segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Massa e Poder - Malta e História: Os Alemães

Elias Canetti

MALTA E HISTÓRIA

     Os Alemães 

      O símbolo de massa dos alemães era o exército. O exército, porém, era mais do que um exército: era a floresta em marcha. Em nenhum país moderno do mundo o sentimento pela floresta manteve-se tão vivo quanto na Alemanha. O caráter rígido e paralelo das árvores eretas, sua densidade e seu número impregnam o coração do alemão de profunda e misteriosa alegria. Ainda hoje ele gosta de visitar a floresta na qual seus antepassados viveram, e sente-se em harmonia com as árvores.
     A pureza e o isolamento das árvores umas em relação às outras, bem como a ênfase na verticalidade, diferenciam essa floresta das tropicais, onde as plantas trepadeiras emaranham-se, crescendo em todas as direções. Nesta última, os olhos se perdem na proximidade; trata-se de uma massa caótica e desarticulada, de uma vivacidade a mais variegada, a qual afasta qualquer sensação de uma ordem ou repetição uniforme. Já a floresta das zonas temperadas tem seu ritmo à vista. Ao longo dos troncos visíveis, os olhos se perdem numa distância sempre constante. A árvore isolada, porém, é maior que o homem, e segue sempre crescendo, rumo ao gigantesco. Sua constância tem muito daquela mesma virtude do guerreiro. Numa floresta onde se podem encontrar tantas árvores da mesma espécie reunidas, as cascas, que, de início, parecem couraças, assemelham-se mais aos uniformes de uma divisão do exército. Sem que eles o percebessem claramente, o exército e a floresta confundiram-se inteiramente para os alemães. O que, para outros, podia afigurar-se árido e ermo no exército possuía para o alemão a vida e a luminosidade da floresta. No exército, ele não sentia medo; sentia-se protegido; sentia-se um entre muitos. O caráter íngreme e retilíneo das árvores, ele o transformou em regra para si.
     O rapaz que, da estreiteza de sua casa, partia para a floresta, a m de — segundo acreditava — sonhar e estar sozinho, ali vivenciava de antemão a acolhida no exército. Na floresta, os outros — fiéis, verdadeiros e retos como ele queria ser — já estavam a postos, todos iguais entre si, pois erguem-se todos de forma retilínea, e, no entanto, totalmente diferentes em altura e força. Não se deve subestimar o efeito desse antigo romantismo da floresta sobre o alemão. Ele o acolheu em centenas de canções e poemas, e a floresta que nestes figurava era amiúde caracterizada como “alemã”.
     O inglês gostava de se ver no mar; o alemão apreciava ver-se na floresta; dificilmente pode-se expressar com maior concisão o que os separou em seu sentimento nacional.

continua página 260...
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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