segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Marcel Proust - A Prisioneira (Mas a este prazer de vê-la dormir)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira

continuando...

      Mas a este prazer de vê-la dormir, e que era tão bom quanto senti-la viver, um outro punha-lhe fim, e era o de vê-la despertar. A um grau mais profundo e misterioso, era o próprio prazer de que ela morasse em minha casa. Sem dúvida era-me doce tal prazer, à tarde, quando ela descia do carro, que fosse ao meu apartamento que ela regressasse. Era-o mais ainda que, quando do fundo do sono ela subisse os últimos degraus da escadaria dos sonhos, que fosse em meu quarto que ela renascesse para a consciência e para a vida, que ela se indagasse por um instante "onde estou?", e, vendo os objetos de que estava cercada, a lâmpada cuja luz fazia quase imperceptivelmente piscar os olhos, pudesse responder que estava em sua casa ao constatar que despertava na minha. Nesse primeiro momento delicioso de incerteza, parecia-me tomar de novo, mais completamente, posse de Albertine, visto que em vez de ela, depois de ter saído, entrar em seu quarto, era o meu quarto, assim que fosse reconhecido por Albertine, que ia encerrá-la, contê-la, sem que os olhos de minha amiga manifestassem qualquer perturbação, permanecendo tão calmos como se ela não tivesse dormido. A hesitação de despertar, revelada pelo seu silêncio, não o era pelo olhar.
     Reencontrava a palavra, e dizia:

- Meu Marcel – ou - Meu querido-, ambos seguidos de meu nome de batismo, o qual, atribuindo ao narrador o mesmo prenome do autor deste livro, daria: "Meu Marcel", "Meu querido Marcel". Desde então, eu já não permitia que, em família, os parentes, chamando-me também "querido", tirassem às palavras deliciosas que me dizia Albertine o privilégio de serem únicas. Ao dizê-las, ela fazia um pequeno trejeito que logo se transformava em beijo. Tão depressa como adormecera ainda há pouco, com a mesma rapidez despertava.

     Esse enriquecimento real, esse progresso autônomo de Albertine não eram a causa importante da diferença existente entre o meu modo de vê-la agora e o meu modo de vê-la a princípio em Balbec, como não o eram também o meu deslocamento no tempo, e nem o fato de olhar uma moça sentada junto a mim sob a lâmpada que a ilumina de modo diferente do que o sol quando ela vinha caminhando pela praia. Muito mais tempo teria podido separar as duas imagens sem trazer uma mudança tão completa; ela ocorrera, essencial e repentina, quando eu soubera que minha amiga praticamente fora educada pela amiga da Srta. Vinteuil. Se antigamente eu me exaltara julgando perceber mistério nos olhos de Albertine, agora sentia-me feliz apenas nos momentos em que desses olhos, e até dessas mesmas faces, refletidoras como olhos, às vezes tão calmas mas rapidamente intratáveis, eu lograva expulsar todo mistério. A imagem que eu buscava, em que descansava, contra a qual desejaria morrer, não era mais a de Albertine de uma vida desconhecida, era a de uma Albertine tão conhecida de mim quanto possível (e é por isso que este amor não poderia ser duradouro, a menos que permanecesse infeliz, pois por definição não satisfazia a necessidade de mistério), uma Albertine que não refletisse um mundo distante, que não desejasse outra coisa-de fato, havia instantes em que aquilo parecia ser assim-senão estar comigo, inteiramente semelhante a mim, uma Albertine imagem do que precisamente era meu e não do desconhecido. Quando é assim de uma hora angustiada relativa a uma criatura, quando é da incerteza de poder ou não retê-la que nasceu um amor, este amor traz a marca da revolução que o criou, e lembra muito pouco o que tínhamos visto até então quando pensávamos nessa mesma criatura. E minhas primeiras impressões diante de Albertine, à beira das ondas, podiam subsistir numa pequena parte em meu amor por ela; na realidade, tais impressões anteriores ocupam muito pouco lugar num amor desse gênero; em sua força, em seu sofrimento, em sua necessidade de doçura e seu refúgio numa lembrança tranquila, apaziguadora, a que desejaríamos ater-nos, sem nada mais saber sobre aquela a quem amamos, mesmo se houvesse alguma coisa odiosa a saber bem mais até, não consultar senão essas impressões anteriores -, um tal amor é feito de coisa bem diversa! Às vezes eu apagava a luz antes que ela voltasse. Era na escuridão, mal guiada pela luz de um tição na lareira, que ela se deitava a meu lado. Minhas mãos, minhas faces, eram os únicos que a reconheciam sem que meus olhos a vissem, meus olhos que muitas vezes temiam encontrá-la mudada. De modo que, graças a esse amor cego, ela se sentia talvez mais rodeada de carinho do que habitualmente.
     Eu me despia, deitava-me, e, com Albertine sentada num canto da cama, recomeçávamos nossa partida ou a conversação interrompida por beijos; e, no desejo, única coisa que nos faz achar interesse na existência e no caráter de uma pessoa, ficamos tão fiéis à nossa natureza (se, em compensação, abandonamos sucessivamente as diversas criaturas amadas por nós mesmos, uma após outra) que, uma vez avistando-me no espelho no momento em que beijava Albertine chamando-a de "minha filhinha", a expressão triste e apaixonada de minha própria fisionomia, semelhante à que teria sido outrora junto de Gilberte, de que já não me recordava, à que talvez fosse um dia junto de outra se alguma vez devesse esquecer Albertine, fez-me pensar que, acima das considerações pessoais (querendo o instinto que considerássemos a atual como a única verdadeira), eu preenchia os deveres de uma devoção ardente e dolorosa, dedicada como uma oferenda à juventude e à beleza da mulher. E contudo, a esse desejo que honrava com um ex-voto a juventude, bem como às lembranças de Balbec, misturava-se, à minha necessidade de assim conservar todas as noites Albertine junto a mim, alguma coisa que até então fora estranha à minha vida, pelo menos à vida amorosa, se não fosse inteiramente nova em minha vida. Era um tamanho poder de alívio como eu jamais havia experimentado desde os dias longínquos de Combray, quando minha mãe, debruçada sobre meu leito, vinha me trazer o repouso num beijo. Por certo eu ficaria bem espantado, naquela época, se me houvessem dito que eu não era inteiramente bom e sobretudo que tentaria alguma vez privar alguém de um prazer. Sem dúvida, eu me conhecia bem mal então, pois meu prazer de ter Albertine morando em minha casa era muito menos um prazer positivo do que o de ter retirado do mundo, onde cada um poderia desfrutá-la por seu turno, a moça em flor que, se pelo menos não me dava muita alegria, também não a dava aos outros. A ambição e a glória teriam me deixado indiferente. Mais ainda, eu era incapaz de sentir ódio. E, no entanto, para mim, amar carnalmente era o mesmo que triunfar sobre numerosos concorrentes. Nunca será demais repetir: era acima de tudo um alívio. 
     Antes que Albertine regressasse, por mais que tivesse duvidado dela, por mais que a tivesse imaginado no quarto de Montjouvain, tão logo ela se sentava de peignoir diante de minha poltrona, ou se, como era mais frequente, eu ficara deitado nos pés da cama, logo lhe transmitia as minhas dúvidas, confiava-as, para que ela as dissipasse, na abdicação de um crente que faz a sua oração. Durante todo o serão ela pudera, maliciosamente enrodilhada na minha cama, brincar comigo feito uma grande gata; seu narizinho róseo, que ela fazia ainda mais diminuto na ponta com um olhar faceiro que lhe dava a finura privilegiada de certas pessoas um tanto gordas, conseguira dar-lhe uma aparência rebelde e inflamada; pudera deixar cair uma mecha de seus longos cabelos negros sobre o rosto de cera rosada e, semicerrando os olhos, descruzando os braços, parecera dizer-me: "Faze de mim o que quiseres."
     Quando, no momento de me deixar, aproximava-se de mim para me dar boa-noite, era a doçura quase familiar que eu beijava dos dois lados do seu pescoço firme, que então eu nunca achava por demais moreno nem de granulação suficientemente grossa, como se tais sólidas qualidades estivessem relacionadas em Albertine com alguma bondade leal.

- Virá conosco amanhã, grande malvado? - perguntava antes de me deixar. 
- Aonde vai? 
- Isto dependerá do tempo e de você. Ao menos escreveu alguma coisa esta tarde, queridinho? Não? Então não adiantou de nada não ter vindo passear. A propósito, agora há pouco, quando cheguei, você reconheceu meu jeito de andar, adivinhou que era eu? 
- Naturalmente. Como poderia me enganar? Como não reconheceria entre mil o andar da minha gatinha? Que ela me permita descalçá-la antes que vá deitar-se, isto me daria muito prazer. Você é tão gentil e tão rosada em toda essa brancura de rendas.

     Tal era a minha resposta; no meio das expressões carnais, reconhecer-se-ão outras que eram próprias à minha mãe e à minha avó. Pois aos poucos eu ia começando a me parecer com todos os parentes, com meu pai que de um modo bem diverso de mim, é claro, pois se as coisas se repetem, é com grandes variações se interessava tanto pelo tempo que fazia; e não apenas com ele, mas cada vez mais com a tia Léonie. Sem isso, Albertine não teria podido ser para mim senão um motivo para sair, para não deixá-la ir só, sem meu controle. Minha tia Léonie, inteiramente beata, e com a qual eu teria jurado não ter um só ponto em comum, eu tão apaixonado por prazeres, totalmente diverso na aparência daquela maníaca que jamais conhecera nenhum e rezava o terço o dia inteiro, eu que sofria por não poder realizar uma vida literária, ao passo que ela tinha sido a única pessoa da família que ainda não pudera compreender que o ato da leitura era algo diverso de passar o tempo e de "divertir-se", o que tornava, mesmo no tempo da Páscoa, a leitura permitida no domingo, quando toda ocupação séria é proibida, a fim de que eu seja santificado unicamente pela oração. Ora, apesar de encontrar todos os dias a causa disso numa indisposição particular, o que me fazia tantas vezes permanecer deitado era uma criatura (não Albertine, não uma mulher que eu amava), uma criatura com mais força sobre mim do que um ser amado, era, transmigrada em mim, despótica a ponto de fazer calar às vezes as minhas ciumentas suspeitas, ou pelo menos ir verificar se eram fundadas ou não, era a minha tia Léonie. Não bastava que eu me parecesse exageradamente com meu pai, a ponto de não me contentar em consultar o barômetro como ele, mas de tornar-me eu próprio um barômetro vivo, não era bastante que me deixasse comandar pela tia Léonie para ficar observando o tempo, mas do quarto e até da minha cama? Eis que também agora falava a Albertine, ora como a criança que eu fora em Combray falando a minha mãe, ora como a minha avó me falava. Quando ultrapassamos uma certa idade, a alma da criança que fomos e a alma dos mortos de que saímos vêm jogar-nos, às mancheias, suas riquezas e seus maus destinos, exigindo colaborar nos novos sentimentos que experimentamos e nos quais, apagando sua antiga efígie, nós os refundimos em uma criação original. Assim todo o meu passado, desde os anos mais remotos, e para além deles o passado de meus pais, misturavam ao meu amor impuro por Albertine a doçura de um carinho a um tempo filial e maternal. Devemos receber, a partir de um dado momento, todos os nossos parentes chegados de tão longe e assentados ao nosso redor.
     Antes que Albertine me obedecesse e me deixasse tirar-lhe os sapatos, eu lhe entreabria a camisa. Os dois pequenos seios, empinados, eram tão redondos que pareciam menos fazer parte integrante de seu corpo do que terem amadurecido ali como dois frutos; e seu ventre (dissimulando o lugar que no homem se enfeia, como numa estátua desvendada, o grampo que ficou gravado) fechava-se na junção das coxas por duas valvas de uma curvatura tão suave, tão repousante, tão claustral, como a do horizonte quando o sol já desapareceu. Ela tirava os sapatos e se deitava perto de mim. Ó grandes atitudes do Homem e da Mulher, em que se procura juntar, na inocência dos primeiros dias e com a humildade da argila, o que a Criação separou, em que Eva fica admirada e submissa diante do Homem, ao lado de quem ela desperta, como ele próprio, ainda só, diante de Deus que o formou. Albertine cruzava os braços atrás dos cabelos pretos, os quadris bojudos, a perna caída numa inflexão de pescoço de cisne que se alonga e se recurva para voltar sobre si mesmo. Só quando ela estava inteiramente de lado, é que se via um certo aspecto de seu rosto (tão bom e tão bonito de frente) que eu não podia suportar, adunco feito em certas caricaturas de Leonardo da Vinci, parecendo revelar maldade, avidez pelo lucro, artimanhas de uma espiã cuja presença em minha casa me teria horrorizado, e que parecia desmascarada por esses perfis. E logo eu tomava o rosto de Albertine entre as mãos e a repunha de frente para mim.

- Seja bonzinho, prometa-me que, se não sair amanhã, há de trabalhar - dizia a minha amiga recolocando a camisa. 
- Sim, mas não ponha ainda o seu peignoir. -

     Às vezes eu acabava dormindo ao lado dela. O quarto esfriara, era preciso lenha. Eu tentava encontrar a campainha às minhas costas; não a alcançava, tateando todos os varões de cobre que não eram os dois entre os quais ela ficava pendurada e, a Albertine, que saltara da cama para que Françoise não nos visse lado a lado, eu dizia:

- Não, volte para aqui por um instante; não consigo achar a campainha.

     Instantes doces, alegres, na aparência inocentes e onde, no entanto, acumula-se a possibilidade do desastre, o que faz da vida amorosa a mais contrastada de todas, aquela em que a chuva imprevisível de enxofre e pez tomba após os mais risonhos momentos, e em que, a seguir, sem ter coragem de tirar uma lição da desgraça, reconstruímos imediatamente sobre os flancos da cratera, de onde só poderá sobrevir a catástrofe. Eu tinha a despreocupação daqueles que julgam duradoura a sua felicidade. Justamente porque foi necessária essa doçura para engendrar a dor - e aliás ela voltará para acalmá-la a intervalos - é que os homens podem ser sinceros com outrem, e até consigo mesmos, quando enaltecem a bondade de uma mulher para com eles, embora, feitas as contas, na intimidade de sua ligação circule constantemente, de modo secreto, inconfessado aos outros ou involuntariamente revelado por perguntas e inquéritos, uma dolorosa inquietação. Esta, porém, não poderia ter nascido sem a doçura prévia; mesmo a seguir, a doçura intermitente é necessária para tornar suportável o sofrimento e evitar rupturas; e a dissimulação do inferno secreto que é a vida em comum com essa mulher, até a ostentação de uma intimidade que fingimos ser doce, exprime um ponto de vista verdadeiro, um nexo geral de causa e efeito, uma das formas segundo as quais a produção da dor se tornou possível.

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