o sumiço da terra
─ Isso se não surgir nenhum
líder messiânico...
─ Líder do quê, chefe?
─ Canudos.
─ Quem é esse cara?
─ Esquece, Salvador, esquece...
O conflito campesino chegava à cidade. Não lhe faltava mais nada que
aparecer algum maluco distribuindo terra entre esses favelados
─ Esses vagabundos não têm
as terras de superfície e roubam as terras de baixo.
O delegado Salvador Calçacurta - subchefe das seguranças - gritava
─ Precisamos armar os nossos
revolucionários e atirar primeiro!
Tudo fora dividido desigual entre as pessoas desiguais. Os poucos ricos
ganham tudo. Sesmarias por direito feudal. Aos muitos da pobreza resta morrer
por acreditar na liberdade, na justiça e na conquista da terra. Mas poucos
estão dispostos a morrer pela luta da terra
─ Preciso do meu subchefe
das seguranças, lá na praça!
─ Já me vou, comandante...
─ Senador! Porra! Comandante
é coisa de esquerdista vagabundo e filho-da-puta...
─ É isso mesmo que eu quis
dizer, chefe.
Lá na campana da praça, o Antena ficava repetindo o seu patrão para os
praças de elite daquela guarda de assalto e emboscada
─ Afinal, ainda não chegou o
tempo do poste mijar nos cachorros.
Estava de tocaia. Para isto, se armara de café, papel, lápis, paciência e
um rádio de comunicação. Seis homens muito altos, corpulentos e monstruosos,
prontos para agirem ao seu sinal de ataque, estavam em estado de feras
enjauladas. A Operação Semdor é a repressão coordenada pelas forças da
segurança. Com gestos exagerados de chegar ao continente perseguindo.
Impressionando. Importunando. Castigando. Torturando. Depois de abertos os portões
da gaiola dos bravos, haveria um carniçaria. Gladiadores carnívoros prontos para
avançarem sobre os invasores das terras da praça. Elmos, granadas, pederneiras,
escudos e espadas de borracha, treinadas para combater outros homens ou
mulheres ou crianças, qualquer bicho-do-mato. Estão por ali, aguardando as
ordens de uso da repressão violenta. É para isso que eles existem. Escravos
treinados com cuidado para o uso da força desmedida e violenta.
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Leia também:
16 - Coxas redondas e carnudas
18 - O afetuoso berço da vida
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