terça-feira, 28 de março de 2017

Gente Pobre - 09. 1 de junho II - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


09.




1 de junho






II




Ao princípio, enquanto nos não habituámos, tanto a minha mãe como eu sentimos uma certa tristeza na nossa nova casa, essa tristeza que é costume experimentar-se sempre que se nos deparam perspectivas de um futuro pouco tranquilizador. Ana Fedorovna vivia numa das principais ruas de Vasilievski Ostrov, numa casa de sua propriedade, com cinco divisões. Destas, três eram ocupadas por Ana e Sacha, uma minha prima órfã de quem aquela tomara conta em criança; eu e minha mãe vivíamos noutra, e na quinta, pegada à nossa, habitava um pobre estudante de nome Pokrovski, o único que pagava aluguer.

Ana Fedorovna vivia muito bem — melhor mesmo do que seria lícito esperar-se; porém, de onde lhe vinham os rendimentos de que gozava e o gênero de ocupações em que entretinha a vida, isso constituía um enigma. A verdade é que ela não parava um momento; a pé ou de carro, ela andava sempre numa roda-viva, entrando e saindo de casa muitas vezes durante o dia. Estava relacionada com pessoas das mais diversas camadas sociais. Recebia a todo momento visitas de pessoas que vinham falar-lhe de negócios e geralmente se demoravam breves instantes. Quando a campainha tocava, a mamã costumava retirar-se comigo para os nossos aposentos, o que era motivo para Ana Fedorovna se zangar e repetir-nos continuamente que éramos umas orgulhosas. «Ainda se tivessem de que se orgulhar, vá — dizia —; mas na situação em que se encontram, sem terem nenhum motivo de orgulho...» E durante horas seguidas não se calava, sempre no mesmo tom. Eu nunca lhe ouvira estas censuras; só agora, ao escutá-las, compreendi, ou antes, adivinhei a razão por que minha mãe se negara, a princípio, a aceitar a hospitalidade que minha prima lhe oferecia.

É uma má mulher e o seu gosto era atormentar-nos constantemente. Ainda hoje não consigo descortinar o motivo por que nos teria convidado a ir viver para a sua companhia. A princípio, ainda nos tratou razoavelmente, era mesmo carinhosa conosco; mas não tardou em mostrar o seu verdadeiro caráter, logo que lhe foi possível verificar que nos achávamos desamparadas de todo e inteiramente à sua mercê. Mais tarde, voltou a ter comigo as atenções anteriores, talvez exageradas; chegava, por vezes, a dirigir-me lisonjas descabidas; mas, antes disso, sofri tanto como a minha mãe. A cada passo nos dirigia ásperas censuras, lançando-nos em rosto os benefícios que nos fazia. Apresentava-nos aos estranhos como parentes pobres — uma viúva e uma órfã desamparadas, que só por caridade cristã recebera sob o seu teto e sentara à sua mesa. À hora das refeições, não tirava os olhos dos bocados que levávamos à boca. No entanto, se não comíamos, ou comíamos pouco, isso não era para ela motivo de regozijo; perguntava-nos então se não achávamos boa a comida, se lhe encontrávamos qualquer defeito... «Dou-lhes do que tenho e do mesmo que eu como — declarava. — Talvez vocês sozinhas pudessem arranjar-se melhor, isso não sei...» Estava sempre a dizer do papá tudo o que há de pior; não podia viver sem o criticar. Afirmava que ele quisera ser sempre mais do que ninguém, mas agora podia ver-se a verdade: deixara uma viúva e uma órfã, condenadas a morrer de fome na rua se não tivessem encontrado uma alma caritativa entre os parentes, isto é, ela. E isto ainda não era nada! As suas palavras causavam mais asco do que sofrimento. A mamã levava a vida a chorar. A sua saúde piorava de dia para dia, enfraquecia a olhos vistos; contudo, trabalhávamos de manhã à noite. Costurávamos para fora, o que não agradava muito a Ana Fedorovna. Dizia que a sua casa não era nenhuma oficina. Nós, porém, para nos vestirmos, tínhamos de trabalhar, isto para não necessitarmos de que nos dessem tudo. Por isso, trabalhávamos o mais que podíamos e íamos economizando, a fim de um dia dispormos do bastante para alugarmos um quartinho para nós ambas. Mas o mal de minha mãe, devido ao excessivo trabalho, foi-se agravando; cada dia estava mais fraca. A doença minava-lhe a existência e ia empurrando-a para a cova. Eu via-o, sentia-o e nada podia fazer para o evitar!

Os dias sucediam-se, sempre iguais. Levávamos uma vida recatada, como se vivêssemos na aldeia. Ana Fedorovna, à medida que verificava a sua absoluta superioridade e que nada tinha a temer, ia-se humanizando. De resto, nunca a havíamos contrariado. O nosso quarto ficava separado do dela por um corredor e contíguo ao de Pokrovski, como já disse. O estudante ensinava a Sacha francês e alemão, história e geografia, isto é, todas as ciências, como Ana costumava dizer. Em paga, não lhe cobravam qualquer importância pela comida.

Sacha tinha então cerca de treze anos; era muito inteligente, mas extremamente grosseira. Certo dia Ana Fedorovna lembrou à minha mãe que talvez fosse conveniente eu receber algumas lições juntamente com a mocita, já que deixara o colégio antes de terminar os meus estudos.

A mamã ficou, naturalmente, muito satisfeita e, assim, Pokrovski deu-nos lição às duas, durante um ano.

O referido Pokrovski era um rapaz muito pobre, cuja saúde não lhe permitira seguir regularmente os seus estudos universitários. Por isso, só por força do hábito é que lá em casa lhe chamávamos estudante. Levava uma vida tão modesta e tranquila, que do nosso quarto nunca ouvíamos o mais ligeiro ruído no seu. Distinguia-se ainda por uma singularidade do seu exterior: era um pouco curvado e o seu andar era desajeitado; e tinha uma pronúncia tão esquisita que, a princípio, logo que o via desatava a rir. Sacha, especialmente durante a lição, estava sempre a ridicularizá-lo. Ele, porém, também não lhe ficava a dever nada; encolerizava-se com frequência; a menor graça punha-o fora de si; ralhava conosco, soltava berros e, às vezes, levantava-se e saía furioso, dando por finda a lição antes do tempo, indo meter-se no quarto. Ali passava dias inteiros, sentado a ler. Dava também lições noutras casas, e o dinheiro que ganhava aplicava-o logo na compra de mais livros.

Com o andar do tempo, fui-o conhecendo mais a fundo, acabando por verificar que era o homem mais honrado e bondoso que até então eu conhecera. A mamã tinha-o também em grande estima. Com a convivência chegou a ser o meu melhor amigo... depois de minha mãe, claro.

Ao princípio, apesar de eu já ser uma mulherzinha, associava-me a todas as partidas que Sacha tramava contra ele; às vezes passávamos horas inteiras a estudar a forma de fazermos troça dele e pôr à prova a sua paciência. Tornava-se verdadeiramente caricato quando se zangava, e nós queríamos divertir-nos à sua custa. Ainda hoje sinto vergonha quando me lembro disso. Certo dia irritámo-lo tanto, que o pobre até chorou; e ouvi-o então murmurar por entre dentes: «Que crianças tão más!» Fiquei desorientada: despertava em mim, pela vez primeira, como que um misto de vergonha, pesar e compaixão. Corei até à raiz dos cabelos e, com as lágrimas a bailarem-me nos olhos, supliquei-lhe que não se ofendesse com as nossas grosseiras travessuras. Mas ele fechou o livro e encaminhou-se para o seu quarto, sem terminar a lição.




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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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