quarta-feira, 15 de março de 2017

O Segundo Sexo - 2 Fatos e Mitos: De onde vem essa submissão na mulher?

Simone de Beauvoir



2. Fatos e Mitos



De onde vem essa submissão na mulher?





O PRÓPRIO ENUNCIADO do problema sugere-me uma primeira resposta. É significativo que eu coloque esse problema. Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade (1). Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente a declarar: "Sou uma mulher". Essa verdade constitui o fundo sobre o qual se erguerá qualquer outra afirmação. Um homem não começa nunca por se apresentar como um indivíduo de determinado sexo: que seja homem é natural. É de maneira formal, nos registros dos cartórios ou nas declarações de identidade que as rubricas, masculino, feminino, aparecem como simétricas. A relação dos dois sexos não é a das duas eletricidades, de dois polos. O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos "os homens" para designar os seres humanos, tendo-se assimilado ao sentido singular do vocábulo vir o sentido geral da palavra homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade. Agastou-me, por vezes, no curso de conversações abstratas, ouvir os homens dizerem-se: "Você pensa assim porque é uma mulher". Mas eu sabia que minha única defesa era responder: "penso-o porque é verdadeiro", eliminando assim minha subjetividade. Não se tratava, em hipótese alguma, de replicar: "E você pensa o contrário porque é um homem", pois está subentendido que o fato de ser um homem não é uma singularidade; um homem está em seu direito sendo homem, é a mulher que está errada. Praticamente, assim como para os Antigos havia uma vertical absoluta em relação à qual se definia a oblíqua,


(1) O relatório Kinsey, por exemplo, limita-se a definir as características sexuais do homem norte-americano, o que é muito diferente.


há um tipo humano absoluto que é o masculino. A mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjetividade; diz-se de bom grado que ela pensa com suas glândulas. O homem esquece soberbamente que sua anatomia também comporta hormônios e testículos. Encara o corpo como uma relação direta e normal com o mundo que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão. "A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades", diz Aristóteles. "Devemos considerar o caráter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural". E Sto. Tomás, depois dele, decreta que a mulher é um homem incompleto, um ser "ocasional". É o que simboliza a história do Gênese em que Eva aparece como extraída, segundo Bossuet, de um "osso supranumerário" de Adão. A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. "A mulher, o ser relativo...", diz Michelet. E é por isso que Benda afirma em Rapport d'Uriel: "O corpo do homem tem um sentido em si, abstração feita do da mulher, ao passo que este parece destituído de significação se não se evoca o macho... O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem". Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o "sexo" para dizer que ela se apresenta diante do macho como um ser sexuado: para ele, a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro (1).


(1) Essa ideia foi expressa em sua forma mais explícita por E. Levinas em seu ensaio sobre Le Temps et l'Autre. Assim se exprime ele: "Não haveria uma situação em que a alteridade definiria um ser de maneira positiva, como essência? Qual é a alteridade que não entra pura e simplesmente na oposição das duas espécies do mesmo gênero? Penso que o contrário absolutamente contrário, cuja contrariedade não é em nada afetada pela relação que se pode estabelecer entre si e seu correlativo, a contrariedade que permite ao termo permanecer absolutamente outro, é o feminino. O sexo não é uma diferença específica qualquer. . . A diferença dos sexos não é tampouco uma contradição. . . Não é também a dualidade de dois termos complementares, porque esses dois termos complementares supõem um todo preexistente... A alteridade realiza-se nc feminino. Termo do mesmo quilate mas de sentido oposto à consciência". Suponho que Levinas não esquece que a mulher é igualmente consciência para si. Mas é impressionante que adote deliberadamente um ponto de vista de homem sem assinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto. Quando escreve que a mulher é mistério, subentende que é mistério para o homem. De modo que essa descrição que se apresenta com intenção objetiva é, na realidade, uma afirmação do privilégio masculino. 


A categoria do Outro é tão original quanto a própria consciência. Nas mais primitivas sociedades, nas mais antigas mitologias, encontra-se sempre uma dualidade que é a do Mesmo e a do Outro. A divisão não foi estabelecida inicialmente sob o signo da divisão dos sexos, não depende de nenhum dado empírico: é o que se conclui, entre outros, dos trabalhos de Granet sobre o pensamento chinês de Dumézil sobre as índias e Roma. Nos pares Varuna-Mitra, Urano-Zeus, Sol-Lua, Dia-Noite, nenhum elemento feminino se acha implicado a princípio; nem tampouco na oposição do Bem ao Mal, dos princípios fastos e nefastos, da direita e da esquerda, de Deus e Lúcifer; a alteridade é uma categoria fundamental do pensamento humano. Nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si. Basta três viajantes reunidos por acaso num mesmo compartimento para que todos os demais viajantes se tornem "os outros" vagamente hostis. Para os habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo lugarejo são "outros"' e suspeitos; para os habitantes de um país, os habitantes de outro país são considerados "estrangeiros". Os judeus são "outros" para o anti-semita, os negros para os racistas norte-americanos, os indígenas para os colonos, os proletários para as classes dos proprietários. Ao fim de um estudo aprofundado das diversas figuras das sociedades primitivas, Lévi-Strauss pôde concluir: "A passagem do estado natural ao estado cultural define-se pela aptidão por parte do homem em pensar as relações biológicas sob a forma de sistemas de oposições: a dualidade, a alternância, a oposição e a simetria, que se apresentam sob formas definidas ou formas vagas, constituem menos fenômenos que cumpre explicar que os dados fundamentais e imediatos da realidade social(l). Tais fenômenos não se compreenderiam se a realidade humana fosse exclusivamente um mitsein baseado na solidariedade e na amizade. Esclarece-se, ao contrário, se, segundo Hegel, descobre-se na própria consciência uma hostilidade fundamental em relação a qualquer outra consciência; o sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o objeto.


(1) Ver C. Lévi-Strauss, Les Structures élémentaires de la Parenté. Agradeço a Lévi-Strauss a gentileza de me ter comunicado as provas de sua tese que, entre outras, aproveitei amplamente na segunda parte, págs. 86-102.


Só que a outra consciência lhe opõe uma pretensão recíproca: em viagem, o nativo percebe com espanto que há, nos países vizinhos, nativos que o encaram, eles também, como estrangeiro; entre aldeias, clãs, nações, classes, há guerras, potlatchs, tratados, lutas que tiram o sentido absoluto da ideia do Outro e descobrem-lhe a relatividade; por bem ou por mal os indivíduos e os grupos são obrigados a reconhecer a reciprocidade de suas relações. Como se entende, então, que entre os sexos essa reciprocidade não tenha sido colocada, que um dos termos se tenha imposto como o único essencial, negando toda relatividade em relação a seu correlativo, definindo este como a alteridade pura? Por que as mulheres não contestam a soberania do macho? Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como Outro define o Um; ele é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na mulher?




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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.

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Leia também:


O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?

O Segundo Sexo - 3 Fatos e Mitos: como tudo isso começou?


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