quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Massa e Poder - Malta e História: Os Franceses

Elias Canetti

MALTA E HISTÓRIA

     Os Franceses

      O símbolo de massa dos franceses possui uma história recente: é sua revolução. A festa da liberdade é comemorada anualmente, tendo se transformado na verdadeira celebração nacional da alegria. No dia 14 de julho, todos podem dançar com todos na rua. Seres humanos em geral tão pouco livres, iguais e fraternos quanto em outros países podem, uma vez por ano, apresentar-se como se o fossem. A Bastilha caiu, e, como outrora, as ruas estão novamente cheias de gente. A massa, vítima durante séculos da justiça real, faz justiça ela própria. A lembrança das execuções daquele tempo — uma série contínua de agitações as mais perturbadoras da massa — vincula-se mais a esse sentimento festivo do que possivelmente se admite. Quem se contrapunha à massa entregava-lhe a própria cabeça; devia-lhe essa cabeça e, à sua maneira, prestava-se a preservar e intensificar sua exaltação.
     Nenhum hino nacional, seja de que povo for, possui a vivacidade do hino francês; a Marselhesa data daquele tempo. A erupção da liberdade, na condição de um acontecimento periódico, repetindo-se e sendo aguardado ano após ano, ofereceu grandes vantagens como símbolo de massa de uma nação. Mesmo posteriormente à Revolução, voltou a desencadear, como outrora, as forças da defesa. Os exércitos franceses que conquistaram a Europa tiveram sua origem na Revolução. Esta encontrou seu Napoleão e a glória suprema na guerra. As vitórias pertenciam à Revolução e a seu general; ao imperador, nada mais restou senão a derrota final.
     Muito se poderia objetar a essa concepção da revolução como símbolo nacional de massa dos franceses. A palavra parece demasiado indefinida; ela não possui a concretude do capitão inglês a bordo de seu bem delimitado navio, nem a ordem rígida feito a madeira do exército alemão a marchar. Não se pode esquecer, porém, que ao navio do inglês vincula-se o mar agitado, e, ao exército do alemão, a floresta ondulante. Ambos constituem o alimento e a bebida de seu sentimento. Também o sentimento de massa da revolução expressa-se num movimento e objeto concretos: o assalto à Bastilha.
     Há uma ou duas gerações, qualquer um acrescentaria ainda ao substantivo revolução o adjetivo francesa. A lembrança mais popular dos franceses era também a que os caracterizava perante o mundo: tratava se daquilo que de mais singular eles haviam feito. Assim, os russos, com sua revolução, abriram uma sensível brecha no orgulho nacional francês.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
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Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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