quinta-feira, 2 de março de 2017

24.O Livro dos Abraços - A dignidade da arte - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


24. O Livro dos Abraços



A dignidade da arte    



Eu escrevo para os que não podem me ler. Os de baixo, os que esperam há séculos na fila da história, não sabem ler ou não tem com o quê. Quando chega o desânimo, me faz bem recordar uma lição de dignidade da arte que recebi há anos, num teatro de Assis, na Itália. Helena e eu tínhamos ido ver um espetáculo de pantomima, e não havia ninguém. Ela e eu éramos os únicos espectadores. Quando a luz se apagou, juntaram-se a nós o lanterninha e a mulher da bilheteria. E, no entanto, os atores, mais numerosos que o público, trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a glória de uma estréia com lotação esgotada. Fizeram sua tarefa entregando-se inteiros, com tudo, com alma e vida; e foi uma maravilha.


Nossos aplausos ressoaram na solidão da sala. Nós aplaudimos até esfolar as mãos.



A televisão /4


Rosa Maria Mateo, uma das figuras mais populares da televisão espanhola, me contou essa história. Uma mulher tinha escrito uma carta para ela, de algum lugarzinho perdido, pedindo que por favor contasse a verdade:


Quando eu olho para a senhora, a senhora está olhando para mim?

Rosa Maria me contou, e disse que não sabia o que responder.




A televisão/5


Nos verões, a televisão uruguaia dedica longos programas a Punta del Este. Mais interessadas nas coisas do que nas pessoas, as câmaras chegam ao êxtase quando exibem as casas dos ricos que estão de férias. Estas mansões ostentosas se parecem aos mausoléus de mármore e bronze no cemitério de La Recoleta, em Buenos Aires, que é a Punta del Este do depois.


Pela tela desfilam os eleitos e seus símbolos de poder. O sistema, que edifica a pirâmide social escolhendo pelo avesso, recompensa pouca gente. Eis aqui os premiados: são os usurários de boas unhas e os mercadores de dentes bons, os políticos de nariz crescente e os doutores de costas de borracha.

A televisão se propõe a adular os que mandam no Rio da Prata, mas sem querer cumpre uma função educativa exemplar: nos mostra os picos culminantes e neles dilata a breguice e o mau gosto dos triunfantes caçadores de dinheiro.

Debaixo da aparente estupidez, existe a estupidez verdadeira.




Celebração da desconfiança


No primeiro dia de aula, o professor trouxe um vidro enorme: — Isto está cheio de perfume — disse a Miguel Brun e aos outros alunos —. Quero medir a percepção de cada um de vocês. Na medida em que sintam o cheiro, levantem a mão.


E abriu o frasco. Num instante, já havia duas mãos levantadas. E logo cinco, dez, trinta, todas as mãos levantadas.

Posso abrir a janela, professor? — suplicou uma aluna, enjoada de tanto perfume, e várias vozes fizeram eco. O forte aroma, que pesava no ar, tinha-se tornado insuportável para todos.

Então o professor mostrou o frasco aos alunos, um por um. Estava cheio de água.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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25.O Livro dos Abraços - A cultura do terror/7 - Eduardo Galeano

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