terça-feira, 28 de setembro de 2021

Hilda Hilst - As coisas que procuro

 Hilda Hilst



comecemos pela poesia...


“Me fizeram de pedra/ quando eu queria/ ser feita de amor”





As coisas que procuro
Não têm nome.
A minha fala de amor
Não tem segredo.

Perguntam-me se quero
A vida ou a morte.
E me perguntam sempre
Coisas duras.

Tive casa e jardim.
E rosas no canteiro.
E nunca perguntei
Ao jardineiro
O porquê do jasmim
— Sua brancura, o cheiro.

Queiram-me assim.
Tenho sorrido apenas.
E o mais certo é sorrir
Quando se tem amor
Dentro do peito.



[17, Roteiro do silêncio]






As asas não se concretizam.
Terríveis e pequenas circunstâncias
Transformam claridades, asas, grito,
Em labirinto de exígua ressonância.

Os solilóquios do amor não se eternizam.

E no entanto, refaço minhas asas
Cada dia. E no entanto, invento amor
Como as crianças inventam alegria.



[18, Roteiro do silêncio]







Respiro e persigo
uma luz de outras vidas


E ainda que as janelas se fechem, meu pai
É certo que amanhece.








Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.

Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas.

Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.

Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.

Porque assim é preciso
Para que tu vivas.





Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXX

Júlio Verne



A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XXX

EM QUE PHILEAS FOGG SIMPLESMENTE CUMPRE O SEU DEVER



Três viajantes, inclusive Passepartout, haviam desaparecido. Teriam sido mortos na luta? Estariam prisioneiros dos selvagens? Ainda não se podia saber.

Os feridos eram numerosos, mas nenhum tinha sido atingido mortalmente. Um dos em estado mais grave era o coronel Proctor, que tinha combatido bravamente, e que uma bala na verilha derrubara. Foi transportado para a estação com os outros viajantes, cujo estado reclamava cuidados imediatos. Mrs. Aouda estava salva. Phileas Fogg, que não se poupara, não tinha nem um arranhão. Fix estava ferido num braço, ferimento sem importância. Mas Passepartout faltava, e as lágrimas corriam dos olhos da jovem.

Já então todos os viajantes tinham saído do trem. As rodas dos vagões estavam manchadas de sangue. Dos cubos e dos raios pendiam informes postas de carne. Via-se a perder de vista na pradaria branca longos rastros avermelhados. Os últimos índios desapareciam então ao sul, pelos lados do Republican River.

Mr. Fogg, braços cruzados, permanecia imóvel. Tinha uma grave decisão a tomar. Mrs. Aouda, próxima dele, o contemplava sem proferir uma palavra...

Ele compreendeu este olhar. Se o seu servidor estava prisioneiro, não deveria tudo arriscar para arrancá-lo dos índios?

— Vou achá-lo morto ou vivo, disse simplesmente para Mrs. Aouda.

— Ah! senhor... senhor Fogg! exclamou a jovem, agarrando as mãos do seu companheiro, que cobriu de lágrimas.

— Vivo! acrescentou Mr. Fogg, se não perdermos um minuto!

Com esta resolução Phileas Fogg sacrificava-se completamente. Acabara de pronunciar sua ruína. Um dia apenas de atraso o faria perder o paquete de Nova York. Sua aposta estava irrevogavelmente perdida. Mas diante deste pensamento: “É o meu dever”, não tinha hesitado.

O capitão que comandava o forte Kearney estava ali. Seus soldados — uns cem homens — tinham se posto na defensiva para o caso dos Sioux terem dirigido um ataque direto contra a estação.

— Senhor, disse Mr. Fogg ao capitão, três viajantes desapareceram.

— Mortos? perguntou o capitão.

— Mortos ou prisioneiros, respondeu Phileas Fogg. É desta incerteza que precisamos sair. Sua intenção é perseguir os Sioux?

Dificilmente, senhor, disse o capitão. Estes índios podem fugir para além do Arkansas! Não poderia abandonar o forte que me foi confiado.

— Senhor, retomou Phileas Fogg, trata-se da vida de três homens.

— Sem dúvida... mas posso arriscar a vida de cinqüenta para salvar três?

— Não sei se pode, senhor, mas deve.

— Senhor, respondeu o capitão, ninguém aqui precisa me ensinar qual é o meu dever.

— Que seja, disse friamente Pbileas Fogg. Irei só!

— Só, senhor! exclamou Fix, que tinha se aproximado, ir só em perseguição dos indios!

— Quer então que eu deixe perecer esse infeliz, a quem todos os que estão aqui vivos devem a vida? Irei.

— Pois bem, não, não irá só! exclamou o capitão, comovido, apesar de tudo. Não! Tem um coração valente!... Trinta voluntários! acrescentou ele, voltando-se para os soldados.

Toda a companhia deu um passo à frente. O capitão só teve que escolher entre seus bravos. Trinta soldados foram designados, e um velho sargento se pôs à frente deles.

— Obrigado, capitão! disse Mr. Fogg.

— Permite-me acompanhá-lo? perguntou Fix ao gentleman.

— Faça o que achar melhor, senhor, respondeu Phileas Fogg. Mas se me quer me fazer um favor, fique junto de Mrs. Aouda. Caso me aconteça alguma desgraça...

Uma palidez súbita invadiu o rosto do inspetor de polícia. Separar-se do homem que tinha seguido passo a passo e com tanta persistência! Deixá-lo aventurar-se assim naquele deserto! Fix olhou atentamente o gentleman, e, fosse como fosse, apesar das suas desconfianças, apesar do combate que travava interiormente, baixou os olhos diante daquele olhar calmo e sincero.

— Ficarei, disse.

Instantes depois, Mr. Fogg tinha apertado a mão da jovem; depois, após lhe ter entregue sua preciosa sacola de viagem, partiu com o sargento e sua pequena tropa.

Mas antes de partir, tinha dito aos soldados:

— Meus amigos, há mil libras para vós se salvarmos os prisioneiros.

Era meio dia e alguns minutos.

Mrs. Aouda tinha se retirado para um quarto da estação, e aí, sozinha, ficou aguardando, pensando em Phileas Fogg, em sua generosidade simples e grandiosa, em sua tranqüila coragem. Mr. Fogg tinha sacrificado sua fortuna, e agora punha sua vida em perigo, tudo sem hesitação, por dever, sem frases. Phileas Fogg era um herói aos seus olhos.

O inspetor Fix, este, não pensava assim, e não podia conter sua agitação. Passeava febrilmente pela plataforma da estação. Por um momento subjugado, voltava a ser ele mesmo. Depois de Fogg partir, compreendia a tolice que tinha feito deixando-o partir. Como! o homem que tinha seguido ao redor do mundo, tinha consentido em separar-se dele! Sua índole voltava a conduzi-lo, se recriminava, se acusava, tratava a si mesmo como se fosse o comissário da polícia metropolitana admoestando um agente apanhado em flagrante delito de ingenuidade.

— Fui inepto! pensava. O outro por certo lhe disse quem eu era! Partiu, não volta mais! Onde pegá-lo agora? Mas como pude me deixar fascinar assim, eu, Fix, que tenho no bolso o seu mandado de prisão! Decididamente não passo de uma azêmula!

Assim raciocinava o inspetor de polícia, enquanto as horas se escoavam lentamente. Não sabia o que fazer. Às vezes tinha vontade de dizer tudo a Mrs. Aouda. Mas compreendia como seria recebido pela jovem. Que decisão tomar? Estava tentado a sair pelas pradarias brancas, em perseguição de Fogg! Não lhe parecia impossível reencontrá-lo. Os passos do destacamento estavam ainda impressos no neve!... Mas logo, sob uma nova camada, todas as pegadas desapareceriam.

Então o desânimo apossou-se de Fix. Experimentou como que um invencível desejo de abandonar a partida. Ora, precisamente, esta oportunidade de deixar a estação de Kearney e de continuar a viagem, tão fecunda em transtornos, lhe foi oferecida.

Com efeito, perto das duas depois do meio dia, enquanto a neve caía em grandes flocos, ouviram-se longos apitos que vinham do leste. Uma enorme sombra, precedida por um clarão amarelado, avançava lentamente, consideravelmente aumentada pelas brumas, que lhe davam um aspecto fantástico.

Contudo não se esperava ainda nenhum trem vindo de leste. O socorro pedido pelo telégrafo não poderia chegar tão cedo, e o trem de Omaha para São Francisco só deveria passar no dia seguinte.
— Logo se soube o que acontecia.

Esta locomotiva que andava com pouco vapor, soltando grandes apitos, era aquela que, depois de ter sido desprendida do trem, tinha continuado sua rota com velocidade vertiginosa, levando o caldeireiro e o maquinista inanimados. Tinha corrido sobre os rails por diversas milhas; depois, o fogo tinha amortecido, por falta de combustível; o vapor perdera a força, e uma hora depois, diminuindo pouco a pouco sua marcha, a máquina parara afinal vinte milhas depois da estação de Kearney .

Nem o maquinista nem o fogueiro tinham sucumbido, e, depois de um desmaio bastante prolongado, tinham voltado a si.

A máquina estava então parada. Quando se viu no deserto, a locomotiva só, sem vagões atrás, o maquinista compreendeu o que tinha ocorrido. Como a locomotiva tinha se desprendido do trem, não pôde adivinhar, mas não tinha nenhuma dúvida de que o trem, tendo ficado para trás, estava em perigo.

O maquinista nem hesitou sobre o que deveria fazer. Continuar na direção de Omaha era prudente; voltar para o trem, que os índios talvez ainda pilhassem, era perigoso... Que importa! Pás de carvão e lenha foram lançadas no fogo da caldeira, o fogo se reanimou, a pressão aumentou de novo, e, pelas duas depois do meio dia, a máquina voltava para trás em direção da estação de Kearney . Era ela que apitava na bruma.

Foi uma grande satisfação para os viajantes, quando viram a locomotiva pôr-se na frente do trem. Iam poder continuar a viagem tão desgraçadamente interrompida.

À chegada da máquina, Mrs. Aouda tinha saído da estação, e dirigindo-se ao condutor:

— Vai partir? perguntou.

— Em instantes, madame.

— Mas os prisioneiros... nossos desafortunados companheiros...

— Não posso interromper o serviço, respondeu o condutor. Já temos três horas de atraso.

— E quando passará o outro trem que vem de São Francisco?

— Amanhã à noite, madame.

— Amanhã à noite! mas será muito tarde. É preciso esperar...

— É impossível, respondeu o condutor. Se quiser partir, suba.

— Não partirei, respondeu a jovem. Fix tinha escutado esta conversa. Alguns instantes antes, quando todos os meios de locomoção lhe faltavam, estava resolvido a deixar Kearney , e agora que o trem se achava ali, prestes a partir, que só tinha de retomar o seu lugar no vagão, uma força irresistível o prendia no chão. A plataforma da estação lhe queimava os pés, e ele não podia levantá-los. A luta recomeçou dentro dele. A cólera do insucesso o sufocava. Queria lutar até o fim.

Entrementes os viajantes e alguns feridos — entre outros o coronel Proctor, cujo estado era grave — tinham tomado lugar nos vagões. Ouvia-se o ruído da caldeira em ebulição, e o vapor escapava pelas válvulas. O maquinista apitou, o trem se pôs em movimento, e desapareceu bem depressa, misturando sua fumaça aos turbilhões de neve.

O agente Fix tinha ficado.

Algumas horas se escoaram. O tempo estava muito mau, o frio intenso. Fix, sentado sobre um banco na estação, permanecia imóvel. Podia-se supor que dormia. Mrs. Aouda, apesar da ventania, deixava a cada instante o quarto que tinha sido colocado à sua disposição. Vinha à extremidade da plataforma, procurando ver através da tempestade de neve, querendo penetrar com o olhar esta bruma que reduzia o horizonte à sua volta, tentando escutar se algum barulho se fazia ouvir. Mas nada. Voltava a entrar, toda transida, para voltar momentos depois, e sempre inutilmente.

Entardeceu. O pequeno destacamento não estava ainda de volta. Onde estaria neste momento? Teria alcançado os índios? Teria havido luta, ou os soldados, perdidos no nevoeiro, erravam ao acaso? O capitão do forte Kearney estava muito inquieto embora não quisesse deixar transparecer sua inquietude. Anoiteceu, a neve tombou menos abundantemente, mas a intensidade do frio aumentou. O olhar mais intrépido não teria enfrentado sem receio esta obscura imensidão. Um silêncio absoluto reinava na pradaria. Nem o voo de um pássaro, nem a passagem de alguma fera perturbava a calma infinita.

Durante toda a noite, Mrs. Aouda, o espírito cheio de pressentimentos sinistros, o coração repleto de angústias, vagueou pela orla da campina. Sua imaginação a levava para longe e lhe mostrava mil perigos. O que sofreu durante estas longas horas não seria possível exprimir.

Fix estava sempre imóvel no mesmo lugar, mas, também ele, não dormia. Num dado momento, um homem tinha se aproximado dele, até falou com ele, mas o agente o despachou, depois de ter respondido às suas palavras com um sinal negativo.

A noite passou. Ao alvorecer, o disco meio apagado do sol ergueu-se sobre um horizonte nublado. Entretanto o olhar podia alcançar até duas milhas de distância. Tinha sido para o sul que Phileas Fogg e o destacamento se haviam dirigido... O sul estava absolutamente deserto. Eram então sete horas da manhã.

O capitão, extremamente preocupado, não sabia o que fazer. Deveria enviar um segundo destacamento em socorro do primeiro? Deveria sacrificar novos homens com tão poucas probabilidades de salvar os que já tinham sido sacrificados antes? Mas sua hesitação não durou, e com um gesto, chamando um dos seus ajudantes, deu-lhe ordem de fazer um reconhecimento ao sul — quando se ouviram tiros. Seria um sinal? Os soldados precipitaram-se para fora do forte, e a meia milha de distância avistaram um destacamento que voltava em boa ordem.

Mr. Fogg vinha à frente, junto dele Passepartout e os dois outros passageiros, resgatados das mãos dos Sioux.

Tinha havido combate dez milhas ao sul de Kearney . Poucos instantes antes da chegada do destacamento, Passepartout e seus dois companheiros já lutavam contra seus guardiãos, e o francês tinha derrubado três com seus socos, quando seu patrão e os soldados se precipitaram em seu socorro.

Todos, salvadores e salvados, foram acolhidos com brados do alegria, e Phileas Fogg distribuiu aos soldados a gratificação que lhes tinha prometido, enquanto Passepartout repetia consigo, não sem alguma razão:

— Decididamente, estou saindo caro para meu patrão!

Fix, sem proferir uma palavra, contemplava Mr. Fogg, e seria difícil analisar as impressões que se combatiam nele naquele momento. Quanto a Mrs. Aouda, tinha pego a mão do gentleman, e a apertava nas suas, sem poder pronunciar uma palavra!

Passepartout, desde que chegara, estivera procurando o trem na estação. Julgava que o iria encontrar, pronto para partir para Omaha, e esperava que se pudesse recuperar o tempo perdido.

— O trem! o trem! gritava.


— Partiu, respondeu Fix.

— E o trem seguinte, quando passa? perguntou Phileas Fogg.

— Só de tarde.

— Ah! respondeu simplesmente o impassível gentleman.



continua pag 195...


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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.

Promessa que manteve em mais de oitenta livros.

Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.

Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.

Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.

Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.

Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.

Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.

A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).

Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.

Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


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Leia também:

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXX


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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster


sábado, 25 de setembro de 2021

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (c) ... Para fazer justiça a ela

Capítulo 4



continuando...


Para fazer justiça a ela, deve ser dito que preferiria mil vezes um espadim. Sapos são coisas pegajosas para alguém esconder consigo durante uma manhã inteira. Mas, se espadins são proibidos, deve-se recorrer a sapos. Além disso, sapos e risadas às vezes conseguem aquilo que o aço frio não consegue. Ela riu. O arquiduque corou. Ela riu. O arquiduque praguejou. Ela riu. O arquiduque bateu a porta.

“O céu seja louvado!”, gritou Orlando ainda rindo. Ouviu o som das rodas da carruagem rolando num ritmo furioso pelo pátio. Ouviu-as rodar pela estrada. O som se tornava cada vez mais fraco. Então desapareceu completamente.

“Estou só”, disse Orlando em voz alta, uma vez que não havia ninguém para ouvir.

Que o silêncio seja mais profundo depois do ruído, ainda é preciso a confirmação da ciência. Mas que a solidão é diretamente mais aparente depois que alguém foi amado, muitas mulheres jurariam. Quando o som das rodas da carruagem do arquiduque desapareceu, Orlando sentiu que se distanciavam dela cada vez mais um arquiduque (ela não se importava com isso), uma fortuna (ela não se importava com, isso), um título (ela não se importava com isso), a segurança e a condição da vida de casada (ela não se importava com isso), mas também a vida e um amor. “A vida e um amor”, murmurou; e, dirigindo-se para a escrivaninha, mergulhou a pena na tinta e escreveu:

“A vida e um amor” — um verso sem ritmo e que não fazia sentido com o que vinha antes — algo a respeito da maneira adequada de dar banho em ovelhas para evitar sarna. Relendo, corou e repetiu:

“A vida e um amor.” Então, deixando a pena de lado, foi para o seu quarto, parou em frente ao espelho e ajeitou as pérolas no pescoço. Então, já que as pérolas não produzem grande efeito num vestido de verão de algodão estampado, trocou-o por um outro, de tafetá cinza-pombo; depois por outro, cor de pêssego; depois por um de brocado cor de vinho. Talvez precisasse de um pouco de pó, e, se colocasse o cabelo — assim — sobre a testa, podia ser que ficasse bem. Depois calçou sapatos de bico fino e colocou no dedo um anel de esmeralda. “Agora”, disse quando estava pronta, e acendeu os candelabros de prata que ladeavam o espelho. Que mulher não se teria entusiasmado ao ver o que Orlando viu queimando na neve? — pois tudo em redor do espelho eram campos de neve, e ela era como um fogo, um arbusto ardente, e as chamas das velas em volta da sua cabeça eram folhas de prata; ou ainda, o espelho era água verde e ela, uma sereia coberta de pérolas, uma sereia numa caverna, cantando de tal forma que os remadores se inclinavam em seus barcos e caíam, caíam para abraçá-la; tão escura, tão brilhante, tão dura, tão suave ela era, tão surpreendentemente sedutora que era uma pena não haver ninguém ali para expressar em linguagem clara e para dizer de uma vez: “Com os diabos senhora, sois a encarnação da beleza!” — o que era verdade. Mesmo Orlando (que não tinha vaidade pessoal) sabia disso, pois ela sorriu o sorriso involuntário que as mulheres sorriem quando sua própria beleza, que não parece a sua própria, toma a forma de uma gota que cai ou de uma fonte que sobe e confronta-as de repente no espelho — esse sorriso ela sorriu, e então escutou por um momento e ouviu somente as folhas soprando e os pardais piando, e então suspirou: “A vida, um amor’’ e então girou nos calcanhares com extraordinária rapidez, arrancou do pescoço as pérolas, despiu os cetins das costas, empertigou-se em elegantes calções de seda negra como um nobre qualquer e tocou a campainha. Quando o criado apareceu, disse-lhe que preparasse imediatamente uma carruagem de seis cavalos. Tinha sido chamada a Londres, por negócios urgentes. Menos de uma de hora depois da partida do arquiduque, ela se pôs a caminho.

E como estava a caminho, podemos aproveitar a oportunidade — já que a paisagem era uma paisagem inglesa comum que não necessita de descrição — para chamar a atenção do leitor, mais particularmente do que pudemos fazer no momento, para uma ou duas observações que escaparam aqui e ali no curso da narrativa. Por exemplo, pode ter sido observado que Orlando escondia seus manuscritos, quando interrompida. Depois, que se olhava longa e intensamente no espelho; e agora, quando partiu para Londres, podia-se notar seu sobressalto e um grito abafado quando os cavalos galopavam mais rapidamente do que ela desejava. Sua modéstia com relação a seus escritos, sua vaidade com relação à sua pessoa, seus temores por sua segurança, tudo parece indicar que o que há pouco se disse da ausência de diferença entre Orlando homem e Orlando mulher estava deixando de ser totalmente verdadeiro. Estava se tornando um pouco mais modesta — como são as mulheres —, quanto ao seu espírito, e um pouco mais vaidosa — como são as mulheres —, quanto à sua pessoa. Certas suscetibilidades aumentavam, outras diminuíam. A mudança de roupas, diriam alguns filósofos, tinha muito a ver com isso. Futilidades vãs, como parecem, as roupas têm — dizem eles — funções mais importantes do que simplesmente nos aquecer. Elas mudam nossa visão do mundo e a visão do mundo sobre nós. Por exemplo, quando o capitão Bartolus viu a saia de Orlando, imediatamente mandou estender um toldo para ela, insistiu para que se servisse de uma outra fatia de carne, e convidou-a para ir a terra com ele em sua chalupa. Essas atenções não lhe teriam sido feitas se suas saias, em vez de esvoaçar, fossem ajustadas às pernas como calças. E, quando recebemos atenções, convém retribuí-las. Orlando fez mesuras; aquiesceu; elogiou os modos daquele homem gentil, como teria feito se suas calças elegantes fossem saias de mulher e seu casaco engalanado fosse um feminino corpete de cetim. Assim, pode-se sustentar o ponto de vista de que são as roupas que nos usam, e não nós que as usamos; podemos fazê-las tomar a forma do braço ou do peito, mas elas moldam nosso coração, nosso cérebro, nossa língua, à sua vontade. Assim, tendo usado saias por um tempo considerável, era visível uma certa mudança em Orlando, mesmo em seu rosto, que pode ser encontrada se o leitor verificar na página 100. Se compararmos o retrato de Orlando como homem com o de Orlando como mulher, veremos que, embora ambos sejam indubitavelmente uma e a mesma pessoa, há certas mudanças. O homem tem a mão livre para pegar a espada, a mulher deve usar a sua para evitar que os cetins lhe escorreguem dos ombros. O homem encara o mundo de frente, como se tivesse sido feito para seu uso e de acordo com o seu gosto. A mulher lança-lhe um olhar de esguelha, cheio de sutileza e até de desconfiança. Se usassem as mesmas roupas, é possível que sua maneira de olhar viesse a ser a mesma.

Esta é a opinião de alguns filósofos e sábios, mas nós nos inclinamos por outra. Felizmente, a diferença entre os sexos é de grande profundidade. As roupas são apenas símbolos de algo extremamente oculto. Foi a transformação do próprio Orlando que determinou sua escolha pelas roupas de mulher e pelo sexo feminino. E talvez nisso ela estivesse expressando apenas um pouco mais abertamente do que de costume — a franqueza, na verdade, era a alma de sua natureza — algo que acontece com muita gente sem ser assim tão claramente expresso. Pois aqui novamente chegamos a um dilema. Embora os sexos sejam diferentes, eles se confundem. Em cada ser humano ocorre uma vacilação de um ser para outro. E frequentemente são apenas as roupas que mantêm a aparência masculina ou feminina, enquanto interiormente o sexo é aquele oposto ao que está à vista. Das complicações e confusões que daí resultam, cada um teve experiências; mas aqui deixamos o problema geral e observamos apenas o efeito ímpar que isso teve no caso particular de Orlando.

Pois foi esta mistura de homem e mulher, um preponderando, depois a outra, que frequentemente dava à sua conduta uma inesperada reviravolta. As curiosas perguntariam, por exemplo, se Orlando era uma mulher, como não demorava mais do que dez minutos para se vestir? E suas roupas não eram escolhidas ao acaso e às vezes não estavam até um pouco gastas? Então responderiam, ainda, que ela não tinha a formalidade de um homem nem o amor masculino pelo poder. Ela possuía um coração excessivamente terno. Não suportava ver um burro ser espancado nem um gatinho ser afogado. Contudo, novamente observavam que detestava assuntos domésticos, levantava-se de madrugada e saía pelos campos no verão antes do nascer do sol. Nenhum fazendeiro conhecia melhor as colheitas do que ela. Podia beber com os mais fortes e gostava de jogos de azar. Montava bem e conduzia seis cavalos a galope sobre a Ponte de Londres. Contudo, novamente, embora audaciosa e ativa como um homem, notava-se que a visão de alguém em perigo causava-lhe palpitações das mais femininas. Caía em lágrimas à mais leve provocação. Não era versada em geografia, achava matemática intolerável, e sustentava alguns caprichos mais comuns entre as mulheres do que entre os homens, como por exemplo que viajar para o sul é o mesmo que descer uma encosta. No entanto, é difícil dizer se Orlando era mais homem ou mais mulher, e isso não pode ser resolvido agora. Pois agora sua carruagem estava rodando nas pedras. Tinha chegado a sua casa na cidade. Os estribos estavam sendo arriados e os portões de ferro abertos. Ela estava entrando na casa de seu pai em Blackfriars, que — embora a moda estivesse abandonando aquele extremo da cidade — era ainda uma mansão agradável, espaçosa, com jardins até o rio e um aprazível bosque de nogueiras para se passear.




Ali se instalou e começou imediatamente a procurar em torno de si aquilo que viera buscar — isto é, vida e um amor. A respeito da primeira, pode haver alguma dúvida; o segundo, ela encontrou sem a menor dificuldade, dois dias depois de sua chegada. Era uma terça-feira quando viera para a cidade. Na quinta-feira foi dar um passeio no Mall, como então era hábito das pessoas de condição. Não dera mais do que uma ou duas voltas pela avenida antes de ser notada por um pequeno grupo de gente vulgar que vai lá para espiar seus superiores. Quando passou por eles, uma mulher carregando uma criança no colo parou à sua frente, encarou familiarmente o rosto de Orlando e gritou: “Que o céu nos acuda se esta não é a Lady Orlando!” Seus companheiros aglomeraram-se em torno, e Orlando se encontrou por um momento no centro de uma multidão de cidadãos espantados e mulheres de negociantes, todos ansiosos para ver a heroína do célebre processo. Tal foi o interesse que o caso despertou na mente do povo. Na verdade, ela poderia ter sido seriamente molestada pela pressão da multidão — esquecera que as damas não devem passear sozinhas em lugares públicos — se um cavalheiro alto não se adiantasse e lhe oferecesse a proteção de seu braço. Era o arquiduque. Ao vê-lo, ela foi dominada ao mesmo tempo pelo embaraço e por um certo deleite. Este magnânimo cavalheiro não apenas a tinha perdoado, mas, para mostrar que levara na brincadeira a sua travessura com o sapo, procurara uma joia feita com a forma daquele réptil, que lhe ofereceu, com a confirmação do seu amor, ao conduzi-la à carruagem.

Com a multidão, com o duque, com a joia, voltou para casa no pior estado que se possa imaginar. Era então impossível sair para um passeio sem ficar meio sufocada, sem ser presenteada com um sapo de esmeraldas e pedida em casamento por um arquiduque? Teve uma visão melhor do caso no dia seguinte, quando encontrou na mesa do café meia dúzia de bilhetes das damas mais famosas do lugar — Lady Suffolk, Lady Salisbury, Lady Chesterfield, Lady Tavistock e outras, que a lembravam em termos polidos as velhas alianças entre suas famílias e a dela, e desejavam a honra de conhecê-la. No dia seguinte, que era sábado, muitas dessas grandes damas foram visitá-la pessoalmente. Na terça-feira, por volta do meio-dia, lacaios trouxeram cartões de convite para vários saraus, jantares e reuniões próximas; de modo que Orlando foi lançada sem demora, mas com algum alarido e espuma, nas águas da sociedade londrina.

Descrever verdadeiramente a sociedade londrina daquele ou de qualquer outro tempo ultrapassa os poderes do biógrafo ou do historiador. Só aqueles que necessitam pouco da verdade e não a respeitam — poetas e novelistas — podem fazê-lo com confiança, pois este é um dos casos em que a verdade não existe. Nada existe. Tudo é um miasma — uma miragem. Para simplificar — Orlando podia voltar para casa, de um desses saraus, às três ou quatro da manhã, com as faces como uma árvore de Natal e os olhos como estrelas. Desamarrava um laço, dava uma volta pelo quarto, desamarrava outro laço, parava e dava outra volta pelo quarto. Frequentemente o sol ardia sobre as chaminés de Southwark antes que ela se resolvesse a ir para a cama, ali ficar deitada arfando e debatendo-se, rindo e suspirando, por uma hora ou mais, até afinal dormir. E qual a causa de toda essa agitação? A sociedade. E o que a sociedade teria dito ou feito para lançar uma dama racional em tal excitação? Em uma palavra, nada. Por mais que atormentasse a memória no dia seguinte, Orlando não lembrava de uma única palavra para exaltar coisa alguma. Lorde O. tinha sido galante. Lorde A., cortês. O marquês de C., encantador. O sr. M., divertido. Mas, quando tentava lembrar em que teriam consistido essa galanteria, essa cortesia, esse encanto e esse divertimento, era levada a crer numa falha de memória, pois não conseguia assinalar nada. Era sempre a mesma coisa. Nada restava no dia seguinte, embora a excitação do momento fosse intensa. Assim, somos forçados a concluir que a sociedade é uma dessas misturas que as donas de casa habilidosas servem quentes no período natalino, cujo sabor depende da mescla e da agitação adequadas de uma dúzia de diferentes ingredientes. Provar um a um em separado é insípido. Retirar Lorde O., Lorde A., Lorde C. ou o sr. M., cada um deles separadamente, não é nada. Misturados todos juntos, combinam, produzindo o mais inebriante sabor e o mais sedutor dos aromas. Contudo, essa embriaguez e essa sedução fogem completamente à nossa análise. Por isso, ao mesmo tempo, a sociedade é tudo e a sociedade é nada. A sociedade é a mais poderosa mistura do mundo e a sociedade em si não existe. Com tal monstro só os poetas e os novelistas podem lidar; com esse tudo e esse nada suas obras atingem um volume considerável; e para eles o deixamos, com a melhor das boas vontades.

Seguindo o exemplo de nossos predecessores, consequentemente, diremos apenas que a sociedade no reinado da rainha Ana era de um brilho ímpar. Ingressar nela era o objetivo de toda pessoa bem-nascida. Os encantos eram supremos. Os pais instruíam seus filhos, as mães suas filhas. Nenhuma educação era completa para ambos os sexos que não incluísse a ciência da conduta, a arte de fazer reverências e cumprimentos, o manejo da espada e do leque, o cuidado com os dentes, a postura da perna, a flexibilidade do joelho, os métodos adequados de entrar e sair da sala, com mil etc., que imediatamente se apresentarão por si mesmos a qualquer pessoa que esteja em sociedade. Já que Orlando tinha recebido o elogio da rainha Elizabeth pela maneira como lhe entregara uma tigela com água de rosas, quando menino, deve-se supor que era suficientemente habilitada para estar à altura das exigências; certo que era distraída e que às vezes se tornava desastrada; estava pronta a pensar em poesia quando deveria estar pensando em tafetá; e talvez seu passo fosse um pouco largo demais para uma mulher e seus gestos, sendo abruptos, podiam pôr em risco, em certos momentos, uma xícara de chá.

Se essa ligeira inabilidade era suficiente para contrabalançar o esplendor de sua presença, ou se ela herdara uma gota a mais desse humor negro que corre nas veias de toda a sua raça, o certo é que não estivera nas rodas mundanas mais do que umas vinte vezes que já não tivesse perguntado a si mesma — quando não houvesse ninguém a não ser o seu cachorro Pippin — “que diabos acontece comigo?” Era terça-feira, 16 de junho de 1712; ela acabava de voltar de um grande baile em Arlington House; a aurora estava no céu, e ela descalçava uma das meias. “Não me importo se não encontrar mais ninguém enquanto viver”, exclamou Orlando rebentando em lágrimas. Amores ela tinha em abundância, mas a vida, que afinal tem certa importância, lhe escapava. “É a isso”, perguntava — mas não havia ninguém para responder — “é a isso” — terminava a frase da mesma forma — “que as pessoas chamam vida?” O cachorro levantou a pata dianteira em sinal de simpatia. O cachorro lambeu Orlando. Orlando afagou-o com a mão. Orlando beijou-o. Em resumo, havia entre eles a mais verdadeira simpatia que pode haver entre um cão e sua dona, embora não se possa negar que a mudez dos animais seja um grande impedimento para os requintes da comunicação. Eles abanam a cauda; inclinam a parte dianteira do corpo e elevam a traseira; rodam, pulam, arranham, ganem, latem, babam, têm toda a sorte de cerimônias e artifícios próprios, mas é tudo inútil, já que não podem falar. Essa era a sua discordância — pensou, colocando o cachorro gentilmente no chão — em relação às pessoas importantes de Arlington House. Elas também abanam a cauda, se inclinam, rodam, pulam, arranham e babam, porém não conseguem conversar. “Todos esses meses tenho frequentado a sociedade”, disse Orlando, atirando uma das meias pelo quarto, “não ouvi nada senão o que Pippin poderia ter dito. Estou com frio. Sou feliz. Tenho fome. Apanhei um rato. Enterrei um osso. Por favor, beije o meu nariz.” E isso não bastava.

Procuraremos explicar como em tão pouco tempo ela passara do deslumbramento para a decepção, admitindo que esta misteriosa composição a que chamamos sociedade não é absolutamente boa ou má em si mesma, mas possui um espírito volátil embora potente, que ou embriaga quando pensamos que é encantadora — como Orlando pensara — ou produz dor de cabeça quando a julgamos repulsiva — como Orlando a julgava agora. Não temos dúvida de que a faculdade de falar tenha muito a ver com isso. Muitas vezes uma hora de silêncio é a mais arrebatadora de todas; um espírito brilhante pode ser indescritivelmente tedioso. Mas deixemos isso para os poetas e continuemos a nossa história.


continua pag 79...


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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


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Leia também:

Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (a) ... O biógrafo agora se depara
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (b) ... Como esta pausa era...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (c) ... No mesmo momento
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (d) ... Nunca a casa
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (a) ... É realmente uma grande infelicidade
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (b) ... Felizmente, a srta. Penelope Hartopp, filha do general
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (c) ... O som das trombetas diminuiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (a) ... Com alguns guinéus
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (b) ... Ninguém manifestou a menor suspeita
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (c) ... Para fazer justiça a ela
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (d) ... Orlando atirou a segunda meia


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

parábolas de uma professora: a esperança mobiliza a realidade

parábolas de uma professora


a esperança mobiliza a realidade
Ensaio 014B – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




Professor Paulo, aqui, nesta reunião – ou em qualquer outra –, correndo os riscos que toda generalização nos impõe, ninguém ficaria surpreso ou atônita com a inexistência de professores e professoras como coletivo pedagógico, pelo menos, naquelas em que trabalhei, nestes quarenta e tantos anos de reuniões administrativas-instrutivas. Vi algumas tentativas diferentes na educação de jovens e adultos, mas também muito espanto, crises, bolos de aniversário, almoço, piadas-reclamações, abandonos e tarefas de calendário, planejamentos de eventos: dia da criança, do índio do professor da árvore, dias das bruxas – como bons colonizados e colonizadas não podemos esquecer o Halloween, é tão divertido pedir balas ou travessuras, uma gracinha. Mas ainda tenho esperança de encontrar planejamento e sentido coletivo em nossas ações pedagógicas.

eu também, querido Marko, escutei muitos sonhos, presenciei muitas discussões, e algumas tentativas, que não passaram de desejo de uns poucos e poucas, lutas coletivas sabotadas por nós mesmas, Gente, o que nos impede de existirmos como um coletivo pedagógico, a pergunta pairava na reunião administrativa-instrutiva

O professor Marko precisa participar mais das nossas reuniões. Caso o professor não saiba, construímos em nossas reuniões a Árvore Pedagógica, desta escola!

Eu sei, Ofélia. Eu já estava aqui, mas confesso que minha participação foi pequena, deveria ter acreditado. Um erro entre tantos que cometi num tempo de esperança. Uma pena que nossa árvore virou um lindo quadro esquecido nos corredores. E não sei se os professores e professoras, novas e novos na escola, sabem que temos uma Árvore Pedagógica. Aposto que não sabem. Voltamos no tempo, onde cada um e uma ocupa o seu quadrado e o defende com unhas e dentes.

Então, gente, o que nos impede de sair deste isolamento? O que vocês precisam da direção da escola, a altíssima sendo objetiva e clara, no que podemos ajudar, o que nos impede de fazer e colocar em prática um planejamento coletivo?

Rachel, os eventos do calendário já estão planejados...

Cabayba, eu acho que não é esse planejamento que está em discussão... se entendi, a nossa altíssima diretora está garantindo nossas reuniões, ou não?

Sim, Anita... até no limite do respaldo que vocês e a comunidade quiserem me oferecer, sem esse apoio não tenho muito o que fazer.

o Marko levanta a mão, essa coisa de sentar um e uma atrás da outro e outra não ajudam as conversas

Eu tenho um sonho, haverá o tempo que nas escolas públicas pensaremos uma educação coletiva solidária com o todo e com as partes, incluindo pais e mães, alunos e alunas, todas e todos dialogando com a educação que querem para si ou para seus filhos e filhas.

Vai sonhando, Marko! Vamos falar sério, gente! Vocês não acham um desperdício do dinheiro público a nossa cidade investir nesse entulho da filosofia nas vilas? Não que eu ache a filosofia um entulho, nem a geografia, muito menos a história, não me entendam mal, mas nas escolas em que valem a pena esses estudos. Essa gente aqui precisa aprender português e matemática! Arrisco dizer que nem educação física é tão necessária assim, a menos que seja para preparar bons corredores da nossa boa polícia. Por favor, precisamos é de mais religião nas escolas. Sonho com uma administração corajosa para enfrentar essa merda de democracia na escola. Esse desperdício de escola inclusiva, libertária e sociedade justa. Educação com qualidade na escola pública é com muitas e boas aulas de português e matemática. Vileiro fingi que aprende, nós fingimos que ensinamos, caso vocês ainda não se deram conta. O sentido da escola pública é educar a disciplina e a obediência nesses pobres coitados. Fala sério, gente! Francês e espanhol nas vilas? É deboche, né?

a desesperança da Ofélia se antecipa à maldade, nos faz viver com medo, cheias de nós mesmas e ao mesmo tempo descrentes, seguindo regulamentos, esperando a recompensa que nunca vem, anônimas e anônimos zumbis despercebidos

Você acredita em tudo isso? Você não acredita na força do diálogo? Você não acredita na força transformadora da educação? O que você está fazendo aqui? Saia e vá ser feliz fazendo outras coisas. 

Marko, esses vileiros me deprimem. Essa gente não tem o que me ensinar. Ainda não chegou o dia em que o poste vai fazer xixi no cachorro, essas palavras da Ofélia me torturam, tão cheias de amargura, desencanto frustração, escondida em queixas, reclamações, críticas, xingamentos e acusações, mas com certeza não foi ela que inventou essa educação de alfas e betas utilitárias, instrumento de dominação, sem utilidade alguma além de desumanizar a educação

Ofélia, estou falando sério... Salve-se e nos permita prosseguir.

Eu acho que precisamos escutar todos e todas sobre o que esperam de nós, professores, mesmo que seja, Queremos que façam o seu trabalho e ensinem os nossos filhos e filhas.

Isso, Carlos. As pessoas precisam escutar a própria voz, nós precisamos escutá-las. Mas é fundamental que o nosso discurso consagrado pelo púlpito catedrático – exaltado e aclamado apenas por nós, é verdade – não seja uma oração pedagógica para lhes afirmar de maneira contundente, definitiva e incompreensível que somente nós entendemos educação, e vocês, pais e mães, nada de relevante têm a nos dizer. Será?

Também tenho poucas certezas e muitas dúvidas, Marko. Conseguiremos desvelar com amorosidade à necessidade da argumentação crítica e a construção das palavras como alimento amoroso do pensamento?

Eu entendo, Paulo. Parece que na maioria das vezes conduzimos as palavras em voos só por voar, voos sem sonhos.

Isso nos basta?

Espero que não. Espero que não nos baste lutar por nossa dignidade como profissionais da educação – a nossa eterna luta salarial -, esquecendo a defesa dos direitos de todos e todas, crianças e adolescentes, jovens e adultos, a todo conhecimento que a humanidade acumulou, seja na filosofia, na história, geografia, o conhecimento do próprio corpo, reconhecendo limites e estratégias para superar esses limites com uma educação física que faça sentido para suas vidas, divertida, lúdica e construtora da determinação individual e coletiva.





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Leia também:

parábolas: ensaio 001A / Camarada, Ofélia!
parábolas: ensaio 002A / o coração livre para voar
parábolas: ensaio 003A / macho, branco e dono de tudo
parábolas: ensaio 004A / uma carreta de bois
parábolas: ensaio 005A / amar para se deliciar junto
parábolas: ensaio 006A / civismo cínico
parábolas: ensaio 007A / o compromisso
parábolas: ensaio 008A / minicontos de natal
parábolas: ensaio 009A / a fome que nunca passa
parábolas: ensaio 010A / o medo no cardápio pedagógico
parábolas: ensaio 011A / o futuro não é eterno
parábolas: ensaio 012A / o bufê das comidas invisíveis
parábolas: ensaio 013B / o sorriso cínico da desesperança maliciosa
parábolas: ensaio 014B / a esperança mobiliza a realidade
parábolas: ensaio 015B / silenciar o outro não é educar

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (2)

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


4..


continuando...


Quando, em outubro de 1862, um mês após a batalha de Antietam, as fotos tiradas por Gardner e O’Sullivan foram expostas na galeria de Brady em Manhattan, The New York Times comentou:
Os vivos que se aglomeram na Broadway talvez pouco se importem com os mortos em Antietam, mas podemos imaginar que se empurrariam com menos descaso em sua marcha pela grande avenida, e que passeariam menos sossegados, se alguns corpos gotejantes, recém-caídos no campo de batalha, estivessem estirados pela calçada. Haveria um repuxar afobado de barras de saia e uma cuidadosa escolha do local onde pisar...


Estar de acordo com a eterna acusação de que as pessoas poupadas pela guerra se mostram insensivelmente alheias aos sofrimentos padecidos fora do seu raio de visão não tornou o repórter menos ambivalente no tocante à proximidade da foto.


Os mortos do campo de batalha muito raramente chegam a nós, mesmo em sonhos. Vemos a lista no jornal da manhã, durante o desjejum, mas nos livramos de sua recordação após o café. Contudo, o sr. Brady fez algo para trazer para perto de nós a terrível realidade e gravidade da guerra. Se ele não trouxe cadáveres e os espalhou no nosso jardim e pelas ruas, fez algo muito parecido [...]. Essas fotos têm uma nitidez terrível. Com a ajuda de lentes de aumento, podem-se distinguir até as feições do homem chacinado. Gostaríamos de estar longe da galeria, quando uma das mulheres que se debruçarem sobre as fotos reconhecer um marido, um filho ou um irmão nas linhas imóveis e sem vida dos cadáveres, que jazem prontos para as covas escancaradas.


A admiração pelas fotos se mistura com a sua desaprovação em virtude da dor que podem provocar em mulheres da família dos mortos. A câmera traz o espectador para perto, para demasiado perto; com o auxílio de uma lente de aumento — pois neste caso as lentes são duas —, a “nitidez terrível” das imagens fornece informação desnecessária e indecente. Todavia, o repórter do Times não consegue resistir ao melodrama que meras palavras propiciam (os “corpos gotejantes” prontos para “as covas escancaradas”), ao mesmo tempo que censura o realismo intolerável da imagem.

Na era das câmeras, fazem-se exigências novas à realidade. A coisa autêntica pode não ser assustadora o bastante e, portanto, carece de uma intensificação, ou de uma reencenação mais convincente. Assim, o primeiro filme jornalístico de uma batalha — um incidente muito difundido, ocorrido em Cuba durante a guerra hispano-americana de 1898, chamado Batalha do Monte San Juan — mostra, na verdade, um ataque encenado pouco depois pelo coronel Theodore Roosevelt e a sua unidade de voluntários de cavalaria, os Cavaleiros Valentes, para os câmeras da empresa Vitagraph, pois o verdadeiro ataque encosta acima, depois de ser filmado, foi considerado insuficientemente dramático. Ou então as imagens podem ser terríveis demais e precisam ser suprimidas em nome da decência e do patriotismo — a exemplo das imagens que mostram, sem o devido ocultamento parcial, os nossos mortos. Afinal, exibir os mortos é o que fazem os inimigos. Na Guerra dos Bôeres (1899- 1902), após sua vitória em Spion Kop, em janeiro de 1900, os bôeres julgaram que seria edificante para suas próprias tropas pôr em circulação uma foto horripilante de soldados britânicos mortos. Tirada por um fotógrafo bôer desconhecido dez dias após a derrota britânica, que custou a vida de 1300 soldados, a foto oferece uma visão indiscreta de uma longa e rasa trincheira atulhada por cadáveres insepultos. O que há de especialmente agressivo na foto é a ausência de paisagem. A mixórdia de cadáveres que se estende ao longo da trincheira preenche todo o espaço da foto. A indignação britânica ante essa derradeira ofensa dos bôeres foi expressada de forma contundente, ainda que fria: tornar públicas fotos como essa, declarou o periódico Amateur Photographer, “não serve a nenhum propósito útil e somente apela para o lado mórbido da natureza humana”.



continua pág 173...


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Leia também:


Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (3)

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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



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"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Susan Sontag - Evangelhos Fotográficos (05)

Sobre fotografia


Ensaios


Susan Sontag



EVANGELHOS FOTOGRÁFICOS (05)



continuando...



A fotografia entrou em cena como uma atividade arrogante, que parecia ultrapassar e rebaixar uma arte estabelecida: a pintura. Para Baudelaire, a fotografia era “inimiga mortal” da pintura; mas, no fim, elaborou-se uma trégua, segundo a qual a fotografia era tida como libertadora da pintura. Weston empregou a fórmula mais comum que existe para atenuar o ânimo defensivo dos pintores quando, em 1930, escreveu: “A fotografia negou, ou virá a negar, mais cedo ou mais tarde, boa parte da pintura — pelo que os pintores deveriam ser muito gratos”. Libertada, pela fotografia, da cansativa faina da representação fiel, a pintura pôde partir no encalço de uma tarefa mais elevada: a abstração.[1] De fato, a ideia mais persistente nas histórias da fotografia e na crítica fotográfica é o pacto mítico selado entre pintura e fotografia, que autorizou ambas a perseguir tarefas distintas mas igualmente válidas, ao mesmo tempo que influenciavam criativamente uma à outra. Na verdade, a lenda falsifica boa parte da história da pintura e da fotografia. O modo como a câmera fixava a aparência do mundo exterior sugeriu novos padrões de composição pictórica e novos temas para os pintores: criar uma preferência pelo fragmento, realçar o interesse por lampejos da vida humilde e por estudos de movimentos fugazes e dos efeitos da luz. A pintura, mais do que se voltar para a abstração, adotou o olho da câmera, tornando-se (para empregar as palavras de Mario Praz) telescópica, microscópica e fotoscópica em sua estrutura. Mas os pintores jamais pararam de tentar imitar os efeitos realistas da fotografia. E, longe de restringir-se a representações realistas e deixar a abstração ao encargo dos pintores, a fotografia manteve-se em dia com todas as conquistas antinaturalistas da pintura e as absorveu.
 
[1] Valéry afirmou que a fotografia prestou o mesmo serviço à escrita, ao pôr a nu a pretensão “ilusória” da língua de “comunicar a ideia de um objeto visual com algum grau de precisão”. Mas os escritores não deviam temer que a fotografia “pudesse, em última instância, restringir a importância da arte da escrita e agir como seu substituto”, diz Valéry, em “O centenário da fotografia” (1929). Se a fotografia “nos desestimula a descrever”, argumenta ele, somos assim lembrados dos limites da língua e advertidos, como escritores, a dar a nossos instrumentos um uso mais adequado à sua verdadeira natureza. Uma literatura se purificaria caso deixasse a outras modalidades de expressão e de produção as tarefas que elas podem executar de modo muito mais eficaz, e se dedicasse a fins que só ela pode levar a bom termo [...] um dos quais [é] o aprimoramento da linguagem que constrói ou expõe o pensamento abstrato, e outro, a exploração de toda a diversidade de padrões e de ressonâncias poéticas.

Em termos mais gerais, essa lenda não leva em conta a voracidade da atividade fotográfica. Nas negociações entre fotografia e pintura, a fotografia sempre levou vantagem. Nada há de surpreendente no fato de os pintores, de Delacroix e Turner a Picasso e Bacon, terem usado fotos como subsídios visuais, mas ninguém espera que os fotógrafos recebam auxílio da pintura. As fotos podem ser incorporadas ou transcritas numa pintura (ou numa colagem, ou numa combinação de ambas), mas a fotografia enclausura a própria arte. A experiência de ver pinturas pode ajudar-nos a ver melhor as fotos. Mas a fotografia enfraqueceu nossa experiência da pintura. (Em mais de um sentido, Baudelaire tinha razão.) Ninguém jamais encontrou uma litografia ou uma gravura — métodos populares mais antigos de reprodução mecânica — de uma pintura que fosse mais satisfatória ou mais estimulante do que a própria pintura. Mas fotos, que transformam detalhes interessantes em composições autônomas, que transformam cores naturais em cores fulgurantes, proporcionam satisfações novas e irresistíveis. O destino da fotografia levou-a muito além do papel ao qual se supôs, de início, que ela estivesse restrita: fornecer informações mais acuradas sobre a realidade (inclusive sobre obras de arte). A fotografia é a realidade; o objeto real é, não raro, experimentado como uma decepção. As fotos tornam normativa uma experiência de arte que é mediada, de segunda mão, intensa de um modo diferente. (Lamentar que, para muitas pessoas, fotos de pinturas tenham se tornado substitutos de pinturas não significa apoiar nenhuma mística do “original” que se apresenta ao espectador sem mediação. Ver é um ato complexo e nenhuma grande pintura comunica seu valor e sua excelência sem alguma forma de preparação e instrução. Além disso, as pessoas que ficam desapontadas diante do original de uma obra de arte depois de vê-la em uma cópia fotográfica são, em geral, pessoas que teriam visto muito pouco no original.)

Uma vez que muitas obras de arte (incluindo as fotos) são, hoje, conhecidas por meio de cópias fotográficas, a fotografia — e as atividades de arte derivadas do modelo da fotografia, e o estilo de gosto derivado do gosto fotográfico — transformou de modo decisivo as belasartes tradicionais e as normas de gosto tradicionais, inclusive a própria ideia de obra de arte. A obra de arte depende cada vez menos de ser um objeto único, um original feito por um artista individual. Grande parte da pintura hoje em dia aspira aos predicados dos objetos reproduzíveis. Por fim, as fotos tornaram-se a tal ponto a experiência visual predominante que agora temos obras de arte produzidas a fim de ser fotografadas. Em boa parte da arte conceitual, no empacotamento das paisagens por Christo, nos aterros de Walter De Maria e Robert Smithson, a obra do artista é conhecida sobretudo pela reportagem fotográfica exposta em galerias e museus; por vezes, o tamanho é tal que ela só pode ser conhecida mediante uma foto (ou vista de um avião). A foto não se destina, e isso de modo ostensivo, a levar-nos de volta a uma experiência original.

Com base nessa suposta trégua entre a fotografia e a pintura, a fotografia foi — primeiro, de má vontade, depois, com entusiasmo — reconhecida como uma bela-arte. Mas a própria questão de ser ou não a fotografia uma arte é essencialmente enganosa. Embora gere obras que podem ser chamadas de arte — requerem subjetividade, podem mentir, proporcionam prazer estético —, a fotografia não é, antes de tudo, uma forma de arte. Como a língua, é um meio em que as obras de arte (entre outras coisas) são feitas. Com a língua, podem-se fazer discursos científicos, memorandos burocráticos, cartas de amor, listas de compras no mercado e a Paris de Balzac. Com a fotografia, podem-se fazer fotos de passaporte, fotos meteorológicas, fotos pornográficas, raios X, fotos de casamento e a Paris de Atget. A fotografia não é uma arte como, digamos, a pintura e a poesia. Embora as atividades de certos fotógrafos se adaptem à ideia tradicional de bela-arte, a atividade de indivíduos excepcionalmente talentosos que produzem objetos específicos dotados de um valor próprio, a fotografia desde o início também se prestou a essa ideia de arte que afirma que a arte está obsoleta. O poder da fotografia — e seu papel central nas preocupações estéticas atuais — reside em que ela confirma ambas as ideias de arte. Mas o modo como a fotografia torna a arte obsoleta é, a longo prazo, mais forte.

A pintura e a fotografia não são dois sistemas potencialmente competitivos para produzir e reproduzir imagens, circunstância em que bastaria chegar a uma adequada divisão de territórios para conciliá-las. A fotografia é uma atividade de outra ordem. A fotografia, conquanto não seja uma forma de arte em si mesma, tem a faculdade peculiar de transformar todos os seus temas em obras de arte. Mais importante do que a questão de ser ou a não a fotografia uma arte é o fato de que ela anuncia (e cria) ambições novas para a arte. É o protótipo da direção característica assumida em nosso tempo pela alta arte modernista e também pela arte comercial: a transformação da arte em meta-arte ou mídia. (Invenções como o cinema, a televisão, o vídeo, a música de Cage, Stockhausen e Steve Reich executada em fita gravada são extensões lógicas do modelo estabelecido pela fotografia.) As belas-artes tradicionais são elitistas: sua forma característica é uma obra singular, produzida por um indivíduo; implicam uma hierarquia de temas em que alguns deles são tidos como importantes, profundos, nobres, e outros, como irrelevantes, triviais, rasteiros. As mídias são democráticas: enfraquecem o papel do produtor especializado ou auteur (por usar processos que têm por base o acaso, ou técnicas mecânicas que qualquer pessoa pode aprender; e por constituírem esforços em conjunto ou em associação); encaram o mundo todo como sua matéria. As belas-artes tradicionais apoiam-se na distinção entre autêntico e falso, entre original e cópia, entre bom gosto e mau gosto; as mídias turvam, quando não abolem de todo, tais distinções. As belas-artes supõem que determinadas experiências ou temas têm um significado. As mídias são essencialmente sem conteúdo (esta é a verdade por trás da célebre afirmação de Marshall McLuhan de que a mensagem é o próprio meio); seu tom característico é irônico, ou indiferente, ou parodístico. É inevitável que a arte esteja, cada vez mais, destinada a terminar como fotos. Um modernista teria de reescrever a máxima de Pater de que toda arte aspira à condição da música. Hoje, toda arte aspira à condição da fotografia.

A argumentação de Valéry não é convincente. Embora se possa dizer que uma foto registra ou mostra o presente, ela nem sempre “descreve”, propriamente falando; só a língua descreve, pois é um evento no tempo. Valéry sugere, como “prova” da sua tese, abrir um passaporte: “a descrição aí anotada não resiste a uma comparação com a foto grampeada a seu lado”. Mas isso é usar a descrição em seu sentido mais degradado, empobrecido; há trechos em Dickens e Nabokov que descrevem um rosto ou uma parte do corpo melhor do que qualquer foto. A tese do poder descritivo inferior da literatura não se demonstra tampouco ao se dizer, como faz Valéry, que “o escritor que retrata uma paisagem ou um rosto, por mais hábil que seja em seu ofício, sugerirá tantas visões diferentes quantos forem seus leitores”. O mesmo vale para uma foto.

Assim como se considera que a foto libertou os escritores da obrigação de descrever, muitas vezes se considera que o cinema usurpou do romancista a tarefa de narrar ou de contar uma história — e assim, preconizam alguns, libertou o romance para outras tarefas, menos realistas. Essa versão da tese é mais plausível porque o cinema é uma arte temporal. Mas não faz justiça à relação existente entre os romances e os filmes.




continua página 85...

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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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Nota de esclarecimento da LêLivros


Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
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domingo, 19 de setembro de 2021

histórias davóinha: Josino (I13j - Oxum chora)

Josino: I - a aparição da vida



Oxum chora
Ensaio 13jA – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



ele é só queixume com essa vida qui só faz fazê esperá o amô da sua milagres, uma vida qui ele num pediu nem escôieu, uma vida de proibição e confisco da liberdade ditê a vida da sua escôia, tava impedido disê atrevido, corajoso e desejoso, só podia mostrá prusiôinho patrão aquele pretu desambicioso, desapegado, covarde, comedido e amável qui num se rebela das corrente e dos insulto, Chega de queixume, Josino. Isso é coisa qui só faz aumentá o quebranto da cansêra, Eu sei, muié, Então, meu hôme rebelde, usa tua força pra resistí e continuá vivo, faz da vida a nossa luta, Falá é mais fácil qui fazê, muié.

óia, óia e óia pra sua muié milagres, sabe quéla num qué se deixá ficá quebrantada, o desalento num parece lhe alcançá, Josino, vamô ficá qui!

ele num podia sivê, mais se pudesse ia rí do espanto qui mostrô nusóio e soltô na língua, Aqui aonde, muié?

Na mata, aonde mais, a muié num dá só vida, ela ensina uquié vivê da vida dada

Vivê na mata... dois fugido, pruguntô todo desconfiado

Se é assim qui tem qui sê, é assim qui vai sê, respondeu sem tremura, convencida e já encabeçada, tem coisa qui precisa sê feita, num nasce feita.

Pensa meió qui bem, depois qui sumí num tem mais como parecê. Vamô sê fujão pra toda vida. Ocê num tem medo, pruguntô dinovo todo cismado

Tenho, mais é isso, bem assim, vamô tomá o chá do sumiço...

Vivê da mata, é uqui ocê qué, Num é mais uqui eu ou ocê qué, é uqui precisa sê feito. E esse rêgo qui banha as pedra há ditê lambari, bagre, cascudo, é só descobrí, A gente conversa mais depois quieu chegá todo, Num esquece qui ocê é meu sonho, meu tudo, as parede da mata, a luz da lua, o frescô das água, as fruta, num é tempo pra desistí, Tumbém quero uma vida sem lixo, sem fraqueza ou maldade, sem corrente, sem castigo, insulto, ou medo, Meu Josino, a cura vem do amô, credita qui ela vem das fôia, fruto e raiz das erva, tudo tem cura, inté ódio tem cura, basta querê num tê ódio, Eu sinto isso tumbém, odiá é uma escôia, mais tem veiz, Milagres, qui num dá. Tem veiz, munta veiz, qui os quatro éssi deixa o pretu sem escôia, Eu sei, Josino. Mais se alembra qui querê machucá é um maisquerê duseu sagrado qui num entendeu a si mesmo nem a incumbência ditá vivo e viva. Oferecê amô e respeito ensina como aprendê, como vivê sua vida, ensina entendê ocê mesmo, Mais essa gente sem sol, sem sal e sem suô num tem esse sagrado, tumbém?

depois dum suspiro longo e silencioso josino continuô, Eu quero tê mais qui as parede da mata e a cura das erva pra oferecê pra ocê, Isso é ocê qui qué, e eu tumbém posso querê, mais uqui eu mais quero é ocê e eu, eu e ocê, aonde fô, enquanto usdois assunta Oxum assumbia o acalanto da suas canção de mãe, uma brisa leve qui refresca a lua e balança a rede

assopra prus dois qui quem canta reza duas veiz pruqui enquanto alegra e agradece, tumbém chama as força da natureza pra volta da vida e recebe os aviso qui guia os sentimento da criação de Zambi, junto tumbém pede proteção, adiantamento e união dusmais véio diantes

quem pratica a verdadeira humildade e amô encontra o seu sagrado nas vibração das curimba das mata qui dá bençã e protege, o tambô dusvento sacode a cadência das vibração duvivê, as guia das harmonia da ancestralidade vê e senti o congá das mata, a curimba sacode a magia das mata, as fôia balança enquanto os gáio geme

então, Oxum coloca as vista na milagres, depois óia josino, sussurra o acalanto do feitiço pru hôme e pra muié, e chora, tem a dô disabê qui num pode mudá a dança qui provoca o vento da tristeza e do medo, as água transparente cai dusóio e afunda no rio qui esfria e escurece, fica barrento e fedido, as areia vira lôdo com chêro podre, ela promete qui assim vai ficá enquanto a ganância e a escravatura continuá fazê o amô sofrê


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é bão lê tumbém se quisé...

histórias davóinha: Josino (I01j - o beijo da terra)
histórias davóinha: Josino (I02j - a belezura na escuridão estrelada)
histórias davóinha: Josino (I03j - fada ruim)
histórias davóinha: Josino (I04j - quando vai mudá?)
histórias davóinha: Josino (I05j - o fogo nas gota do choro)
histórias davóinha: Josino (I06j - vai chegá das muié preta)
histórias davóinha: Josino (I07j - assopra a lua)
histórias davóinha: Josino (I08j - assopre as estrela, tumbém)
histórias davóinha: Josino (I09j - juro qui lhe mordo)
histórias davóinha: Josino (I10j - mel de Oxum)
histórias davóinha: Josino (I11j - o balanço da rede)
histórias davóinha: Josino (I12j - a lua se rindo)
histórias davóinha: Josino (I13j - Oxum chora)
histórias davóinha: Josino (I14j - uma fugição sem fim)


sábado, 18 de setembro de 2021

Las poetisas del amor... Violeta Parra (Chile)

Las Poetisas del Amor (22)



Eu passo o mês de setembro
com um coração crescido
de dor e sofrimento
para ver meu povo aflito
as pessoas amando a pátria
e tão mal retribuído,
a bandeira como testemunha.

veja como eles sorriem angelicais,
veja como eles esquecem que são mortais.

Obrigado à vida que me tem dado tanto
Me deu risadas e me deu lágrimas
Assim, eu distingo felicidade do quebranto
Os dois materiais que compõem o meu canto
E a musica de vocês que é o mesmo canto
E o canto de todos é o meu próprio canto
Graças à vida graças à vida
Graças à vida graças à vida





Yo canto a la diferencia


Yo canto a la chillaneja
si tengo que decir algo,
y no tomo la guitarra
por conseguir un aplauso
yo canto a la diferencia
que hay de lo cierto a lo falso
de lo contrario, no canto.

Les voy hablar enseguida
de un caso muy alarmante,
atención el auditorio
que va a tragarse el purgante
ahora que celebramos
el 18 más galante
la bandera es un calmante.

Yo paso el mes de septiembre
con el corazón crecido
de pena y de sufrimiento
de ver mi pueblo afligido
el pueblo amando la patria
y tan mal correspondido,
la bandera por testigo.

En comandos importante
juramento a la bandera
sus palabras me repican
de tricolor las cadenas
con vigilantes armados
en plazas y alamedas
y al frente de las iglesias.

Afirmo señor ministro
que se murió la verdad
hoy día se jura el falso
por puro gusto no más,
engañan al inocente
sin ni una necesidad
y me hablan de libertad

Por eso su señoría
dice el sabio Salomón
hay descontento en el cielo
en Chuqui y en Concepción
ya no florece el copihue
y no canta el picaflor
centenario de dolor.

De arriba alumbra la luna
con tan amarga verdad
la vivienda de la Luisa
que espera maternidad
sus gritos llegan al cielo
nadie la habrá de escuchar
en la fiesta nacional.

No tiene fuego la Luisa
ni una vela ni un pañal
el niño nació en las manos
de la que cantando está
por un reguero de sangre
va marchando un cadillac
cueca amarga nacional.

La fecha más resaltante
la bandera va a flamear
la Luisa no tiene casa
la parada militar,
y si va a parque la Luisa
adónde va a regresar
cueca larga militar.

Yo soy a la chillaneja
senõres para cantar
si yo levanto mi grito
no es tan sólo por gritar
perdóneme al auditorio
si ofende mi claridad.
cueca larga militar.





Arriba quemando el sol


Cuando fui para la pampa
llevaba mi corazón
contento como un chirihue
pero allá se me murió
primero perdí las plumas
y luego perdí la voz.
Y arriba quemando el sol.

Cuando vide los mineros
dentro de su habitación
me dije mejor habita
en su concha el caracol
o a la sombra de las leyes
el refinado ladrón.

Las hileras de casuchas
frente a frente sí señor
las hileras de mujeres
frente al único pilón
cada una con su balde
con su cara de aflicción.
Y arriba quemando el sol

Paso por un pueblo muerto
se me nubla el corazón
aunque donde habita gente
la muerte es mucho mayor
enterraron la justicia
enterraron la razón.
Y arriba quemando el sol.

Si alguien dice que yo sueño
cuentos de ponderación
digo que esto pasa en Chuqui
pero en Santa Juana es peor.
El minero ya no sabe
lo que vale su dolor.
Y arriba quemando el sol.

Me volví para Santiago
sin comprender el color
con que pintan la noticia
cuando el pobre dice no.
Abajo la noche oscura
oro, salitre y carbón
Y arriba quemando el sol.





Miren como sonríen


Miren como sonríen los presidentes cuando
le hacen promesas al inocente,
miren como le ofrecen al sindicato este
mundo y el otro los candidatos.

miren como redoblan los juramentos,
pero después del voto, doble tormento.
Miren el hervidero de vigilantes para rociarle
flores al estudiante.

miren como relumbran carabineros para
ofrecerle premios a los obreros;
miren como se visten cabo y sargento para
teñir de rojo los pavimentos.

miren como profanan la sacristía
con pieles y sombreros de hipocresía.
Miren como blanquearon mes de María
y al pobre negaron la luz del día.

miren como le muestran una escopeta
para quitarle al pobre su marraqueta,
miren como se empolvan los funcionarios
para contar las hojas del calendario.


Miren como gestionan los secretarios
las páginas amables de cada diario,
miren como sonríen angelicales,
miren como se olvidan que son mortales.




Mercedes Sosa - Gracias a la vida - Violeta Parra
1984




Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me dio dos luceros, que cuando los abro
Perfecto distingo, lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo

Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido del abecedario
Con él las palabras que pienso y declaro
Madre amigo hermano
Y luz alumbrando, la ruta del alma del que estoy amando

Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio

Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me dio el corazón, que agita su marco
Cuando miro el fruto, del cerebro humano
Cuando miro el bueno tan lejos del malo
Cuando miro el fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales, que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto
Gracias a la vida, gracias a la vida
Gracias a la vida, gracias a la vida



Composição: Violeta Parra.





Violeta Parra Sus Mejores Exitos 








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Violeta Parra Sandoval de El Carmen ( San Fabian de Alico ou San Carlos , Região Atual Ñuble , Chile , 4 de outubro de 1917- La Reina , Região Metropolitana de Santiago , 5 de fevereiro de 1967) era uma artista chilena, reconhecida como um dos principais folcloristas em América do Sul e divulgador da música popular de seu país. Ele era um membro da famosa família Parra .

Sua contribuição para o esforço artístico chileno é considerada de grande valor e significado. Seu trabalho inspirou vários artistas posteriores, que continuaram com sua tarefa de resgatar a música country chilena e as manifestações constituintes do folclore chileno e latino-americano. Suas canções foram cobertas por vários artistas, tanto chilenos e estrangeiros. Em comemoração ao seu nascimento, no dia 4 de outubro é celebrado o “Dia da música e dos músicos chilenos”.



"—Tenho saudades de uma coisa ... não sei o que é. Procuro e não encontro ... Com certeza nunca vou encontrar »."