sexta-feira, 10 de março de 2017

25.O Livro dos Abraços - A cultura do terror/7 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


25. O Livro dos Abraços




A cultura do terror/7

O colonialismo visível te mutila sem disfarce: te proíbe de dizer, te proíbe de fazer, te proíbe de ser. O colonialismo invisível, por sua vez, te convence de que a servidão é um destino e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser. 



A alienação /l

Em meus anos moços, fui caixa de banco. Recordo, entre os clientes, um fabricante de camisas. O gerente do banco renovava suas promissórias só por piedade. O pobre camiseiro vivia em perpétua soçobra. Suas camisas não eram ruins, mas ninguém as comprava.

Certa noite, o camiseiro foi visitado por um anjo. Ao amanhecer, quando despertou, estava iluminado. Levantou-se de um salto. 


A primeira coisa que fez foi trocar o nome de sua empresa, que passou a se chamar Uruguai Sociedade Anônima, patriótico nome cuja sigla é U. S. A. A segunda coisa que fez foi pregar nos colarinhos de suas camisas uma etiqueta que dizia, e não mentia: Made in U. S. A. A terceira coisa que fez foi vender camisas feito louco. E a quarta coisa que fez foi pagar o que devia e ganhar muito dinheiro.



A alienação/2

Os que mandam acreditam que melhor é quem melhor copia. A cultura oficial exalta as virtudes do macaco e do papagaio. A alienação na América Latina: um espetáculo de circo. Importação, impostação: nossas cidades estão cheias de arcos do triunfo, obeliscos e partenons. A Bolívia não tem mar, mas tem almirantes disfarçados de Lord Nelson. Lima não tem chuva, mas tem telhados a duas águas e com calha. Em Manágua, uma das cidades mais quentes do mundo, condenada à fervura perpétua, existem mansões que ostentam soberbas lareiras, e nas festas de Somoza as damas da sociedade exibiam estolas de raposa prateada.




A alienação/3

Alaistair Reid escreve para The New Yorker, mas quase não vai a Nova Iorque. Ele prefere viver numa praia perdida da República Dominicana. Nessa praia desembarcou Cristóvão Colombo, alguns séculos atrás, numa de suas excursões ao Japão, e desde aqueles tempos nada mudou. 

De vez em quando, o carteiro aparece entre as árvores. O carteiro vem dobrado debaixo da carga. Alaistair recebe montanhas de correspondência. Dos Estados Unidos é bombardeado por ofertas comerciais, folhetos, catálogos, luxuriosas tentações da civilização de consumo incitando a comprar. 

Uma vez, entre muita papelada, chegou a propaganda de uma máquina de remar. Alaistair mostrou-a a seus vizinhos, os pescadores.

Dentro de casa? Se usa dentro de casa?

Os pescadores não conseguiam acreditar. 

Sem água? Rema-se assim, sem água? Não podiam acreditar, não podiam entender: 

E sem peixes? Sem sol? E sem céu? 

Os pescadores disseram a Alaistair que eles se levantavam todas as noites, muito antes do alvorecer, e se metiam mar adentro e jogavam suas redes enquanto o sol se erguia no horizonte, e que essa era a sua vida, e que gostavam daquela vida, mas que remar era a única coisa de merda naquele assunto inteiro: 

Remar é a única coisa que odiamos — disseram os pescadores. 

Então Alaistair explicou-lhes que a máquina de remar servia para fazer ginástica. 

Para quê? 

Ginástica

Ah, bom. E o que é ginástica?



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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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24.O Livro dos Abraços - A dignidade da arte - Eduardo Galeano




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