domingo, 8 de julho de 2012

Coxas redondas e carnudas

Becos sem saída - Aleijume da terra
baitasar
A noite das afogadas no chafariz passou para as crenças da gente cigana, virou folclore. Lenda suburbana. Conta-se que duas mulheres prenhas do mesmo homem, um pequeno de nariz grande e apito na boca, caíram nas águas brilhantes do lago. No jeito que tocaram o fundo tudo foi ficando embaçado e as águas ganharam essa cor de barro e pecado. As casamenteiras juram que mãos se agarram aos pés das banhistas de oferendas, como se quisessem socorro. Tem virado costume entre as sem casamento – engravidadas num descuido de proteção das vontades, madrugadas misericordiosas e donzelas subjugadas – que venham se purificar nas águas sagradas do chafariz. Esguicho de choro das lágrimas de súplica. Não é raro o achado de oferendas em oferta de troca do pecado pelo perdão. As águas que lavam os pecados libertam as mulheres de moral duvidosa do apedrejamento, mas não das línguas mexeriqueiras.
Mas para as Memórias, depois de tanta correria por plantar árvore, ficou o dito pelo não dito. A tal lei de plantar para casar não saiu. Ficou presa nos cadernos e borrões de algum desajuizado no negócio de politicar. A única plantação que continua é a da carne humana. Adubo de fábrica. Fertilizante do dinheiro. A lei da plantação de árvores permanece enunciada na coluna dos troços incompletos: mutilação da vontade e incompetente como domadora de homens e mulheres. Virou fuxico. Amolecimento nas aparências. Motivo de chacota. Medo cadonga dos brancos e catimbau dos negros. Por certo, quem criou tal lei, lá pela capatazia, se deu conta que estava perdendo voto e deixou o dito pelo não dito. Gente zambeta, fraca de decisão e curta de ideias. Torta das pernas. Mistura de cor, motivo de esquecimento.
De verdade, ficou os buracos na praça, lugar das mulungas arrancadas naquela noite de louquice. As únicas vítimas daquela escuridão de cegueira e ingenuidade. Desatenção de gente. Os furos permanecem se negando cicatrizar, até por hoje. Uns quantos desatentos caem neles e têm algum aleijume transitório. É a terra que se nega esquecer. Fica a testemunhar. Exibe sua frustração com o jeito de povoar o chão.
Os cargos da confiança do senador aparecem com as ordens de esconder os buracos, chegam com tratores e caminhões. O senador tem muito que esconder naquelas terras alagadas. Trazem terra e enchem os furos. Batem. Socam. Passam por cima com suas máquinas poderosas. Na manhã do dia seguinte: os buracos estão lá. Parece que durante a noite, seja o que for que tenha nos subterrâneos, se alimenta daqueles torrões. Engolem tudo. Não ficam cheios. O entulho deixa de ser visto. Desaparece chão abaixo.
Numa daquelas noites de entupir as feridas da terra, Ogum se chega pra conversas com o capataz. Começa sestroso, tenta entendimentos de amizade, até arriscar por perguntar
—        E os buracos... estão aumentando?
—        Um pouco a cada vez.
O outro não se parece com muitas vontades de prosa, faz o tipo de gente que pensa devagar, fala mais devagar ainda, como se estivesse anunciando que para todo bom entendedor meia palavra já basta
—        No entendimento do seu conhecimento... o que se passa?
—        Não sei... sei lá!
—        Talvez... quem sabe... as mágoas do chão não se deixam fechar em lembrança...
O chefe dos braçais lança um olhar desconfiado, sabe que em boca fechada não entra mosca e um pouco de cautela nunca é demais, mas arrisca avançar um pouco na prosa
—        O que incomoda a sua desconfiança?
—        Mais se parece com carne de gente estragando.
—        Por que?
—        Não sei, mas esta terra tem cara de fome...
—        Bobagem, terra não tem vontade própria.
—        Esta terra da praça está engolindo tudo que lhe cai na garganta. — dito assim, pelo Ogum, o capitão-do-mato se vira nas costas e vai embirrado. Não tem muito que dizer. Não tem muito para entender, somente uma tarefa para cumprir: encher de pedra e terra esse saco vazio que não se enche. Já foi tanto aterramento enfiado goela abaixo, nas contas do capataz o buraco se vai até o centro do chão. O homem já começa a confiar que isto não tem fim. É o esgotamento de abrir buracos para tapar um saco sem fundo.
Aquelas feridas insepultas viram atração na vila. No domingo à tarde, é programa obrigatório o chimarrão nas beiras infestadas pelo germe humano dos espirros e cochichos. Chegam com suas espreguiçadeiras remendadas, que nunca chegaram perto de beira d’água além das barrentas do chafariz, e sentam nas sombras que restam. Os deslizes noturnos daqueles buracos já são criticados espontaneamente
—        A natureza esburacada precisa engolir terra no descoberto do dia. — turismo é feito no descoberto do dia. Todos querem circo, apetece para os negócios que a terra se afunde na vista de todos, ao vivo, nos jornais e rádios
—        Olha a pipoca da terra, amendoim torradinho, balas, baleiro, balas, algodão doce!
Tudo se vende neste mundão. Caminhando por entre as covas surgidas, podem-se encontrar acanhados balcões de comércio. Vendedores da terra endemoninhada, em pequenos frascos. Troca-se de tudo, por dinheiro. Pequenas garrafas de vidro com a água sagrada
—        É garantido freguesa. Afasta os urubus da carniça se a senhora tem menina moça em casa. A água sagrada retirada do fundo da cova afasta os golpistas da volta da menina.
Os escapulários carregados com pequenos grãos da terra rebelde são muito procurados pelos fiéis do medo. Pedras de vários tamanhos são comercializadas, como lembranças da véspera. Vivem de comerciar o cheiro do mato, o medo da morte e a certeza da absolvição
—        Venham! Aproveitem essas dádivas de sangue, antes da engolição da terra!
Do mesmo jeito que o mar inventou os mergulhadores, por aqui, o lugar de abismos arquitetou o minhocão, cabra cego fantástico, se atira pelos buracos da praça na cata das preciosidades. É capaz de todos os milagres quando está mergulhado nas entranhas da terra. Apenas uma corda o prende ao mundo da superfície. Os intermediários gritam animados enquanto puxam o fuçador pelo seu cordão do umbigo
—        Chega mais perto, freguesia! Ninguém morde! Levem esse pequeno lembramento! Acabou de ser salvo da engolição da terra! — algumas pedras com pequenas inscrições, gravação na hora, pedras retiradas do esburacado das covas. Tudo tem seu preço, seu jeito de salvar as almas. Levam a cruz nos peitos e o diabo nos feitos
—        Inscrevemos seu nome na rocha! Só aqui, você vai encontrar pedregulhos abençoados pelo santo padre! — mas enquanto a cobiça não rompe o saco é preciso caminhar e pechinchar muito. Os preços são variados. Livre tráfico de porcarias. O ofício de fiscal não sabe o que espreitar em sentinela. Os agentes de defendimento dos mistérios da vida querem, mas não sabem como se meter em coisas de fé e superstição e dinheiro, sem levantar suspeição. Afinal das contas, ninguém se arrisca estabelecer, por norma oficial, o valor das coisas. É o submundo de ocorrência extraordinária.  A praça dos pedalinhos está uma terra de ninguém. Território dos cambistas e ambulantes. Mais se parece com um grande bazar beneficente em dia de bingo, mas com pretensões de santidade milagreira, a gula desvalida que para o bem de uns provoca a desgraça de outros.
Os moradores dos arredores pensam em cercar e cobrar bilhetes de ingresso. Sugerem a cobrança de algum tipo de remuneração. A discussão se vai acalorada pela metade do dia, os ânimos ora se alteram para o confronto, ora se aproximam do acordo. Por fim, fica aprovada a taxa de inscrição das bancas. O imposto do uso da terra, mais o aluguel das pequenas baias, para colocação das bancas. Tudo na responsabilidade do Cristurano, vereador que já age como funcionário de carreira. Cargo vitalício. Fica de espreita. Ele faz as concessões. É a goteira de entrosagem com a autoridade legal, lá fora. Nesta emergência garante à comunidade o direito interno de negociar os contratos. Ele é a legalidade e a burocracia. Sua força evita os morticínios entre os duráveis da vila. Gente que veio e ficou por aqui. No seu fundo ele sabe que a Deus ninguém engana, mas aposta no cabimento de alguns recursos na hora do vamos ver no que vai dar. Ogum sugere à Memória alugar o uso do banheiro da casa para os turistas
—        Estão malucos! — grita em descontrole Maria Memória. No silêncio assustado dos demais recomendou na assembleia: uma benzedura traria serenidade ao terreiro. Deveriam fazer uma oferenda com cabrito, coelho e milho, para o orixá Oxóssi, guerreiro das matas. Foi desprezada. Outra mãe anuncia — É preciso pedir a proteção de Aganju, filho de Obatalá, o céu, e de Odudua, a terra. — é preciso um grande número de feitiços, para desenfeitiçar a terra e afastar os maus espíritos
—        Primeiro, temos que misturar uma porção de palha (casca) de alho com farinha de milho, seca. Colocamos com carvão acesso em uma vasilha que possa servir como defumador. Precisamos defumar a praça inteira, não esquecendo um só canto. Defumar, rezar o credo, fazendo o sinal-da-cruz com a mão esquerda... — o aviso foi desatendido pelo serviço oficial das praças, eles têm um buraco pra trancar e uma boca que não se fecha. Sabem que a razão espanta o medo e tratam de tranquilizar as pessoas
—        O que temos aqui é uma rachadura profunda.
—        Terremoto?
—        Talvez... talvez... mais certo é o apodrecimento do chão de baixo para cima. —    e assim, no tumultuoso das vozes, começa a correr na vila o medo da goela da terra. A terra come muita coisa boa
—        Desfiladeiro bocudo que devora tudo na volta.
—        Garganta estranha, engole a terra à noite, enquanto a escuridão nos fecha os olhos.
—        Mais dia menos dia vai afundar gente!
—        Pior, vai devorar nosso chão, nos enterrar em cova.
—        Parece coisa pedida.
—        É a goela do inferno que cresce embaixo dos nossos pés.
—        A terra dada não se abre a boca...
Os oficiais da pá e enxada da prefeitura reclamam da repetição do serviço. Correm perigo inútil. Os bochichos seguem crescendo até que chegam ordens de cima — O capataz precisa acabar com esse falatório subversivo. — mandam trocar os malcontentes.
Cristurano encaminha ao chefe dos braçais, lista em segredo. Gente escolhida no dedo para o serviço de enchimento. Gente destemida e desacreditada que o chão está gemendo. Povo saído das cadeias. Sem muita serventia. Desnecessários. Ninguém há de reclamar por algum desaparecimento. É fazer o recheio das fendas ou desandar nos buracos da prisão. Cativeiro para constranger. Gente do Cristurano. Apoiadores de campanha eleitoral. Não é à toa que lhe apelidam vereador porta de cadeia.
Na cabeça das autoridades militares só existe um culpado. Essa gente do povo. Comunistas. Vileiros. Sabotadores. O General Humberto determina que o administrador civil daquela confusão sofra algum corretivo, caso não tome as providências devidas para o esclarecimento do fato. Constantino, cheio de fúria zangada, ajeitada para o desempenho do seu papel de pai preocupado, acusa e estabelece medidas para regular a vida naquela praça, exige a presença do dono das capatazias
—        Quero o Cristurano aqui! Agora!
—        Chefe, ele está na zona do conflito.
—        Chuparracha, não me chama de chefe! Onde está o controlador jornalístico?
—        Vou chamar, chefe!
—        Merda, isso é ideia fixa... não me chama de chefe! — a máfia, por certo, não vive em vilas, mas é como se existisse uma sociedade secreta para garantir a segurança dos vileiros e os ganhos particulares de alguns dignos senhores
—        Senhor prefeito... o Antena.
—        Rapaz preciso dos seus serviços jornalísticos.
—        O que se passa?
—        Vá até a praça dos pedalinhos e me descubra quem está retirando as terras do lugar.
—        O prefeito tem alguma suspeita? —  o chefe bate com a mão fechada sobre a mesa de seus despachos, levanta da sua cadeira, um teatro que estuda todos os dias e repete sempre que lhe convém — Os vileiros, os comunistas, a bandidagem, é tudo a mesma coisa, devem estar sugando terras em túneis...
—        Por quê?
—        Não sei... vá e descubra, antes que os milicos cismem de se meter.
Junto com a missão secreta do jornalístico Antena, o prefeito autoriza por decreto marcial sua disposição de usar os presos nos estragos. Os abocanhados pela polícia farão o conserto dos buracos na praça
—        Entreguem nas mãos do Cristurano.
Nas minhas opiniões sobre o fato, a terra se corrói pouco a pouco com a indiferença de todos. Está desnaturada. Virada cova. Manchada de sangue. Larga e funda. Latifúndio sem vida a ser dividido entre os pardos. Deserto a dar sepultura à maternidade da terra. Tudo que do pó sai há de retornar. É o fim do início. Só vai piorar. Nada a fazer longe do juízo da terra. A natureza seca e o chão seco entram em ebulição. Tudo agoniza embaixo dos nossos pés, o apagamento do bom senso. As boas senhoras com suas coxas redondas e carnudas continuam se esfregando e jurando que temem o pecado, mas não a sede. Vivem da lavagem das suas almas e das suas calçadas. Seguram a mangueira toda espichada e fecundam o asfalto ardente. A água jorra em abundância, lança de si entre aquelas mãos carnosas e puras. Todas as tardes, tubos de borracha lavam suas coxas redondas e carnudas. Não estão dispostas a cuidar da terra, apesar do calor que brota entre as pernas, até que seja muito tarde. Os buracos da praça nem são tão importantes.

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15 - No panelão do mocotó 

17 - Cio da terra

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