sábado, 18 de março de 2017

26.O Livro dos Abraços - Dizem as paredes/3 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


26. O Livro dos Abraços




Dizem as paredes/3

Em Montevidéu, no bairro Braço Oriental: Estamos aqui sentados, vendo como matam os nossos sonhos. E, no cais na frente do porto de Buceo, em Montevidéu: Bagre velho: não se pode viver com medo a vida inteira. Em letras vermelhas, ao longo de um quarteirão inteiro da avenida Cólon, em Quito:

E se nos juntarmos para dar um chute nesta grande bolha cinzenta?




Nomes/1


As pessoas, os bichos e as coisas acudiam a casa dos nomes, querendo chamar-se. Os nomes tiniam, oferecendo-se: prometiam bons sons e longos ecos. A casa estava sempre cheia de pessoas e bichos e coisas experimentando nomes. Helena sonhou com a casa dos nomes e lá descobriu a cachorrinha Pepa Lumpen, que estava à procura de um nome mais respeitável. 




Nomes/2


Artur o Alape conta que Manuel Marulanda Vélez, o famoso guerrilheiro colombiano, não se chamava assim. Há quarenta anos, quando empunhou armas, ele se chamava Pedro Antonio Marín. Naquela época, Marulanda era outro: negro de pele, grandalhão de tamanho, pedreiro de ofício e canhoto de ideias. Quando os policiais espancaram Marulanda até matá-lo, seus companheiros se reuniram em assembleia e decidiram que Marulanda não podia se acabar. Por unanimidade deram seu nome a Marín, que o carrega desde aquele tempo.

O mexicano Pancho Villa também levava o nome de um amigo morto pela polícia. 



Nomes/3


Assino Galeano, que é meu sobrenome materno, desde os tempos em que comecei a escrever. Isto aconteceu quando eu tinha dezenove anos, ou talvez apenas alguns dias, porque chamar-me assim foi um modo de nascer de novo.


Antes, quando era garoto e publicava desenhos, assinava Gius, por causa da difícil pronúncia espanhola de meu sobrenome paterno (meu tataravô galês se chamava Hughes, e aos quinze anos fez-se ao mar no porto de Liverpool e chegou ao Caribe, à República Dominicana, e tempos depois ao Rio de Janeiro, e finalmente a Montevidéu. Em Montevidéu atirou ao arroio Miguelete seu anel de maçom, e nos campos de Paysandú cravou as primeiras cercas de arame farpado e fez-se dono de terras e gentes, e morreu há mais de um século, enquanto traduzia Martin Fierro para o inglês.

Ao longo dos anos escutei as mais diferentes versões sobre essa questão de meu sobrenome escolhido. A versão mais boba, que ofende a inteligência, me atribui uma intenção anti-imperialista. A versão mais cômica supõe fins de conspiração ou contrabando. E a versão mais fodida me converte na ovelha vermelha da família: inventa para mim um pai inimigo e oligárquico, no lugar do pai real que tenho, que é um sujeito bacana que sempre ganhou a vida com o trabalho ou com a boa sorte que tem na loteria. O pintor japonês Hokusai mudou de nome sessenta vezes para celebrar seus sessenta nascimentos. No Uruguai, país formal, teria sido enjaulado como louco ou perverso simulador de identidades.



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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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