Becos sem saída - Aleijume da terra
baitasar
A noite das afogadas no chafariz passou para as crenças da gente cigana,
virou folclore. Lenda suburbana. Conta-se que duas mulheres prenhas do mesmo
homem, um pequeno de nariz grande e apito na boca, caíram nas águas brilhantes
do lago. No jeito que tocaram o fundo tudo foi ficando embaçado e as águas
ganharam essa cor de barro e pecado. As casamenteiras juram que mãos se agarram
aos pés das banhistas de oferendas, como se quisessem socorro. Tem virado
costume entre as sem casamento – engravidadas num descuido de proteção das
vontades, madrugadas misericordiosas e donzelas subjugadas – que venham se
purificar nas águas sagradas do chafariz. Esguicho de choro das lágrimas de
súplica. Não é raro o achado de oferendas em oferta de troca do pecado pelo
perdão. As águas que lavam os pecados libertam as mulheres de moral duvidosa do
apedrejamento, mas não das línguas mexeriqueiras.
Mas para as Memórias, depois de tanta correria por plantar árvore, ficou
o dito pelo não dito. A tal lei de plantar para casar não saiu. Ficou presa nos
cadernos e borrões de algum desajuizado no negócio de politicar. A única
plantação que continua é a da carne humana. Adubo de fábrica. Fertilizante do
dinheiro. A lei da plantação de árvores permanece enunciada na coluna dos troços
incompletos: mutilação da vontade e incompetente como domadora de homens e
mulheres. Virou fuxico. Amolecimento nas aparências. Motivo de chacota. Medo
cadonga dos brancos e catimbau dos negros. Por certo, quem criou tal lei, lá
pela capatazia, se deu conta que estava perdendo voto e deixou o dito pelo não
dito. Gente zambeta, fraca de decisão e curta de ideias. Torta das pernas. Mistura
de cor, motivo de esquecimento.
De verdade, ficou os buracos na praça, lugar das mulungas arrancadas naquela
noite de louquice. As únicas vítimas daquela escuridão de cegueira e
ingenuidade. Desatenção de gente. Os furos permanecem se negando cicatrizar,
até por hoje. Uns quantos desatentos caem neles e têm algum aleijume
transitório. É a terra que se nega esquecer. Fica a testemunhar. Exibe sua frustração
com o jeito de povoar o chão.
Os cargos da confiança do senador aparecem com as ordens de esconder os
buracos, chegam com tratores e caminhões. O senador tem muito que esconder
naquelas terras alagadas. Trazem terra e enchem os furos. Batem. Socam. Passam
por cima com suas máquinas poderosas. Na manhã do dia seguinte: os buracos
estão lá. Parece que durante a noite, seja o que for que tenha nos
subterrâneos, se alimenta daqueles torrões. Engolem tudo. Não ficam cheios. O
entulho deixa de ser visto. Desaparece chão abaixo.
Numa daquelas noites de entupir as feridas da terra, Ogum se chega pra
conversas com o capataz. Começa sestroso, tenta entendimentos de amizade, até arriscar
por perguntar
— E os buracos... estão
aumentando?
— Um pouco a cada vez.
O outro não se parece com muitas vontades de prosa, faz o tipo de gente
que pensa devagar, fala mais devagar ainda, como se estivesse anunciando que
para todo bom entendedor meia palavra já basta
— No entendimento do seu
conhecimento... o que se passa?
— Não sei... sei lá!
— Talvez... quem sabe... as
mágoas do chão não se deixam fechar em lembrança...
O chefe dos braçais lança um olhar desconfiado, sabe que em boca fechada
não entra mosca e um pouco de cautela nunca é demais, mas arrisca avançar um
pouco na prosa
— O que incomoda a sua
desconfiança?
— Mais se parece com carne de
gente estragando.
— Por que?
— Não sei, mas esta terra tem
cara de fome...
— Bobagem, terra não tem
vontade própria.
— Esta terra da praça está
engolindo tudo que lhe cai na garganta. — dito assim, pelo Ogum, o
capitão-do-mato se vira nas costas e vai embirrado. Não tem muito que dizer.
Não tem muito para entender, somente uma tarefa para cumprir: encher de pedra e
terra esse saco vazio que não se enche. Já foi tanto aterramento enfiado goela
abaixo, nas contas do capataz o buraco se vai até o centro do chão. O homem já
começa a confiar que isto não tem fim. É o esgotamento de abrir buracos para
tapar um saco sem fundo.
Aquelas feridas insepultas viram atração na vila. No domingo à tarde, é
programa obrigatório o chimarrão nas beiras infestadas pelo germe humano dos
espirros e cochichos. Chegam com suas espreguiçadeiras remendadas, que nunca
chegaram perto de beira d’água além das barrentas do chafariz, e sentam nas
sombras que restam. Os deslizes noturnos daqueles buracos já são criticados espontaneamente
— A natureza esburacada
precisa engolir terra no descoberto do dia. — turismo é feito no descoberto do
dia. Todos querem circo, apetece para os negócios que a terra se afunde na vista
de todos, ao vivo, nos jornais e rádios
— Olha a pipoca da terra, amendoim
torradinho, balas, baleiro, balas, algodão doce!
Tudo se vende neste mundão. Caminhando por entre as covas surgidas,
podem-se encontrar acanhados balcões de comércio. Vendedores da terra endemoninhada,
em pequenos frascos. Troca-se de tudo, por dinheiro. Pequenas garrafas de vidro
com a água sagrada
— É garantido freguesa. Afasta
os urubus da carniça se a senhora tem menina moça em casa. A água sagrada
retirada do fundo da cova afasta os golpistas da volta da menina.
Os escapulários carregados com pequenos grãos da terra rebelde são muito
procurados pelos fiéis do medo. Pedras de vários tamanhos são comercializadas,
como lembranças da véspera. Vivem de comerciar o cheiro do mato, o medo da
morte e a certeza da absolvição
— Venham! Aproveitem essas
dádivas de sangue, antes da engolição da terra!
Do mesmo jeito que o mar inventou os mergulhadores, por aqui, o lugar de
abismos arquitetou o minhocão, cabra cego fantástico, se atira pelos buracos da
praça na cata das preciosidades. É capaz de todos os milagres quando está
mergulhado nas entranhas da terra. Apenas uma corda o prende ao mundo da
superfície. Os intermediários gritam animados enquanto puxam o fuçador pelo seu
cordão do umbigo
— Chega mais perto, freguesia!
Ninguém morde! Levem esse pequeno lembramento! Acabou de ser salvo da engolição
da terra! — algumas pedras com pequenas inscrições, gravação na hora, pedras
retiradas do esburacado das covas. Tudo tem seu preço, seu jeito de salvar as
almas. Levam a cruz nos peitos e o diabo nos feitos
— Inscrevemos seu nome na rocha!
Só aqui, você vai encontrar pedregulhos abençoados pelo santo padre! — mas
enquanto a cobiça não rompe o saco é preciso caminhar e pechinchar muito. Os
preços são variados. Livre tráfico de porcarias. O ofício de fiscal não sabe o
que espreitar em
sentinela. Os agentes de defendimento dos mistérios da vida
querem, mas não sabem como se meter em coisas de fé e superstição e dinheiro,
sem levantar suspeição. Afinal das contas, ninguém se arrisca estabelecer, por
norma oficial, o valor das coisas. É o submundo de ocorrência
extraordinária. A praça dos pedalinhos
está uma terra de ninguém. Território dos cambistas e ambulantes. Mais se
parece com um grande bazar beneficente em dia de bingo, mas com pretensões de
santidade milagreira, a gula desvalida que para o bem de uns provoca a desgraça
de outros.
Os moradores dos arredores pensam em cercar e cobrar bilhetes de
ingresso. Sugerem a cobrança de algum tipo de remuneração. A discussão se vai
acalorada pela metade do dia, os ânimos ora se alteram para o confronto, ora se
aproximam do acordo. Por fim, fica aprovada a taxa de inscrição das bancas. O
imposto do uso da terra, mais o aluguel das pequenas baias, para colocação das
bancas. Tudo na responsabilidade do Cristurano, vereador que já age como funcionário
de carreira. Cargo vitalício. Fica de espreita. Ele faz as concessões. É a goteira
de entrosagem com a autoridade legal, lá fora. Nesta emergência garante à
comunidade o direito interno de negociar os contratos. Ele é a legalidade e a
burocracia. Sua força evita os morticínios entre os duráveis da vila. Gente que
veio e ficou por aqui. No seu fundo ele sabe que a Deus ninguém engana, mas
aposta no cabimento de alguns recursos na hora do vamos ver no que vai dar. Ogum
sugere à Memória alugar o uso do banheiro da casa para os turistas
— Estão malucos! — grita em
descontrole Maria Memória. No silêncio assustado dos demais recomendou na assembleia:
uma benzedura traria serenidade ao terreiro. Deveriam fazer uma oferenda com
cabrito, coelho e milho, para o orixá Oxóssi, guerreiro das matas. Foi desprezada.
Outra mãe anuncia — É preciso pedir a proteção de Aganju, filho de Obatalá, o
céu, e de Odudua, a terra. — é preciso um grande número de feitiços, para
desenfeitiçar a terra e afastar os maus espíritos
— Primeiro, temos que
misturar uma porção de palha (casca) de alho com farinha de milho, seca. Colocamos
com carvão acesso em uma vasilha que possa servir como defumador. Precisamos
defumar a praça inteira, não esquecendo um só canto. Defumar, rezar o credo,
fazendo o sinal-da-cruz com a mão esquerda... — o aviso foi desatendido pelo
serviço oficial das praças, eles têm um buraco pra trancar e uma boca que não
se fecha. Sabem que a razão espanta o medo e tratam de tranquilizar as pessoas
— O que temos aqui é uma
rachadura profunda.
— Terremoto?
— Talvez... talvez... mais
certo é o apodrecimento do chão de baixo para cima. — e assim, no tumultuoso das vozes, começa a correr na vila o medo
da goela da terra. A terra come muita coisa boa
— Desfiladeiro bocudo que
devora tudo na volta.
— Garganta estranha, engole a
terra à noite, enquanto a escuridão nos fecha os olhos.
— Mais dia menos dia vai afundar
gente!
— Pior, vai devorar nosso chão,
nos enterrar em cova.
— Parece coisa pedida.
— É a goela do inferno que
cresce embaixo dos nossos pés.
— A terra dada não se abre a
boca...
Os oficiais da pá e enxada da prefeitura reclamam da repetição do serviço.
Correm perigo inútil. Os bochichos seguem crescendo até que chegam ordens de
cima — O capataz precisa acabar com esse falatório subversivo. — mandam trocar
os malcontentes.
Cristurano encaminha ao chefe dos braçais, lista em segredo. Gente escolhida
no dedo para o serviço de enchimento. Gente destemida e desacreditada que o
chão está gemendo. Povo saído das cadeias. Sem muita serventia. Desnecessários.
Ninguém há de reclamar por algum desaparecimento. É fazer o recheio das fendas
ou desandar nos buracos da prisão. Cativeiro para constranger. Gente do Cristurano.
Apoiadores de campanha eleitoral. Não é à toa que lhe apelidam vereador porta
de cadeia.
Na cabeça das autoridades militares só existe um culpado. Essa gente do
povo. Comunistas. Vileiros. Sabotadores. O General Humberto determina que o
administrador civil daquela confusão sofra algum corretivo, caso não tome as
providências devidas para o esclarecimento do fato. Constantino, cheio de fúria
zangada, ajeitada para o desempenho do seu papel de pai preocupado, acusa e estabelece
medidas para regular a vida naquela praça, exige a presença do dono das
capatazias
— Quero o Cristurano aqui! Agora!
— Chefe, ele está na zona do
conflito.
— Chuparracha, não me chama
de chefe! Onde está o controlador jornalístico?
— Vou chamar, chefe!
— Merda, isso é ideia fixa...
não me chama de chefe! — a máfia, por certo, não vive em vilas, mas é como se
existisse uma sociedade secreta para garantir a segurança dos vileiros e os
ganhos particulares de alguns dignos senhores
— Senhor prefeito... o
Antena.
— Rapaz preciso dos seus
serviços jornalísticos.
— O que se passa?
— Vá até a praça dos pedalinhos
e me descubra quem está retirando as terras do lugar.
— O prefeito tem alguma
suspeita? — o chefe bate com a mão fechada
sobre a mesa de seus despachos, levanta da sua cadeira, um teatro que estuda todos
os dias e repete sempre que lhe convém — Os vileiros, os comunistas, a
bandidagem, é tudo a mesma coisa, devem estar sugando terras em túneis...
— Por quê?
— Não sei... vá e descubra,
antes que os milicos cismem de se meter.
Junto com a missão secreta do jornalístico Antena, o prefeito autoriza por
decreto marcial sua disposição de usar os presos nos estragos. Os abocanhados
pela polícia farão o conserto dos buracos na praça
— Entreguem nas mãos do Cristurano.
Nas minhas opiniões sobre o fato, a terra se corrói pouco a pouco com a
indiferença de todos. Está desnaturada. Virada cova. Manchada de sangue. Larga
e funda. Latifúndio sem vida a ser dividido entre os pardos. Deserto a dar
sepultura à maternidade da terra. Tudo que do pó sai há de retornar. É o fim do
início. Só vai piorar. Nada a fazer longe do juízo da terra. A natureza seca e
o chão seco entram em
ebulição. Tudo agoniza embaixo dos nossos pés, o apagamento
do bom senso. As boas senhoras com suas coxas redondas e carnudas continuam se
esfregando e jurando que temem o pecado, mas não a sede. Vivem da lavagem das
suas almas e das suas calçadas. Seguram a mangueira toda espichada e fecundam o
asfalto ardente. A água jorra em abundância, lança de si entre aquelas mãos
carnosas e puras. Todas as tardes, tubos de borracha lavam suas coxas redondas
e carnudas. Não estão dispostas a cuidar da terra, apesar do calor que brota
entre as pernas, até que seja muito tarde. Os buracos da praça nem são tão
importantes.
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17 - Cio da terra
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