D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
Vol 1
O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
PRIMEIRA PARTE
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO XXIX
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO XXIX
Que trata do gracioso artifício e ordem que se teve em tirar o nosso amorado cavaleiro da muito áspera penitência em que se havia posto.
— Levante-se a vossa grande formosura, que eu já daqui lhe concedo o que lhe aprouver pedir-me.
— O que peço é — disse a donzela — que a vossa magnânima pessoa venha logo comigo onde eu o
levar, e me prometa não se intrometer em outra aventura nem requesta alguma antes de me dar
vingança dum traidor que, contra todo o direito divino e humano, me tem usurpado o reino que era
meu.
— Outorgado — respondeu D. Quixote — e assim podeis, senhora, perder de hoje para sempre a
melancolia que vos fatiga, e fazer que a vossa esmorecida esperança recobre novos brios e força,
que com a ajuda de Deus, e a do meu braço, cedo vos vereis restituída ao vosso reino, e sentada no
trono do vosso vasto e antigo estado, apesar e despeito de quantos velhacos vos pretenderem
empecer; e mãos à obra, que bem se diz que no tardar costuma estar o perigo.
A necessitada donzela forcejou quanto pôde por lhe beijar as mãos; mas D. Quixote, que em tudo
era comedido e cortês cavaleiro, de sorte nenhuma o consentiu, antes a fez levantar, e abraçou com
muita cortesia e acatamento, e ordenou a Sancho que aparelhasse Rocinante, e o armasse logo num
repente.
Sancho despendurou as armas, que se achavam como troféu, pendentes duma árvore, e, encilhando
o cavalo, num volver de olhos pôs o amo prestes. Este, vendo-se pronto, disse:
— Vamo-nos daqui em nome de Deus a favorecer esta grande senhora.
De joelhos estava ainda o barbeiro, tendo grande conta em disfarçar o riso e em que lhe não caísse a
barba, que se lhe cai talvez se lhe malograsse tudo; mas, vendo já conseguido o seguro e bom
despacho, e a diligência de D. Quixote para o ir pôr em obra, levantou-se, tomou a mão da sua
senhora, e, ajudado do cavaleiro, a subiu para a mula. D. Quixote montou logo no Rocinante, o
barbeiro na sua cavalgadura, ficando Sancho a pé, renovando-se-lhe as saudades do seu ruço, pela
falta que lhe fazia. Entretanto levava tudo com gosto, por lhe parecer que o amo estava em caminho,
e muito em vésperas de ser Imperador, porque já dava por infalível que breve o veria matrimoniado
com aquela Princesa, e, pelo menos, Rei de Micomicão. O que só lhe pesava era pensar que o reino
de Micomicão era em terra de negros, e que os seus vassalos haviam de ser todos pretaria. Para isso
imaginou logo um bom remédio, e disse com os seus botões:
— Que se me dá a mim que os meus vassalos sejam pretos? não há mais que embarcá-los, trazê-los
a Espanha, e vendê-los com paga à vista; com esse dinheiro posso comprar algum título ou algum
ofício para passar descansado o resto da vida. A gente não há de ser tola; e para conveniência
própria não pode ser proibido vender trinta ou dez mil vassalos sem mais nem menos, e enquanto o
diabo esfrega um olho. Voto a Deus que os hei de encampar todos à rasa, pequenos e grandes, ou o
melhor que eu puder, e, por mais pretos que sejam, os saberei transformar em brancos ou amarelos.
Venham eles, e verão como os avio.
Com isto andava tão ativo e contente, que nem já lhe lembrava que ia a pé.
Tudo aquilo observavam dentre as sombras dumas moitas Cardênio e o cura, e não sabiam que fazer
para se agregarem ao rancho. Porém o cura, que as armava no ar, ideou logo expediente. Com uma
tesoura, que trazia num estojo, cortou as barbas a Cardênio, emprestou-lhe o seu capotinho pardo e
um ferragoulo preto, ficando ele em calças e gibão; com o que tão transfigurado saiu o nosso
Cardênio, que nem vendo-se a um espelho se reconheceria.
Concluído este preparo, tendo os outros passado já para diante enquanto eles se disfarçavam, com
facilidade saíram primeiro que eles à estrada real, porque o mau piso e as agruras daqueles lugares
não deixavam apressar-se tanto os cavaleiros como os peões.
De feito estes últimos chegaram à planície no sopé da serra, por modo que, ao sair dela D. Quixote e
os seus companheiros, o cura se pôs a encarar nele muito atento, dando sinais de que o estava
reconhecendo, e, depois de estar assim irresoluto por um bom espaço, correu para ele de braços
abertos, dizendo a brados:
— Bem aparecido seja o espelho da cavalaria, o meu bom compatriota D. Quixote de la Mancha, a
flor e a nata da gentileza, o amparo e remédio dos necessitados, a quinta essência dos cavaleiros
andantes!
E, dizendo isto, o abraçava pelo joelho esquerdo.
D. Quixote, espantado do que via e ouvia àquele homem, encarou nele com atenção, conheceu-o
enfim, e ficou a modo maravilhado do encontro, fazendo grande diligência por se apear. Não lho
consentiu o cura. D. Quixote teimava, dizendo:
— Deixe-me Vossa Mercê, senhor licenciado, que não é justo estar eu a cavalo, e uma tão
reverenda pessoa como Vossa Mercê a pé.
— Não consinto de modo algum — disse o cura; — esteja Vossa Grandeza a cavalo, pois a cavalo é
que ultima as maiores façanhas e aventuras que nesta idade se têm visto, que a mim, posto que
indigno sacerdote, bastar-me-á montar na anca duma destas mulas destes senhores, que vêm na
companhia de Vossa Mercê, se não me levam a mal; até farei de conta que vou encavalgando no
Pégaso, ou sobre a zebra ou alfana em que montava aquele famoso mouro Musaraque, que ainda até
hoje jaz encantado na grande costa Zulema, pouco distante da grande Compluto.
— Lembra bem, senhor licenciado, e nem tal coisa me ocorria — respondeu D. Quixote; — mas eu
sei que a minha senhora Princesa será servida, por amor de mim, mandar ao seu escudeiro que ceda
a Vossa Mercê a sela da sua mula; e ele lá arranjará nas ancas, se ela as dá.
— Dá, dá, penso que sim — disse a Princesa — e penso também que não é preciso mandar eu tal ao
senhor meu escudeiro, que ele é tão polido e cortesão, que não há de consentir que uma pessoa
eclesiástica vá a pé podendo ir a cavalo.
— Assim é — respondeu o barbeiro.
E, apeando-se logo, ofereceu ao cura a sela, que ele aceitou sem se fazer muito rogado. O mau foi
que ao subir o barbeiro para as ancas, a mula, que era de alquiler (para encarecer que era má não é
preciso mais), alçou um pouco os quartos traseiros, e deu dois coices no ar, que a dá-los no peito do
mestre Nicolau, ou na cabeça, ao diabo dera ele o ter saído de sua casa por via de D. Quixote. Tão
forte lhe foi contudo o sobressalto, que se estatelou no chão com tão pouco cuidado nas barbas, que
lhe caíram. Vendo-se sem elas, não teve outro remédio senão acudir a tapar o rosto com as mãos
ambas, e a vozear que lhe tinham deitado fora os queixais.
D. Quixote, reparando naquele molho de barbas sem a respectiva queixada e sem sangue,
desquitadas do rosto do dono caído, disse:
— À fé que temos milagre de marca maior! barbas tiradas como por mão!
O cura, que viu a sua invenção em perigo de ser descoberta, agarrou nas barbas, e as trouxe ao
mestre, que estava ainda aos gritos; e, tomando-lhe de repente a cabeça, e encostando-a ao peito,
lhe repôs, murmurando-lhe em cima umas palavras, que disse serem de virtude para pegar barbas,
como se ia ver. Logo que teve a operação finda, apartou-se, deixando o escudeiro tão bem barbado e
tão são como dantes: do que D. Quixote sobremaneira se admirou, e pediu ao cura que em tendo
lugar lhe ensinasse aquele curativo, porque provavelmente não havia de servir só para pegar barbas.
A razão era clara: donde as barbas se arrancavam havia de ficar a carne numa lástima, e que tendo
ficado ali tudo são, é porque o remédio sarava tudo.
— E sara — disse o cura — e prometo ensinar-lhe na primeira ocasião.
Combinaram em que por então montasse o padre, e que dali até à venda se fossem os três
revezando; era caminho de duas léguas.
Postos os três a cavalo, a saber D. Quixote, a Princesa e o cura, seguindo os três a pé, Cardênio, o
barbeiro, e Sancho Pança, disse D. Quixote para a donzela:
— Vossa Grandeza, senhora minha, que nos encaminhe por onde mais lhe apetecer.
Adiantou-se com a resposta o licenciado, dizendo:
— Para que reino quer Vossa Senhoria que tomemos? será para o de Micomicão? é natural que sim,
ou pouco sei de reinos.
Ela, que estava por tudo, respondeu:
— Sim, senhor; para esse reino é que é o meu caminho.
— Portanto — disse o cura — temos de passar por dentro do meu povo, e dali tomará Vossa Mercê
a derrota de Cartagena, onde com favor de Deus se poderá embarcar. Se o vento for de feição, o mar
sossegado e sem temporais, em pouco menos de nove anos se poderá estar à vista da grande lagoa
Meona, digo Meotides, que fica um pouco mais de cem jornadas para cá do reino de Vossa
Grandeza.
— Vossa Mercê está enganado, senhor meu — disse ela — porque não há dois anos que eu de lá
parti; e em verdade que nunca tive bom tempo, e contudo isso já cheguei a ver quem tanto desejava,
que é o senhor D. Quixote de la Mancha, cujas novas me encheram os ouvidos logo que pus pés em
Espanha; e foram elas as que me decidiram a procurá-lo para me encomendar à sua cortesia, e fiar a
minha justiça do valor do seu invencível braço.
— Basta de louvores — disse D. Quixote; sou inimigo de todo o gênero de adulações; e ainda que
esta agora o não seja, sempre ofendem os meus ouvidos semelhantes práticas. O que eu sei dizer
vos, senhora minha, é que, tenha eu valor ou não, o que tiver, ou não tiver, todo o hei de empregar
em vosso serviço até perder a vida; e assim, deixando isso para seu tempo, rogo ao senhor
licenciado me diga: que o obrigou a vir a estas terras, tão só, sem criados, e tanto à ligeira, que me
causa admiração?
— Em poucas palavras o satisfarei a Vossa Mercê — respondeu o cura. — Eu e o mestre Nicolau,
nosso amigo e nosso barbeiro, íamos a Sevilha, a cobrarmos certo dinheiro remetido por um parente
meu, que se passou às Índias há já anos (e não tão pouco que não excedesse de mil pesos e
tocadinhos, que vale o dobro). Passando ontem por estes lugares, saíram-nos ao encontro quatro
salteadores e nos tiraram até as barbas. Foi tanto, que até o barbeiro não teve remédio senão pôr
umas postiças; e até a este mancebo que vem conosco (apontando Cardênio) o puseram como se
nunca as tivesse tido. O bonito é que por todos estes contornos é fama pública serem os tais ladrões
uns forçados das galés, que, segundo se diz, foram libertados quase neste mesmo sítio por um
homem tão valente, que a despeito do comissário e dos guardas os soltou a todos. Não há dúvida
que era doido, ou então tão patife como eles, homem sem alma nem consciência. Pois aquilo não foi
soltar o lobo entre as ovelhas? a raposa entre as galinhas? a mosca no mel? Quis defraudar a justiça,
ir contra o seu Rei e Senhor natural, pois foi contra os seus justos preceitos. Quis tirar às galés os
pés com que elas andam, pôr em reboliço a Santa Irmandade, que havia muitos anos estava em
descanso; quis, finalmente, consumar um feito, por onde a sua alma se perde, e o corpo se lhe não
ganha.
Sancho é que tinha contado ao cura e ao barbeiro a aventura dos galeotes, que o amo levara a cabo
com tanta glória; e por isso o cura ao recontá-la lhe carregava tanto a mão, para ver o que faria ou
diria D. Quixote, a quem, a cada palavra, se mudavam as cores, sem se atrever a dizer que fora ele
próprio o libertador daquela boa gente.
— Ora aqui tem Vossa Mercê quem nos roubou — disse o cura. — Deus por sua misericórdia não
tome contas a quem os não deixou levar o devido castigo.
continua na página 180...
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Leia também:
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Prólogo
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo IX
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XV
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXIX(b)
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D. QUIXOTE
VOL. I
Cervantes
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte
(1605)
Miguel de Cervantes [Saavedra]
(1547-1616)
Tradução:
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875)
Visconde de Castilho
Edição
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Fonte Digital
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com
(1999, 2005)
Copyright
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho
António Feliciano de Castilho
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879)
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914)
Edição: 2005 eBooksBrasil.com
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