Becos sem saída - Tuca e Farofa
I
baitasar
Cariciosa chega ao sítio de trabalho e suas crianças - nascidas de mesmo parto - ficam ocultas do pensamento, distraídas na fantasia de agradar a patroa.
Derramar-se cedo da noite na cama e erguer-se antes do tempo de amanhecer é o
cotidiano de serviçal que as suas crianças carregam desde o berço — Bom dia,
dona Clara.
— Bom dia, Maria. — a vida não é justa, nem injusta, é apenas vida. As duas
mulheres regulam em pouca diferença de idade. Por certo, têm mais em comum como
irmãs do que teriam como mãe e filha, mas para Maria a outra é dona Clara. Nem
precisa aprender o jeito e responder a patroa, é tudo bem natural e dócil.
Clara não corrige aquele tratamento de dona da Maria, afinal, durante as horas
combinadas, ela contratou os serviços da Maria por pagamento. A vida não
tem dono, mas Clara é a dona. Maria é criada para servir.
Os golfinhos não são sempre dóceis, mas não se espera da Maria qualquer
rebuliço. Manda quem pode e obedece quem precisa. É bem isso, Clara tem o
dinheiro que a faz dona da Maria para varrer e lavar, a riqueza que Maria alega
é a sua pobreza que ela vende em silêncio, resignada com a vida da dona
Clara mais arranjada.
As lembranças dos gêmeos se tornam adormecidas, ficam diluídas, entregues ao sono. Ali, passa o tempo, largada nas vontades da patroa. Ela submerge
as suas cobiças pela troca do salário. Acredita que trabalhando com empenho e
disposição de ânimo alcança o reconhecimento da dona. E assim, adormentada dos
filhos, fora de si, vai até o quarto dos bebês. Olha a sua volta e pega as
coleiras. Depois de vestir a capa, uma em cada uma, sai passeando pelas ruas. Maria
leva as duas presas em suas gargalheiras.
Tuca e Farofa.
Felizes pelo passeio matinal. Abanam seus rabinhos de contentamento.
Cagam e mixam nos canteiros da rua enricada. Pulam e latem em suas pernas. A
cachorreira doméstica procura evitar surpresas indesejadas, garantindo
condições mínimas de segurança para ela, as cadelas e os passeantes. Poupa as
bichanas de ambientes conturbados e barulhentos. Seu instinto de mãe lhe
cochicha que os bichos precisam tranqüilidade e a sensação de que tudo está bem
e sob controle. Comportamento de medo, susto e espanto deixariam as três inseguras.
Poderiam ficar agressivas. Ela sabe que não pode perder o controle da situação,
das três é quem pensa melhor. A Farofa deita na calçada com as patas para cima,
toda mole, como a suplicar carinho nas saliências do ventre. Cariciosa faz que viu,
mas não viu e dá um pequeno puxão na guia. Lá se vão as três no seu passeio
matinal. Cariciosa com seu rabo de cavalo. Tuca e Farofa com suas fitinhas de
beleza nas orelhas. Duas cadelas e uma serviçal cachorreira.
Na volta da babá e seus bebês, por hábito, chegam os reclames da
vizinhança. Cá e lá más línguas há, são aquelas línguas que se arrastam estrada
afora — Nossos canteiros e calçadas não são banheiros!
Dona Clara põe as três sentadas na sala e fala das reclamações dos
vizinhos, cheia de cuidados, mas com energia dita as novas regras para os
passeios matinais — Eles têm razão, crianças... vocês não podem sair por ai
sujando a grama e as calçadas. — O que eu faço?
— Leve-as até a praça dos
pedalinhos.
— Mas daqui até os pedalinhos...
— Crianças prestem bem
atenção, não sujem mais na vizinhança. — e assim foi feito. Nas manhãs seguintes,
dona Clara recomendava e advertia as bichinhas — Vocês se comportem e esperem
chegar na praça, entenderam?
— Au-au, au-au, au-au! — Viu
Maria? As minhas queridas parecem gente...
— É mesmo, dona Clara.
Um pequeno e firme puxão nas guias determinava quem mandava. As bichinhas
foram se espremendo e cheirando até os pedalinhos — É isso, cada dia ensina
algo ao dia seguinte.
Assim, os dias e noites passam. O cotidiano chega para todos, até para os
cachorreiros.
O Natal se aproxima. As festas do final de ano deixam Cariciosa com
esperanças renovadas. Talvez, no ano que vem, uma vida nova. Talvez... talvez. Quer
reencontrar seu irmão Supimpa. O guri largou da farda de soldado e foi pelo
mundo na busca de riqueza. Um ano de poucas notícias. Quase nenhuma. Apenas,
aquela carta pra mãe, dando o noticiário da partida, lá pras minas de ouro.
Quem sabe, ela e o Manualdo consigam terminar o levantamento de tijolo da casa.
Pensam em fazer dois pisos. Os quartos e banheiro em cima, a cozinha e sala de
visitas na altura do chão. Por ora, basta acabar embaixo. Cada casa é um mundo
que procura emprego de mais ganho. Talvez... talvez — Esse ano novo vai ter que
render.
— Falando sozinha, minha
preta?
— Planos para o ano novo. — o
marido revira na cama e aprofunda o sono. Ela trata de fazer o mesmo. O tempo
de acordar vem a galope. Vira para o marido e o abraça. Dormem agarrados, um
dentro do abraço do outro.
O dia de Natal chega e as crianças da Cariciosa usam suas roupinhas novas
de segundo dono. Ganham muitos presentes de pouco uso da Clara. A Maria
Cariciosa pegou no jeito de não dizer dona Clara, quando está conversando
consigo mesma, a patroa tem um pouquinho mais que a própria idade dela. Um
pouco mais que moçoinha, mas já vai se desfazendo das coisas de costume da sua
filhinha. Maria Clara. Morta num pulo sobre uma vara de bambu. Foi para a terra
dos anjos. Subiu para o céu. Soldados do Senhor. Finou-se. Seu nome não é declamado
no casarão, apenas celebrado em reza quando dona Clara chama pela menininha
Maria Clara. O marido da dona Clara, delegado Calçacurta, está sempre nas
voltas de cuidar de algum baderneiro. Foge da casa. A patroa não reclama, mas
toda mulher reconhece outra que vive infeliz, com pouco amor. Mas isso é lá com
a patrona e o delegado. Ela precisa dar conta do seu canto. Hoje, pediu para
sair um pouco antes do horário e foi a comprar uma pequena lembrança para
todos.
Lá, pelo início da noite, estão reunidos na casa da mãe. A curiosidade é
maior que a obrigação de esperar o Papai Noel, com suas barbas brancas. Afinal,
ele nunca aparece por aqueles lados. Abrem os presentes. Nenhuma novidade. São nove
horas. Depois dos abraços sentam para comer a galinha com farofa.
Supimpa e Lamparina, cada um na sua razão, fazem ausência.
Naquele Natal, depois do banquete, a família está quase toda na praça do
chafariz. Foram assistir aos fogos. Hoje, vão estourar fogos de artifício. Tudo
um ensaio para o ano novo. A noite está radiante. Desde aquela loucura dos
ferimentos na terra e a cura com a plantação das árvores, a praça dos
pedalinhos voltou com sua calmaria familiar. O terreno curado fixa as raízes
naquelas terras de histórias escondidas. Memórias esquecidas.
Quando chega à meia-noite, os fogos aéreos começam a fazer claridade dos
céus. Estrelas cadentes que vêm e vão. Não param, não ficam. A cruz de madeira
está linda embaixo daquela cachoeira de fogo colorido — Olha aqueles ali... — Lindos!
— exclama Memória
— Mamã, olha ali, daquele
lado... — Meu Deus, como é lindo! — todos estão fixados naquelas explosões e
estrondos. A escuridão da noite se rasga em riscos barulhentos. Quando pensam
que acabou... mais estouros. Muitos fogos recheados de brilho e sonhos
— Meu Deus, isso é lindo! — O
colorido...
— Cada estouro é feito
diferente!
— Isso é coisa do demônio! —
Larga de besteira, mamã.
Retornam as suas casas. Memória carrega nos braços a sua Maria Destino
que dorme a sono solto. Maria Cariciosa e Manualdo, cada um no seu jeito,
transportam um dos gêmeos. As crianças adormeceram. Os acordados estão com a
sensação de quero mais — Pena que acabou. — Podiam ter mais uns estouros e
luzes.
Acomodam as crianças em seus colchões de espuma, mas continuam com as
conversas e as comidas, e as bebidas. A cervejaria vai solta de mão em mão, de
copo em copo, regando o saboreamento daqueles quitutes oferecidos na mesa:
arroz com banana, lentilha, batata-doce com maçã — Essa batata-doce tá uma
delícia! — Receita antiga.
— Mamã... conta como faz.
E conta sobre as cartas... o tormento do povo... do homem perseguido.
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Leia também:
26 - Coragens e embaraços
28 - Entre fuscas e opalas
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