sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Todos sorriram)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

continuando...

     Todos sorriram. 

- O senhor me tranquiliza - disse a duquesa. 
- Eu compararia de bom grado o imperador - prosseguiu o príncipe que, não sabendo pronunciar a palavra "arqueólogo" (ou seja, como se estivesse escrito arkeólogo), não perdia nunca oportunidade de servir-se de um velho arqueólogo (e o príncipe disse "arxeólogo") que temos era Berlim. Diante dos antigos monumentos assírios, o velho arxeólogo chora? Mas se se trata de uma falsificação moderna, se não é uma peça verdadeiramente antiga, ele não chora. Então, quando se quer saber se uma peça arxeológica é verdadeiramente antiga, levamo-la ao velho arxeólogo. Se chora, a gente compra a peça para o museu. Se seus olhos permanecem secos, enviamo-la de volta ao negociante e o processamos por falsário. Muita bem, de cada vez que janto em Potsdam, todas as peças de que o imperador afirma: "Príncipe, é preciso que vejais, está cheio de genialidade", tome nota daquilo para evitar ir vê-las, e, quando ouço-o explodir contra uma exposição, corro até lá logo que me seja possível. 
- O Sr. de Norpois não é favorável a uma aproximação anglo-francesa? - perguntou o Sr. de Guermantes. 
- De que lhes serviria? - indagou, a um tempo irritado o príncipe Von, que não podia suportar os ingleses. - Eles são imbecis. Sei muito bem que não é como militares que eles os ajudariam. Mas ainda assim, pode-se julgá-los pela estupidez de seus generais. Um de meus amigos conversou recentemente com Botha, vocês sabem, o chefe dos boêres. Ele lhe dizia: "É espantoso um exército como esse. Aliás, gosto dos ingleses, mas enfim leve em conta que eu, que não passo de um camponês, venci em todas as batalhas. E na última, quando eu caía sob um número de inimigos vinte vezes superior, enquanto me rendia porque não havia outro jeito, ainda tive meios de fazer dois mil prisioneiros! E isso porque eu não passava de um chefe de camponeses, mas, se aqueles imbecis tivessem de medir forças como um verdadeiro exército europeu, é de se tremer por eles só em pensar no que poderia acontecer!" Além do mais, basta ver que o rei deles, que os senhores conhecem tão bem quanto eu, passa por ser um grande homem na Inglaterra.

     Eu mal escutava essas histórias, do tipo das que o Sr. de Norpois contava a meu pai; não forneciam alimento algum às fantasias que eu amava. E, além disso, mesmo que possuíssem a substância de que eram desprovidas, seria preciso que fossem de qualidade muito excitante para que minha vida interior pudesse despertar durante essas horas mundanas em que eu habitava a minha epiderme, meus cabelos bem penteados, meu peitilho de camisa, isto é, em que eu nada podia experimentar do que era para mim o prazer na vida. 

- Ah, não sou de sua opinião - disse a Sra. de Guermantes, que julgava que o príncipe alemão carecia de tato -; acho o rei Eduardo encantador, tão simples, e bem mais fino que se acredita. E a rainha é, mesmo ainda agora, o que conheço de mais belo em todo o mundo. 
- Mas, Senhorra duquesa - disse o príncipe irritado, sem perceber que estava desagradando -; todavia, se o príncipe de Gales fosse um simples particular, não haveria um único círculo que o não tivesse eliminado e ninguém teria consentido em lhe apertar a mão. A rainha é arrebatadora, excessivamente doce e limitada. Mas enfim, existe algo de chocante nesse casal régio que é literalmente sustentado por seus súditos, que faz com que os grandes financistas judeus paguem todas as contas que eles deveriam pagar e em troca nomeia-os baronetes do reino. É como o príncipe da Bulgária... 
- É o nosso primo - disse a duquesa. - Ele tem espírito. 
- É meu também - disse o príncipe. - Mas nem por isso vamos achar que é uma excelente pessoa. Não, é de nós que é necessário que os senhores se aproximem, é o maior desejo do imperador, mas ele quer que isto venha do coração; ele disse: o que desejo é um aperto de mão, e não um cumprimento de chapéu! Assim vós seríeis invencíveis. Seria isto mais prático do que a aproximação anglo-francesa que prega o Sr. de Norpois. 
- O senhor o conhece, bem sei - disse-me a duquesa de Guermantes para não me deixar de fora na conversação. Lembrando-me que o Sr. de Norpois dissera que eu dava a impressão de querer beijar-lhe a mão, pensando que ele sem dúvida contara esse episódio à Sra. de Guermantes e, em todo caso, só poderia lhe ter falado a meu respeito de modo malévolo, visto que, apesar de sua amizade por meu pai, não hesitara em tornar-me tão ridículo, não fiz o que teria feito um homem mundano. Este dito para dar a impressão de ser a causa voluntária das maledicências do embaixador, que não passariam de represálias mentirosas e interessadas. 
- Pelo e contrário, - disse eu, que, para meu grande pesar, achava que o Sr. de Norpois não gostava de mim. 
- Está muito enganado - replicou a Sra. Guermantes. Ele gosta muito do senhor. Pode perguntar a Basin; se tenho fama de ser amável demais, com ele não se dá o mesmo. Ele lhe dirá, que nunca ouvimos Norpois falar de alguém com tanta amabilidade como de senhor. E, ultimamente, quis fazer com que lhe dessem um posto esplêndido no Ministério. Como soube que o senhor andava doente e não poderia aceitá-lo, teve a delicadeza de nem sequer falar de sua boa intenção senhor seu pai, a quem tributa uma afeição infinita. -

     O Sr. de Norpois justamente era a última pessoa de quem eu esperaria um bom emprego. A verdade é que, sendo trocista e até mesmo bastante mal-intencionado, aqueles que se haviam deixado levar, como eu, por suas aparências de São Luís, fazendo justiça debaixo de um carvalho, pelos tons de voz facilmente compassivos que saíam de sua boca um pouco harmoniosos demais, acreditavam numa verdadeira perfídia ao saberem de alguma maledicência a seu respeito, vinda de um homem que dera a impressão de pôr o coração em suas palavras tais maledicências eram por demais frequentes nele. Isto porém, não impedia de angariar simpatias, de enaltecer aqueles de quem gostava e de ter prazer em se mostrar serviçal para com eles. 

- Aliás, não me espanta que ele o estime - disse a Sra. de Guermantes, - Ele é inteligente. E compreendo muito bem – acrescentou para os outros, e fazendo alusão a um projeto de casamento que eu ignorava que minha tia, que já não o diverte muito como velha amante, lhe pareça inútil como nova esposa. Tanto mais que acho que, mesmo amante ela já não o é há bastante tempo. Ela só tem relações, se assim posso me exprimir, com o bom Deus. É mais beata do que possam imaginar, e Booz Norpois pode dizer como nos versos de Victor Hugo: Há muito tempo que aquela com quem dormi, Senhor, Trocou meu leito pelo vosso!

     Na verdade, minha pobre tia é como esses artistas de vanguarda que atacam a vida toda a Academia e, nos seus últimos anos, fundam agenciazinha; ou então como os padres que deixam a batina e criam seu próprio uso uma religião pessoal. Então, valeria mais conservar o hábito ou não coabitar. 

- E quem sabe - acrescentou a duquesa com ar sonhador -; talvez seja em previsão da viuvez. Nada mais triste que o luto que não se pode suportar. 
- Ah, se a Sra. de Villeparisis se tornasse Sra. de Norpois, creio que nosso primo Gilbert teria um ataque - disse o general de Saint-Joseph. - O príncipe de Guermantes é encantador, mas, de fato, permanece muito preso às questões de nascimento e de etiqueta disse a princesa de Parma. - Fui passar dois dias em sua casa no campo, enquanto infelizmente a princesa estava enferma. Estava acompanhada de Pequena (era um apelido que se dava à Sra. d'Hunolstein porque era imensa). O príncipe veio esperar-me embaixo da escadaria, ofereceu-me o braço e fez que não via a Pequena. Subimos ao primeiro andar até a entrada dos salões e então ali, afastando-se para me deixar passar, disse: "Ah, bom-dia, senhora d'Hunolstein (ele nunca a chama de outro modo depois da separação dela), fingindo só então se aperceber da Pequena, a fim de mostrar que não era obrigado a recebê-la embaixo. 
- Isto absolutamente não me espanta. Não preciso lhe dizer - observou o duque, que se julgava extremamente moderno, depreciador, mais que qualquer outro, do nascimento, e até republicano que não possuo muitas ideias em comum com meu primo. Vossa Alteza pode imaginar que nos entendemos mais ou menos sobre todas as coisas como o dia com a noite. Mas devo dizer que, se minha tia esposasse Norpois, uma vez pelo menos eu seria da opinião de Gilbert. Ser a filha de Florimond de Guise e fazer um tal casamento seria, como se diz, de fazer rir as galinhas, que querem que lhes diga? -Estas últimas palavras, que o duque pronunciava geralmente no meio de uma frase, eram ali totalmente inúteis. Tinha ele, porém, uma necessidade permanente de dizê-las, necessidade que o obrigava rejeitá-las para o fim de um período caso não achassem lugar em outra parte. Era para ele, entre outras coisas, uma questão de métrica. - Notem - acrescentou - que os Norpois são honrados gentis-homens, de boa casa e de boa cepa. 
- Escute, Basin, não vale a pena zombar de Gilbert para falar como ele - disse a Sra. de Guermantes, para quem a "bondade" de uma origem, não menos que a de um vinho, consistia exatamente, como para o príncipe para o duque, em sua antiguidade. Porém, menos franca do que o primo e mais delicada que o marido, fazia questão de não desmentir, conservando, o espírito de Guermantes e desprezava a estirpe em suas palavras, com risco de honrá-la por seus atos. 
- Mas os senhores não são até um pouco primos? - perguntou o general de Saint-Joseph. - Parece-me que Norpois desposara uma La Rochefoucauld. 
- De modo algum dessa forma. Ela pertencia ao ramo dos duques de La Rochefoucauld, e minha avó descende dos duques de Doudeauvilik. É a própria avó de Édouard Coco, o homem mais sensato da família respondeu o duque, o qual possuía, acerca da sensatez, ideias um tanto superficiais e os dois ramos estão separados desde Luís XIV; de modo que o parentesco seria um tanto afastado. 
- Ora, isto é interessante; eu não o sabia - disse o general. 
- Além disso - prosseguiu o Sr. de Guermantes -, a sua mãe creio, é irmã do duque de Montmorency e desposara primeiro o La Tour d'Auvergne.

     Mas, como esses Montmorencys mal são Montmorencys, e esses La Tour d'Auvergnes não são absolutamente La Tour d'Auvergnes, não como lhe dê uma alta posição. Diz ele, o que seria mais importante, agora descende de Saintrailles, e como nós descendemos deste em linha direta havia em Combray uma rua de Saintrailles na qual eu jamais chegara a pensar. Ela levava da rua de La Bretonnerie à rua de I'Oiseau. E, callíé Saintrailles, companheiro de Joana d'Arc, fizera, ao desposar uma Guermantes, entrar para a sua família o condado de Combray, suas armas esquartejavam as de Guermantes na parte inferior de um vitral de Santo Hilárlgt. Vi novamente degraus de escura argila arenosa enquanto uma moldura transportava esse nome de Guermantes ao tom esquecido em que o ouvi lá outrora, tão diferente daquele com que significava os amáveis anfitriões; - cuja casa eu jantava esta noite. Se o nome de duquesa de Guermantes para mim um nome coletivo, não era só na História, pela adição de todas as mulheres que o haviam usado, mas também ao longo de minha juventude que já vira, nesta única duquesa de Guermantes, tantas mulheres diferentes se superporem, cada qual desaparecendo quando a seguinte assumia maior consistência. As palavras não mudam tanto de sentido; durante séculos, como para nomes no intervalo de alguns anos. A memória e nosso coração não são bastante grandes para poderem ser fiéis. Não temos bastante espaço, no nosso pensamento atual, para nele guardar os mortos ao lado dos vivos. Somos obrigados a edificar sobre o que precedeu e que só encontramos ao acaso de uma escavação, do tipo aquela que o nome de Saintrailles acabava de realizar. Achei inútil explicar tudo isso, e até, um pouco antes, mentira implicitamente ao não responder, quando o Sr. de Guermantes indagara: "Não conhece a nossa parente?”; talvez ele até soubesse que eu a conhecia, mas foi só por uma questão de boa educação que não insistiu. A Sra. de Guermantes me arrancou do devaneio. 

- Quanto a mim, acho tudo isso muito tedioso. Escute, as que não são sempre assim tediosas na minha casa. Espero que o senhor volte logo a jantar conosco, para uma compensação, dessa vez sem genealogias - disse a meia voz a duquesa, incapaz de compreender o gênero de encanto que eu podia encontrar em sua casa e de ter a humildade de só me agradar apenas como um herbário cheio de plantas fora de moda.

     O que a Sra. de Guermantes julgava decepcionar a minha expectativa era, pelo contrário, aquilo que afinal, pois o duque e o general não deixaram mais de conversar sobre genealogias salvava a minha noite de uma decepção completa. Como não a experimentara até então? Cada um dos convivas do jantar, enfarpelando-se do nome misterioso sob o qual eu o conhecera e sonhara a distância, de um corpo e de uma inteligência semelhantes ou inferiores aos de todas as pessoas que eu conhecia, dera-me a impressão da insípida vulgaridade que pode conferir a entrada no porto danês de Elsinor a todo leitor apaixonado do Hamlet. Sem dúvida, essas regiões geográficas e esse passado antigo, que punham matas e campanários góticos em seu nome, tinham em certa medida formado seu rosto, seu espírito e seus preconceitos, mas ali não subsistiam a não ser como a causa no efeito, ou seja, talvez possíveis de distinguir pela inteligência, mas de modo algum sensíveis à imaginação.
     E esses preconceitos de outros devolveram de súbito aos amigos do Sr. e da Sra. de Guermantes a sua perdida poesia. É claro que as noções possuídas pelos nobres e que fazem deles os letrados, os etimologistas da língua, não das palavras mas dos nomes (e isso ainda apenas relativamente à metade ignorante da burguesia, pois se, igual em mediocridade, um devoto será mais capaz de nos responder sobre a liturgia do que um livre-pensador, em compensação um arqueólogo anticlerical poderá muitas vezes fazer reparos a seu cura sobre tudo o que se refira até mesmo à igreja deste), tais noções se quisermos falar na verdade, isto é, no espírito, não tinham sequer para esses grãos-senhores o encanto que teriam tido para um burguês. Eles sabiam talvez menos que eu que a duquesa de Guise era princesa de Cleves, de Orleans e de Porcien, etc., mas haviam conhecido, antes mesmo de todos esses nomes, a fisionomia da duquesa de Guise que desde então esse nome refletia. Eu havia começado pela fada, embora ela devesse perecer logo; apenas pela mulher.
     Nas famílias burguesas vê-se por vezes nascerem ciúmes se a irmã caçula se casa antes da primogênita. Assim, o mundo aristocrático, sobretudo o dos Courvoisiers, mas também o dos Guermantes, reduzia sua grandeza nobiliárquica a simples superioridades domésticas, em virtude de uma infantilidade que eu havia conhecido antes (era para mim o seu único encanto) nos livros. Tallemant des Réaux não dá impressão de falar dos Rohan, quando conta com evidente satisfação que o Sr. de Guéménée gritava a seu irmão: "Podes entrar aqui, não é o Louvre!" e dizia do cavalheiro porque este era filho natural do duque de Clermont: "Ele pelo menos príncipe!" A única coisa que me deu pena naquela conversa foi ver que, absurdos históricos referentes ao encantador grão-duque herdeiro de Luxemburgo encontravam crédito naquele salão, tanto como junto aos companheiros de Saint-Loup. Decididamente, tratava-se de uma epidemia geral, talvez não durasse mais que dois anos, mas que se estendia a todos. Repetiam-se as mesmas narrativas falsas, acrescentavam-lhes outras. Compreendi que a própria princesa de Luxemburgo, tendo o ar de defender o difícil sobrinho, fornecia armas para que o atacassem. 

- O senhor faz mal em defendê-lo - disse-me o Sr. de Guermantes, como o fizera Saint Loup. - Olhe, deixemos de lado até a opinião de nossos parentes, que é unânime - fale dele à seus criados, que no fundo são as pessoas que melhor nos conhecem. - Sra. de Luxemburgo dera seu criadinho negro ao sobrinho negrinho, soltou chorando: "Grão-duque bateu em mim, mim não gosta - grão-duque mau. Impressionante!" E posso falar dele com conhecimento de causa, é primo de Oriane.

     Aliás, não posso dizer quantas vezes ouvi naquela noite as palavras "primo" e "prima". De uma parte, o Sr. de Guermantes, quase a cada nome que pronunciavam, exclamava:

"Mas é um primo de Oriane!" com a mesma satisfação de um homem que, perdido numa floresta, lê na ponta das setas, dispostas em sentido contrário sobre uma placa indicativa e seguidas de uma cifra bem pequena de quilômetros: "Belvedere Casimir-Pérfe "Croix du Grand Veneur", e compreende assim que está no caminho certo. Por outro lado, estas palavras "primo" e "prima" eram empregadas com intenção bem diversa (que aqui fazia exceção) pela embaixatriz da Turquia, a qual chamara após o jantar. Devorada pela ambição mundana e dotada de verdadeira inteligência assimilativa, aprendia com a mesma facilidade a história da retirada dos Dez Mil ou a perversão sexual entre os pássaros. Teria sido impossível apanhá-la em erro sobre os mais recentes trabalhos alemães, porque tratassem de economia política, de versarias diversas - mas de onanismo, ou da filosofia de Epicuro. De resto, era uma mentira perigosa ouvir, pois permanentemente, sem erro, apontava-nos as mulheres ultralevianas, as irrepreensíveis modelos de virtude, punha-nos sobreaviso a respeito de um senhor animado das mais puras intenções; contava histórias que parecem sair de um livro, não por serem sérias, devido à sua inverossimilhança que essa época, ela era pouco recebida. Frequentava por algumas semanas mulheres de extremo brilho, como a duquesa de Guermantes, em geral ia forçada a limitar-se, quanto às famílias mais nobres, obscuros que os Guermantes já não frequentavam. Esperava ter um aspecto inteiramente mundano ao citar os maiores nomes de pessoas pouco recebidas na sociedade e que eram amigos seus. E logo o Sr. de Guermantes, julgando tratar-se de pessoas que jantavam amiúde em sua casa, fremia alegremente por encontrar-se em terreno conhecido e soltava um brado de reunião: "Mas é um primo de Oriane! Conheço-o como a palma da mão. Ele mora na rua Vaneau. Sua mãe era a Srta. D'Uzes." A embaixatriz via-se forçada a confessar que seu exemplo era tirado de animais menores. Cuidava de relacionar seus amigos aos do Sr. de Guermantes, apanhando-o de soslaio: 

- Sei perfeitamente a quem pretende se referir. Não, não são esses, são primos. -  

     Mas esta frase de refluxo lançada pela pobre embaixatriz expirava bem depressa. Pois o Sr. de Guermantes, desapontado, respondia: 

- Ah, então não percebo a quem deseja referir-se. -

     A embaixatriz não replicava nada, pois, se jamais conhecia senão os primos daqueles a quem deveria conhecer, frequentemente ocorria que esses primos não eram sequer parentes. Depois, da parte do Sr. de Guermantes, era um novo jorrar de "Mas é uma prima de Oriane", palavras que pareciam ter para o Sr. de Guermantes, em cada uma de suas frases, a mesma utilidade de que certos epítetos cômodos possuem para os poetas latinos, pois lhe fornecem um dáctilo ou um corresponder para seus hexâmetros. Pelo menos, a explosão de "Mas é uma prima de Oriane" me pareceu bem natural quando aplicada à princesa de Guermantes, a qual era de fato parenta bem próxima da duquesa. A embaixatriz dava a impressão de não gostar dessa princesa, pois me disse bem baixinho: 

- Ela é estúpida. Mas não, ela não é bonita. Trata-se de uma reputação usurpada. Aliás acrescentou com um ar a um tempo refletido, repulsivo e decidido -, ela me parece bastante antipática. -

     Porém, muitas vezes o parentesco de primos estendia-se muito mais longe; a Sra. de Guermantes sentia-se na obrigação de tratar de "minha tia" as pessoas com quem não lhe encontrariam um ancestral comum sem remontar pelo menos até Luís XV, da mesma forma que, de cada vez que a infelicidade dos tempos fazia que uma multimilionária desposasse algum príncipe, cujo trisavô se casara, com um da Sra. de Guermantes, com uma filha de Louvois, uma das alegrias da americana consistia em poder, logo na primeira visita ao palácio de Guermantes, onde aliás ela era mais ou menos mal recebida e mais ou menos bem esmiuçada, dizer "minha tia" à Sra. de Guermantes, que a deixava fazê-lo com um sorriso maternal. Mas pouco me importava o que fosse o "nascimento" para o Sr. de Guermantes e o Sr. de Beauserfeuil; nas conversas deles a esse respeito, eu buscava apenas um prazer poético. Sem que eles mesmos o conhecessem, proporcionavam-me todavia esse prazer; como viriam feito lavradores ou marinheiros falando do plantio ou das marés, idades muito pouco destacadas deles próprios para que pudessem ver beleza que eu pessoalmente me encarregava de extrair delas. Por vezes, mais que a uma raça, era um fato particular, uma que um nome recordava. Ouvindo o Sr. de Guermantes lembrar que a Sra. de Bréauté era uma Choiseul e sua avó uma Lucinge, julguei a camisa banal de simples botões de pérola, sangrarem em dois guizos de cristal estas nobres relíquias: o coração da Sra. de Praslin e o Duque de Berri; outras relíquias eram mais voluptuosas, os longos cabelos da Sra. de Tallien ou da Sra. de Sabran.
     Algumas vezes o que eu via não era uma simples relíquia. Mais instruído que a esposa sobre o que haviam sido os seus ancestrais, ao Sr. de Guermantes ocorria achar-se de posse de recordações que davam à conversa um belo ar de antiga residência desprovida de verdadeiras obras primas, porém repleta de quadros legítimos, medíocres e majestosos, cujo conjunto impressiona. Tendo o príncipe de Agrigento indagado por que o príncipe Von dissera, falando do duque de Aumale, "meu tio", o Sr. de Guermantes respondeu: 

- Porque o irmão de sua mãe, o duque de Wurtemberg, havia desposado uma filha de Luís Filipe. -

     Então contemplei pouco um relicário, semelhante aos pintados por Carpaccio ou Memling, desde o primeiro compartimento, em que a princesa, nas festas das núpcias de seu irmão, o duque de Orléans, aparecia vestida com um simples traje de jardim para testemunhar seu mau humor por ter visto serem repelidos os seus embaixadores que tinham ido pedir para ela a mão do príncipe de Siracusob até o último, em que ela acaba de dar à luz um menino, o duque de Wurtemberg (o próprio tio do príncipe com quem eu acabava de jantar), naquele castelo de Fantasia, um desses lugares tão aristocráticos como certa famílias. Eles também, como duram mais de uma geração, vêem ligar-se àquele seu meio mais de uma personalidade histórica; especialmente naquele vai-e-vem, lado a lado, as recordações da Margravina de Bayreuth, daquela outro princesa um tanto fantástica (a irmã do duque de Orléans), a quem, dizia-se, o nome do castelo do esposo agradava, do rei da Baviera e, por fim, do príncipe Von, de quem precisamente era o endereço, para o qual acabava de pedir ao duque de Guermantes que lhe escrevesse, pois o havia herdado e só o alugava, durante as representações de Wagner, ao príncipe Polignac, outro "fantasista" delicioso. Quando o Sr. de Guermantes, para explicar como era parente da Sra. d'Arpajon, se obrigava a remontar, de longe e simplesmente, pelas cadeias e as mãos juntas de três ou cinco avó a Marie-Louise ou a Colbert, ainda era a mesma coisa: em todos esses casos, um grande evento histórico só aparecia, de passagem, disfarçado, restringido, no nome de uma propriedade, nos prenomes de uma mulher escolhidos por ser ela neta de Luís Filipe e de Maria-Amélia, considerados não mais como rei e rainha da França, mas apenas na medida em que, sendo avós, deixaram uma herança. (Por outros motivos, vê-se num dicionário da obra de Balzac, onde os personagens mais ilustres só figuram conforme suas ligações com a Comédia Humana, Napoleão ocupar um espaço bem menor que o de Rastignac, e ocupá-lo exclusivamente por haver falado às senhoritas de Cinq-Cygne.) Desse modo a aristocracia, em uma construção pesada, aberta em raras janelas, deixando entrar pouca luz, mostrando a mesma falta de ousadia, mas igualmente a mesma força maciça e cega da arquitetura romana, encerra em si toda a História, rodeia-a de muralhas, torna-a carrancuda.
     Assim os espaços de minha memória se cobriam aos poucos de nomes que, ordenando-se, compondo-se uns em relação aos outros, estabelecendo entre eles ligações cada vez mais numerosas, imitavam essas obras de arte acabadas, onde não existe um só toque isolado, onde cada parte recebe sucessivamente da outra a sua razão de ser como ela lhes impõe a sua.

continua na página 238...
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Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Todos sorriram)
Volume 7

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