quinta-feira, 30 de março de 2017

8.O Estrangeiro: Iniciamos o caminho - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 1


8. Iniciamos o caminho




Iniciamos o caminho. Reparei então que o Sr. Perez coxeava ligeiramente. Pouco a pouco, o carro ia mais depressa e o velho perdia terreno: Um dos homens que rodeava o carro também se deixou ultrapassar e seguia agora ao meu nível. Eu estava admirado pela rapidez com que o sol subia no horizonte. Dei por que o ar era há muito cruzado pelo canto dos insetos e pelos estalidos das ervas. O suor caía-me pela cara abaixo. Como não trazia chapéu, limpava-me com um lenço. O empregado da agência disse-me então qualquer coisa que não ouvi. Enquanto, com a mão esquerda, limpava a testa com um lenço, com a mão direita levantava a pala do boné. Disse-lhe: "O quê?" Ele repetiu, apontando para o céu: "Está forte". Eu disse: "Sim". Pouco depois, perguntou-me: "É a sua mãe, quem ali vai?" Voltei a dizer: "Sim". "Era muito velha?" Respondi: "Assim, assim", porque não sabia ao certo quantos anos tinha. O homem calou-se. Voltei-me e vi o velho Perez uns cinquenta metros atrás de nós. Com o chapéu na mão, apressava-se o mais que podia: Olhei também para o diretor. Andava com muita dignidade, sem gestos inúteis. Algumas gotas de suor escorriam-lhe pela testa, mas não as enxugava. 

Parecia-me que o cortejo ia um pouco mais depressa. Em volta de mim, era sempre a mesma paisagem luminosa, inundada de sol. O brilho do céu era insustentável. Em dado momento, passamos por um troço de estrada que havia sido arranjado há pouco. O sol derretia o alcatrão. Os pés enterravam-se, deixando aberta a carne luzidia do alcatrão. Por cima do carro, o chapéu do cocheiro, de couro escuro, parecia ter sido moldado na mesma lama negra. Sentia-me um pouco perdido entre o céu azul e branco e a monotonia destas cores, negro pegajoso do alcatrão aberto, negro baço dos fatos, negro lacado do carro. Tudo isto, o sol, o cheiro de borracha e de óleo do automóvel, o do verniz e o do incenso, o cansaço de uma noite de insónia, me perturbava o olhar e as ideias. Voltei-me uma vez mais: o velho Perez apareceu-me muito ao longe, perdido numa nuvem de calor, e depois não o tornei a ver. Procurei-o com o olhar e vi que abandonara a estrada e metera pelos campos dentro. Reparei que, na minha frente, a estrada virava para um lado. Compreendi que o Perez, conhecendo a terra, cortava a direito para nos apanhar. Na curva, conseguira juntar-se conosco. Em seguida voltamos a perdê-lo. Tomou ainda vários atalhos através dos campos. Quanto a mim, sentia o sangue latejar-me nas fontes. 

Depois tudo se passou com tanta rapidez, tanta certeza, tanta naturalidade, que já não me lembro de nada. Uma coisa, apenas: à entrada da aldeia, a enfermeira delegada falou-me. Possuía uma voz singular, que não acertava com a cara, uma voz trémula e melodiosa. Disse-me: "Se vamos muito devagar, arriscamo-nos a uma insolação. Mas se vamos muito depressa, transpiramos e na igreja apanhamos calor e frio". Tinha razão. Era um beco sem saída. Conservei ainda algumas imagens deste dia: por exemplo, a cara do Perez quando, pela última vez, se juntou conosco próximo da aldeia. Grossas lágrimas de enervamento e de tristeza corriam-lhe pela cara abaixo. Mas, por causa das rugas, não caíam. Dividiam-se, juntavam-se e formavam uma máscara de água nessa cara arruinada. Houve ainda a igreja e os aldeões nos passeios, os gerânios vermelhos nos jazigos do cemitério, o desmaio do Perez (dir-se-ia um boneco partido), a terra cor de sangue que atiravam para cima do caixão da mãe, a carne branca das raízes que se lhes juntavam, ainda mais gente, vozes, a aldeia, a espera diante de um café, o incessante roncar do motor, e a minha alegria quando o autocarro entrou no ninho de luzes de Argel e que pensei que me ia deitar e dormir durante doze horas.




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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:


7.O Estrangeiro: No asilo - Albert Camus

9.O Estrangeiro: Ao acordar, compreendi - Albert Camus


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