terça-feira, 16 de setembro de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - um ar banalmente triste)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

continuando...

     Pois foi justamente ao próprio Basin que ela respondeu, como ele dizia, com um ar banalmente triste:

"Mas a rainha está de luto; por que? É um desgosto para Vossa Majestade?"
- "Não, não é luto fechado, é um luto aliviado, muito aliviado; é pela minha irmã." 
- A verdade é que ela está encantada, seja como for; Basin sabe disso perfeitamente, ela nos convidou para uma festa no mesmo dia e deu-me duas pérolas. Gostaria que ela perdesse uma irmã diariamente! Ela não chora a morte da irmã, ri às gargalhadas. Provavelmente diz consigo, como Robert, que transita nem sei do quê mais - acrescentou por modéstia, pois sabia-o muito bem.  

     Aliás, a Sra. de Guermantes só estava fazendo espírito, e do mais falso, pois a rainha de Nápoles, como a duquesa d'Alençon, também morta de modo trágico, era dotada de um coração generoso e havia chorado sinceramente os seus. A Sra. de Guermantes conhecia bastante as nobres irmãs bávaras, suas primas, para ignorá-lo. 

- Ele gostaria de não regressar a Marrocos - disse a princesa de Parma, apanhando de novo esse nome de Robert que a Sra. de Guermantes lhe estendia muito involuntariamente como uma vara. - Creio que conhece o general de Monserfeuil. 
- Muito pouco - respondeu a duquesa, que no entanto era íntima desse oficial.

     A princesa explicou o que Robert desejava. 

- Meu Deus, se eu o visse... Pode acontecer que o encontre - respondeu, para não dar a impressão de recusar, a duquesa, cujas relações com o general de Monserfeuil pareciam rapidamente espaçar-se quando tratava de lhe pedir algo. No entanto, essa incerteza não bastou ao duque, interrompendo a mulher, disse:
- Sabe muito bem que não o verá, Oriane e, além disso, já pediu duas coisas a que ele não entendeu. Minha esposa tem mania de ser amável - continuou, cada vez mais furioso, para forçar a princesa a retirar seu pedido, sem que isso pusesse em dúvida a amabilidade da duquesa e para que a Sra. de Parma atribuísse a coisa ao próprio caráter de Robert, basicamente caprichoso. - Robert poderia obter o que quisesse com Monserfeuil. Apenas, como ele não sabe o que quer, manda pedi-lo por nosso intermédio, porque sabe não há melhor modo de fazer fracassar a coisa. Oriane pediu coisas demais a Monserfeuil. Um pedido dela agora é motivo para que ele recuse. 
- Bem, nessas condições... - disse a Sra. de Parma. 
- Naturalmente - concluiu o duque. 
- Esse pobre general foi outra vez derrotado nas eleições - disse a princesa de Parma, para mudar de assunto. 
- Oh, não é nada grave, é apenas a sétima vez - disse o duque, que, tendo sido ele próprio obrigado a renunciar à política, apreciava bastante o fracasso eleitoral dos outros. - Ele se consolou fazendo um filho na mulher. 
- Como! A pobre! - espantou-se a princesa. 
- Perfeitamente - respondeu a duquesa -; é o único “arredondamento” - disse - em que o pobre general jamais fracassou. 

     Daí em diante eu jamais deveria deixar de ser convidado, mesmo com apenas algumas pessoas, para aquelas refeições cujos convivas imaginara outrora como os Apóstolos da Santa Ceia. De fato, eles se reuniam ali, como os primeiros cristãos, não para partilhar apenas um alimento material, aliás delicioso, mas para uma espécie de Ceia social; de modo que, em poucos jantares assimilei o conhecimento de todos os amigos dos anfitriões, amigos aos quais me apresentavam com um matiz tão acentuado de benevolência (como alguém a quem tivessem preferido paternalmente o tempo inteiro) que não houve um dentre eles que não acreditasse correr em falta para com o duque e a duquesa se desse um baile sem fazer figurar numa lista de convidados e, ao mesmo tempo, enquanto bebia um dos ypuems das adegas dos Guermantes, eu saboreava as hortulanas preparadas conforme as diferentes receitas que o duque elaborava e prudentemente modificava. Entretanto, para quem já se sentara mais de uma vez à mesa mística, não era necessária a manducação dessas últimas. Velhos amigos do Sr. e da Sra. de Guermantes vinham visitá-los depois do jantar, "como palitos", como diria a Sra. Swann, sem serem esperados, e no inverno tomavam uma taça de chá de tília sob as luzes do grande salão; no verão, um copo de laranjada no escuro da extremidade do jardim retangular. Nunca se conhecera dos Guermantes, naquelas noites após o jantar no jardim, mais que a laranjada. Ela possuía algo de ritual. Acrescentar-lhes outros refrescos pareceria desvirtuar a tradição, assim com uma grande reunião mundana no Saint-Germain já não é uma reunião mundana se há uma comédia ou música. É necessário convir que se veio simplesmente mesmo que houvesse quinhentas pessoas fazer uma visita à princesa de Guermantes; por exemplo, admiraram a minha influência porque pude fazer que acrescentassem à laranjada uma garrafa de suco de cereja cozida, de pera cozida. Por causa disso, criei inimizade ao príncipe de Agrigento que, semelhante a todas as pessoais destituídas de imaginação, mas não de avareza, se maravilhavam do que a gente bebe e pede licença para tomar um pouco. De modo que, de cada vez, o Sr. d'Agrigento, diminuindo a minha ração, estragava o meu prazer. Pois aquele suco de frutas nunca é servido em quantidade bastante para matar a sede. Nada cansa menos que essa transposição em sabor, das cores de uma fruta, que, cozida, parece retroceder à estação das flores. Empurpurado como um pomar na primavera, ou então incolor e fresco feito o zéfiro sob as árvores frutíferas, o suco se deixa respirar e contemplar gota a gota, e o Sr. d'Agrigento impedia-me regularmente de me saciar. Apesar dessas compotas, a laranjada tradicional subsistiu como o chá de tília. Sob tais espécies modestas, a comunhão social nem por isso deixava de se realizar. Sem dúvida, nisso os amigos do Sr. e da Sra. de Guermantes ainda assim haviam permanecido, como eu os imaginara a princípio, mais diferentes do que me poderia levar a crer o seu aspecto decepcionante. Muitos velhos vinham receber, na casa da duquesa, ao mesmo tempo que a invariável bebida, um acolhimento frequentemente bem pouco amável. Ora não podia isto dever-se ao esnobismo, pertencendo eles próprios a um nível social a que nenhuma outra pessoa era superior; nem ao amor ao luxo: eles talvez o apreciassem, mas em meios sociais inferiores poderiam conhecer um luxo esplêndido, pois nessas mesmas noites a esposa encantadora de um riquíssimo romancista teria feito de tudo para tê-los em deslumbrantes caçadas, que era necessário saber fazer.

- O aroma da baunilha que havia no excelente gelado que nos serviu há pouco, duquesa, provém de uma planta que tem o mesmo nome. Produz flores tanto masculinas como femininas, mas uma espécie de parede dura, colocada entre elas, impede qualquer comunicação. Assim, nunca se obtiveram frutos até o dia em que um jovem negro nativo da ilha de Reunião e chamado Albius (o que, entre parênteses, é bastante engraçado para um negro, pois Albius quer dizer branco) teve a ideia de - os órgãos separados em contato com a ajuda de um estilete. 
- Babal, você é divino, você sabe tudo! - exclamou a duquesa. 
- Mas você mesma, Oriane, me ensinou coisas de que eu nem sequer suspeitava - disse a princesa. 
- Direi a Vossa Alteza que foi Swann quem sempre me falou muito sobre botânica. Às vezes, quando nos entediava ir a um chá ou a uma reunião matinal, partíamos para o campo e ele me mostrava casamentos extraordinários de flores, o que é muito mais divertido que os casamentos de pessoas, e aliás, ocorrem sem luxo, nem sacristia. Nunca tínhamos tempo de ir muito longe. Agora, que já existe o automóvel, seria um encanto. Infelizmente, nesse intervalo ele próprio fez um casamento ainda mais espantoso e que torna tudo difícil. Ah! senhora, a vida é uma coisa horrível, a gente passa o tempo fazendo coisas que nos aborrecem, e, quando, por acaso, se conhece alguém em cuja companhia poderia ir ver coisas interessantes, ele acaba fazendo o casamento como o de Swann. Colocada entre a renúncia aos passeios botânicos e a obrigação de frequentar uma pessoa indecorosa, escolhi a primeira destas calamidades. Aliás, no fundo não haveria necessidade de ir tão longe. Parece que, no meu recanto de jardim passam-se de dia mais coisas inconvenientes que à noite... no Bois de Boulogne! Apenas, isto não é notado porque entre flores é feito com muita simplicidade; vê-se apenas uma chuvinha alaranjada, ou então uma mosca, muito poeirenta, que vem secar as patas ou tomar uma ducha antes de entrar numa flor. E tudo está acabado! 
- A cômoda em que a planta está colocada também é esplêndida é estilo Império, creio - disse a princesa que, não sendo familiarizada aos trabalhos de Darwin e de seus sucessores, compreendia mal o sentido dos gracejos da duquesa. 
- Lindo, não? Estou encantada de que Vossa Alteza tenha gostado - respondeu a duquesa. - É uma peça magnífica. Direi que sempre ando no estilo Império, mesmo no tempo em que não estava na moda. Lembro de que em Guermantes me fiz amaldiçoar pela minha sogra porque mandei descer do sótão os esplêndidos móveis do Império que Basin havia herdado dos Montesquiou e com ele mobiliara a ala inteira que ocupava.

     O Sr. de Guermantes sorriu. Devia lembrar-se, no entanto, de que as coisas se tinham passado de maneira muito diferente. Mas como os gracejos da princesa des Laumes acerca do mau gosto de sua sogra eram tradicionais durante o curto espaço de tempo em que o príncipe estivera enamorado da mulher, ao seu amor por esta sobrevivera um certo desdém pela inferioridade de espírito daquela, desdém a que, aliás, se mesclava muita afeição e respeito. 

- Os Lénas têm a mesma poltrona com incrustações de Wedgewood; é linda, mas prefiro a minha - disse a duquesa, com o mesmo ar de imparcialidade de quem não possuísse nenhum desses dois móveis -; de resto, reconheço que eles têm coisas maravilhosas que não possuo. 

     A princesa de Parma se manteve em silêncio. 

- Mas é verdade; Vossa Alteza não conhece a coleção deles. Oh, devia pelo menos uma vez visitá-los comigo. É uma das coisas mais magníficas de Paris, feito um museu que fosse vivo.  

     E, como essa proposição era uma das audácias mais "Guermantes" de duquesa, porque os Léna, para a princesa de Parma, não passavam de simples usurpadores, visto que o filho deles, como o seu, usava o título de duque de Guastalla, a Sra. de Guermantes, lançando-a assim, não se conteve (de tanto que o amor pela própria originalidade prevalecia nela sobre sua deferência para com a princesa de Parma) em deitar sobre os demais convivas uns olhares divertidos e risonhos. Estes também se esforçavam por sorrir, a um tempo assustados, assombrados e, principalmente, encantados ao pensar que eram testemunhas da "última" de Oriane e poderiam contá-la "bem quentinha". Só estavam meio estupefatos, pois sabiam que a duquesa possuía a arte de não levar em consideração nenhum dos preconceitos Courvoisier em favor do êxito de uma vida mais picante e agradável. Pois não tinha ela, nos últimos anos, juntado a princesa Mathilde ao duque de Aumale, que escrevera ao próprio irmão da princesa a famosa carta: "Em minha família, todos os homens são bravos e todas as mulheres são castas" Ora, visto que os príncipes continuam príncipes mesmo quando parecem querer esquecer que o são, o duque de Aumale e a princesa Mathilde tanto se agradaram um do outro, na casa da Sra. de Guermantes, que a seguir se visitaram com essa faculdade de esquecer o passado que Luís XVIII demonstrou quando escolheu para ministro a Fouché, que havia votado pela morte de seu irmão. A Sra. de Guermantes nutria o mesmo projeto de reconciliação entre a princesa Murat e a rainha de Nápoles. Enquanto isso, a princesa de Parma parecia tão embaraçada como o teriam podido ficar os herdeiros da coroa dos Países-Baixos e da Bélgica, respectivamente o príncipe de Orange e o duque de Brabante, se lhes quisessem apresentar o Sr. de Mailly-Nesle, príncipe de Orange, e o Sr. de Charlus, duque de Brabante. Antes porém, a duquesa, a quem Swann e o Sr. de Charlus (em este último estivesse resolvido a ignorar os Lénas) tinham, com muito forço, acabado por fazê-la apreciar o estilo Império, exclamou: 

- Alteza, sinceramente, não posso dizer até que ponto achará lindo aquilo! Confesso que o estilo Império me impressionou sempre. Mas na casa dos Lénas, é uma verdadeira alucinação. Essa espécie de... como direi... de refluxo da expedição ao Egito e depois, também, o remontar anos da Antigüidade; tudo isso que invade as nossas casas; as Esfinges que vêm sem colocar aos pés das poltronas; as serpentes que se enrolam nos candelabros; uma Musa enorme, que nos estende um pequeno facho para esquentar o aquecedor, ou que está tranquilamente postada por cima de nossa lareira e se debruça sobre nossa pêndula, e depois todas as lâmpadas de Pompéia; e depois todas as camas em forma de barco, que parecem ter sido achadas no Nilo e de onde a gente espera ver sair Moisés, aquelas quadrigas de antigamente, que galopam ao longo das mesinhas-de-cabeceira... 
- A gente não fica bem - disse a princesa. 
- Não - respondeu a Sra. de Guermantes, mas acrescentou, assistindo com um sorriso: gosto de ficar mal sentada nesses assentos de mogno recobertos de veludo grená ou de seda verde. Aprecio esse desconforto de guerreiros que só compreendem a cadeira e que, no meio do grande salão, cruzavam os feixes e empilhavam os lauréis. Asseguro-lhe qualquer um na casa dos Lénas, não se pensa um só instante na maneira como se está sentado, quando se vê à sua frente uma grande velhaca de Vitória pintada a fresco na parede. Meu marido vai me achar muito má realista, mas sou muito mal pensante, como bem sabe; asseguro-lhe que, na casa dessa gente acaba-se por gostar de todos aqueles “N”, de todas essas abelhas. Meu Deus! - como sob os reis, desde muito tempo, não estamos bem estragados quanto à glória, aqueles guerreiros que traziam tantas coroas que punham até nos braços das poltronas, acho que tudo isso tem um certo chiquê! Vossa Alteza deveria... 
- Meu Deus, se julga assim aí que não será fácil. 
- Mas Vossa Alteza verá que tudo há de se resolver a contento. São muito boas pessoas, nada imbecis. Levamos lá a Sra. de Chevreuse - acrescentou a duquesa, conhecendo a força do exemplo - e ela ficou encantada. O filho é até bastante agradável... O que vou dizer não é muito conveniente ajuntou -, mas ele tem um quarto e, sobretudo, uma cama onde a gente gostaria de dormir... sem ele! Menos conveniente ainda é que fui visitá-lo um dia em que estava doente e acamado. A seu lado, sobre o rebordo da cama, havia esculpida uma longa sereia reclinada, deslumbrante, com uma cauda de nácar, e que segurava na mão uma espécie de lótus. Asseguro lhe - continuou a Sra. de Guermantes, falando mais devagar para ressaltar melhor as palavras, que parecia modelar com o trejeito de seus lindos lábios a forma afuselada de suas longas mãos expressivas, enquanto cravava na princesa um olhar doce, fixo e profundo - que com as palmas e a coroa de ouro que estava ao lado era emocionante, bem ao jeito do arranjo de O Rapaz e a Morte, de Gustave Moreau. (Certamente Vossa Alteza conhece esta obra-prima.)

     A princesa de Parma, que ignorava até o nome do pintor, sacudiu violentamente a cabeça e sorriu com ardor, a fim de manifestar sua admiração por esse quadro. Mas a intensidade de sua mímica não chegou para substituir aquele brilho que fica ausente de nossos olhos enquanto não sabemos de que desejam nos falar.

- É um lindo rapaz, não é mesmo? - indagou. 
- Não, pois parece um tapir. Os olhos são um pouco feito os de uma rainha Hortênsia para abajur. Mas, provavelmente, ele pensou que seria meio ridículo para um homem desenvolver essa parecença, e isto se perde nas faces brunidas que lhe dá um aspecto bastante mameluco. Sente se que o esfregador deve passar lá todas as manhãs. Swann - acrescentou, retornando ao leito do jovem duque ficou impressionado com a semelhança daquela Sereia com A Morte, de Gustave Moreau. Por outro lado - continuou num tom mais rápido é no entanto sério, a fim de fazer rir mais -não precisamos nos assustar, pois tratava-se de um simples resfriado, e o rapaz passa bem que é uma beleza. 
- Não dizem que ele é esnobe? - perguntou o Sr. de Bréauté com ar maldoso, alerta e esperando na resposta a mesma precisão como se houvesse dito: "Disseram-me que só tem quatro dedos na mão direita, é verdade?" 
- Me...u Deus, n... não! - respondeu a Sra. de Guermantes com um sorriso de suave indulgência. - Talvez um pouquinho esnobe na aparência, porque é extremamente jovem, mas ficaria espantada se ele o fosse na realidade, pois é inteligente - acrescentou, como se na sua opinião houvesse uma incompatibilidade absoluta entre esnobismo e inteligência. - Ele é fino, e o vi engraçado - disse ela ainda, rindo com um ar gourmet e entendido, como se julgar alguém engraçado exigisse uma certa expressão gaiata, ou como se as piadas do duque de Guastalla lhe voltassem ao espírito naquele instante. - Afinal, como ele não é recebido, tal esnobismo não poderia manifestar-se - continuou ela, sem imaginar que, desse modo, não animava muito a princesa de Parma. - Eu me pergunto o que dirá o príncipe de Guermantes, que chama de Sra. Léna, se souber que fui à casa dela. 
- Mas como! - exclamou a duquesa com extraordinária vivacidade a senhora sabe que fomos nós que cedemos a Gilbert (hoje ela arrependida amargamente disso) uma sala inteira de jogo, em estilo Império, que nos provinha de guiou-guiou e que é um esplendor! Não havia lugar aqui para acomodá-la; e no entanto, acho que ficaria melhor do que na casa dele. É belíssima, metade etrusca, metade egípcia... 
- Egípcia? - perguntou a princesa, a quem etrusca dizia pouco. 
- Meu Deus, um pouco de ambas, era o que Swann nos explicou-me apenas, a senhora sabe, sou uma pobre ignorante. E depois no fundo, Alteza, é preciso levar em conta que o Egito do estilo Império nada tem a ver com o verdadeiro Egito, nem seus romanos com os romanos, na sua Etrúria... 
- Verdade? - comentou a princesa. 
- Não, é como o que se chamava um costume Luís XV sob o segundo Império, na juventude de Anna de Mouchy ou da mãe do coronel Brigode. Agora há pouco Basin lhe falava de Beethoven. Outro dia, tocamos algo dele, muito bonito aliás, um pouco frio, onde há um tema russo, comovente pensar que ele acreditava ser russo aquilo. Do mesmo modo, os pintores chineses julgaram copiar Bellini. Ademais, até no mesmo país, talvez que alguém observa as coisas de um modo um tanto novo, quatro quartos das pessoas não veem nada do que lhes mostra. É preciso pelo menos ter quarenta anos para que cheguem a perceber. 
- Quarenta anos! - exclamou a princesa, espantada. 
- Sim - continuou a duquesa, acrescentando cada vez mais palavras (que eram quase palavras minhas, pois eu justamente emitira ante dela uma ideia análoga), graças à sua pronúncia, o equivalente do que para os caracteres impressos, se denomina "itálico" -, é como uma espécie de primeiro indivíduo isolado de uma espécie que ainda não existe e há de pulular, um indivíduo dotado de um tipo de sentido que a humanidade em seu tempo não possui. Quase não posso me citar, pois eu, pelo e contrário, sempre gostei desde o princípio de todas as manifestações interessantes, por mais novas que fossem. Mas enfim, outro dia fui com a duquesa ao Louvre e passamos diante da Olympia de Manet. Agora, ninguém se espanta mais. Aquilo parece uma coisa de Ingres! E, no entanto, Deus como tive de quebrar lanças por esse quadro, que não me agrada, mas certamente é de alguém. Seu lugar talvez não seja exatamente no Louvre. 
- A grã-duquesa vai bem? - perguntou a princesa de Parma, a quem a tia do czar era infinitamente mais familiar que o modelo de Manet. 
- Sim, falamos de Vossa Alteza. - No fundo - continuou a duquesa, aferrada à sua ideia a verdade - é que, como diz meu cunhado Palamede, tem-se entre nós e cada pessoa o muro de uma língua estranha. De resto, reconheço que com ninguém mais isto é tão exato como com Gilbert. Se lhe agrada ir aos Lénas, Vossa Alteza possui bastante espírito para que possa fazer seus atos dependerem do que pode vir a pensar aquele homem, uma boa criatura inocente, mas que enfim tem ideias do outro mundo. Sinto-me mais próxima, mais consanguíneo de meu cocheiro, de meus cavalos, do que desse homem que se refere o tempo todo ao que teriam pensado na época de Filipe, o Audaz, ou de Luís, o Gordo. Imagine que, quando ele passeia pelo campo com ar bonachão, afasta os camponeses com a bengala, dizendo: "Vamos, rústicos!" Quando ele me fala, sinto-me intimamente tão espantada como se ouvisse que me dirigiam a palavra os "jazentes" dos antigos túmulos góticos. Por mais que seja meu primo, essa pedra mortuária viva me dá medo e só penso em deixá-lo em sua Idade Média. Fora isso, reconheço que jamais assassinou alguém. 
- Acabo justamente de jantar com ele na casa da Sra. de Villeparisis - disse o general, mas sem sorrir nem aderir aos gracejos da duquesa. 
- O Sr. de Norpois estava presente? - indagou o príncipe Von, que pensava sempre na Academia de Ciências Morais.
- Sim - disse o general. - Chegou mesmo a falar no seu imperador. 
- Parece que o imperador Guilherme é muito inteligente, mas não aprecia a pintura de Elstir. Aliás, não estou dizendo isto contra ele - observou a duquesa -; compartilho o seu modo de ver. Embora Elstir tenha pintado um belo retrato meu. Ah, não o conhecem? Não se parece comigo, mas é curioso. Ele é interessante durante as poses. Transformou-me numa espécie de velhinha. O quadro imita As Regentes do Hospital, de Frans Hals. Penso que o senhor conhece estas sublimidades, para tomar emprestada uma expressão tão cara ao meu sobrinho - disse ela virando-se para mim e agitando de leve o seu leque de plumas negras. Bem empertigada na cadeira, erguia nobremente a cabeça para trás, pois, embora sendo sempre uma grande dama, representava um pouquinho de grande dama. - Disse-lhe que antigamente fora a Amsterdam e a Haia, mas que, como o meu tempo era escasso, e para não misturar tudo, deixara Haarlem de lado. 
- Ah, a Haia, que museu! - exclamou o Sr. de Guermantes. 

     Disse-lhe que ele havia sem dúvida admirado a Vista de Delft, de Vermelho. Porém o duque era menos instruído que orgulhoso. Assim, contentou-se em me responder com um ar de auto-suficiência, como de cada vez que falavam de uma obra, de um museu ou mesmo de um Salão que não dava resposta: 

- Se é para se ver, eu vi! 
- Como! O senhor viajou para a Holanda e não foi a Haarlem? - exclamou a duquesa. - Mas ainda que só dispusesse de um quarto de hora é algo extraordinário para se ter visto, os Hals. Diria mais: alguém que pudesse vê-los do alto de um segundo andar, num bonde à disparada, estivessem expostos de fora, deveria arregalar os olhos. - 

     Esta frase não chocou pelo desconhecimento que revelava da maneira como se formam em nós as impressões artísticas, e porque parecia implicar que nosso olho no caso, é um simples aparelho registrador que pega instantâneos. O Sr. de Guermantes, feliz porque ela falava com tanta competência de assuntos que me interessavam, observava o célebre porte distinto da esposa, escutava o que ela dizia de Frans Hals e pensava: 

"Ela domina qualquer assunto. Meu jovem convidado, pode se dizer que tem diante de si uma grande dama de outrora em toda a acepção do termo, como existe uma segunda hoje." 

     Assim eu os via a ambos isolados desse de Guermantes, no qual, antigamente, imaginava-os levando uma vida inconcebível, agora semelhantes aos outros homens e às outras mulher, apenas um tanto defasados em relação a seus contemporâneos, mas igualmente, como tantos casais do faubourg Saint-Germain, em que a mulher teve a arte de parar na idade de outro, e o homem, a má sorte de descer à ingrata idade do passado; uma permanecendo ainda Luís XV quando o marido é pomposamente Luís Filipe. Que a Sra. de Guermantes fosse igual às outras mulheres, isto para mim fora a princípio uma decepção; agora, por reação, e com a ajuda de tantos bons vinhos, era um deslumbramento Um Dom João da Áustria, uma Isabela d'Este, por nós situados no museu dos nomes, comunicam-se tão escassamente com a grande história tanto do lado de Méséglise como do lado de Guermantes. Isabela d'Este foi sem dúvida, na realidade, uma princesa bem insignificante, parecida àquelas sob Luís XIV, não obtinham nenhuma posição especial na corte. Mas, parecendo-nos de uma essência única e portanto incomparável, não pode concebê-la de uma grandeza inferior à dele; de modo que uma ceia com Luís XIV nos pareceria oferecer apenas algum interesse, ao passo que em Isabela d'Este encontraríamos, vista com nossos próprios olhos por um acaso sobrenatural, uma heroína de romance. Ora, depois de haver percebida, estudar Isabela d'Este, transplantando-a pacientemente desse mundo para o da história, que sua vida e seu pensamento nada continham dessa estranheza misteriosa que nos sugeria o seu nome, uma vez consumada essa decepção, ficamos infinitamente gratos a essa princesa por ter tido, da pintura de Mantegna, conhecimentos quase iguais aos do Sr. Lafenestre, até então desprezados por todos e postos, como teria dito Françoise, "mais abaixo da terra". Depois de haver transposto as alturas inacessíveis do nome de Guermantes, ao descer a vertente interna da vida da duquesa, experimentava, ao encontrar ali os nomes, em outros pontos familiares, de Victor Hugo, de Frans Hals e, infelizmente, de Gilbert, o mesmo espanto que um viajante, depois de levar em conta, para apreender a singularidade dos costumes em um vale agreste da América Central ou do norte da África, o afastamento geográfico e a estranheza das denominações da flora, experimenta ao descobrir, uma vez atravessada uma cortina de aloés gigantescos ou de mancenilheiras, habitantes que (às vezes até diante das ruínas de um teatro romano e de uma coluna dedicada a Vênus) estão lendo a Mérope ou a Alzira [Mérope e Alzira: as tragédias de Voltaire]. E tão longe, tão à parte, tão acima das burguesas instruídas que eu conhecera, a cultura similar pela qual a Sra. de Guermantes se esforçara, sem interesse, sem motivo de ambição, em descer ao nível das que ela não conheceria jamais, tinha o caráter meritório, quase tocante à força de ser inutilizável, de uma erudição em matéria de antiguidades fenícias num político ou num médico. 

- Poderia mostrar-lhe um muito bonito - disse-me amavelmente a Sra. de Guermantes, falando-me de Hals -, o mais belo, segundo algumas pessoas, e que herdei de um primo alemão. Infelizmente, encontra-se "enfeudado", no castelo; não conhece esta expressão? Eu tampouco acrescentou, com esse seu gosto de fazer gracejos (com o que se julgava tão moderna) sobre os costumes antigos, mas aos quais se achava inconsciente e ferozmente aferrada. - Estou satisfeita de que tenha visto os meus Elstirs, mas confesso que ficaria ainda mais se tivesse podido lhe fazer as honras do meu Hals, desse quadro "enfeudado". 
- Conheço-o - disse o príncipe Von -; é o grão-duque de Hesse. 
- Justamente. Seu irmão se casara com minha irmã - disse o Sr. de Guermantes -; aliás, sua mãe era prima-irmã da mãe de Oriane. 
- Mas, no que se refere ao Sr. Elstir - acrescentou o príncipe, eu me permitirei dizer que, sem opinar sobre suas obras, que não conheço, o ódio com que o persegue o imperador não me parece que deva ser debitado contra ele. O imperador é de uma inteligência admirável. 
- Sim, jantei duas vezes com ele; uma vez na casa de minha Sagan, outra na casa de minha tia Radziwill, e devo dizer que o julguei curioso. Não o achei simples. Mas ele tem algo de divertido, de "adquirir” - disse a duquesa, sublinhando a expressão como um cravo verde, seja, uma coisa que me espanta e não me agrada infinitamente, uma coleção que é espantoso possa ter sido obtida, mas que acho ficaria igualmente bem se não fosse feita. Espero que o senhor não se sinta chocado. 
- O imperador é de uma inteligência inaudita - prosseguiu o príncipe Von -; ama apaixonadamente as artes; sobre as obras de arte possui um gosto de algum modo infalível, jamais se engana. Se uma coisa é bonita, ele a reconhece de imediato e cria-lhe ódio; se detesta algo, não há dúvida alguma, é que é excelente. -  

continua na página 233...
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Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - um ar banalmente triste)
Volume 7

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