baitasar
entro na sala de aula semeando sorrisos, o sol intenso de verão brilhando nas janelas, os alarmes silenciosos acionados, as mãos úmidas e o sorriso excessivo, isso me deixa confuso, junto vem o exame das crianças, fazem rapidamente da cabeça aos pés, sorrindo e me convidando para entrar, sou um hóspede delas, ainda um estrangeiro, alguém a ser decifrado, mastigado e engolindo em pedacinhos ao longo do ano, um gemido oculto, Enfim, sós!
pergunto-me, O que fiz da minha razão, não passou nem um minuto e a inquietação continua a molestar meu coração com tal intensidade que se espalha, emudece minha voz, percebo que perdi a leviandade própria da idade jovem, aprendera com os anos que tudo tem consequências, então, chegamos até aqui, frente a frente, só me resta aprender esse outro jeito com essas crianças
e quantas mais se perderam no caminho, não chegaram até aqui, seguem existindo sem existir, não fazem parte das estatísticas, mas a sala está cheia, vinte e cinco crianças, não posso perder nenhuma destas que chegaram até à escola, a paisagem da janela segue dourada, esparramo meu olhar, não existe mágica para borrifar consciência sobre a ignorância, cognição para se desistir do desconhecimento, convivência para se sair do interior do isolamento, razão em troca da incompreensão, mas posso acrescentar alegria ao medo, acolhimento ao abandono, amorosidade ao desinteresse, Minha turma e as tarefas até deixarem de ser.
estou em pé, levemente apoiado na minha mesa, aquela mesa maior, a mesa de fórmica verde do professor, pergunto se conhecem a música dos ‘Dedinhos’, Sim... Não... Sim... Não...
Então, quem já sabe pode cantar junto. E quem não sabe vai aprender cantando junto. É bem fácil! Estão prontos? Vamos começar:
Alô, polegar!Como vai, meu xará?A família vai bem.E a minha, também!Como é bom... a gente se encontrar.Alô, indicador!Como vai, meu xará?A família vai bem.E a minha, também!Como é bom a gente se encontrar...Alô, dedo médio!Como vai, meu xará?A família vai bem.E a minha, também!Como é bom... a gente se encontrar.Alô, anelar!Como vai, meu xará?A família vai bem.E a minha, também!Como é bom... a gente se encontrar.Alô, dedo mingo!Como vai, meu xará?A família vai bem.E a minha, também!Como é bom... a gente se encontrar.Alô, dona mão!Como vai, minha xará?A família vai bem.E a minha, também!Como é bom... a gente se encontrar.
a alegria da convivência, o contentamento da compreensão, o sorriso de fazer parte, a coragem para aprender, apresentei meu cartão de visitas
começo a chamada, nome por nome, encantando-me, rosto por rosto, reconhecendo cada voz, descobrindo que não tem segredo para vivermos 150 anos, basta fazermos parte das memórias destas crianças
nossos olhos investigando, nossas vozes aprendendo, não estamos com pressa, é tudo novo, eu e eles, elas e eu, eles e elas, uma sala de cuidados, curiosidades, encantos e estimas, esperanças grandes e pequenas sentadas na fórmica verde, a sala de aula e o abrigo para tantos significados
termino a chamada, está feita, E agora Marko, o que fazer?
ainda não sei como começar o rebuliço da aprendizagem, essa escola está determinada em acolher as crianças – apesar da incompetência e o descaso do prefeito – e corrigir esse começo incerto, eu devo ser o rebuliço que resta à falta de alternativas, Será que sabia o tamanho do que me pedia, a resposta ainda ressoa em meus ouvidos, Só peço que fique com as duas turmas até a chegada da nova professora... – aqui estou de supetão e sem saber como iniciar esse começo –, Rachel, é como nascer um outro professor, Bobagem, você não nasceu professor, você se fez professor.
é isso, redescobrir a arte de sorrir, respeitar aqueles olhares em mim, essa é a vida que eu quis, solto uma risada escandalosa, as crianças me olham surpresas, Crianças, também podemos rir na sala de aula, cantar, conversar, brincar, até dançar, vamos aprender juntos e juntas quando precisamos fazer silêncio e quando podemos ser barulhentos.
assobios, gritos, pés batendo no chão, mãos barulhentas na fórmica verde, numa folha desenham um castelo e com cinco ou seis retas fazem um castelo, então é isso, estão mostrando como são barulhentos, preciso ir além dos meus limites e medos, Não deixa de ser uma oportunidade maravilhosa, Marko, esse sou eu me animando
abro minha caixa de ferramentas com os mais variados apetrechos, experiências que fui acumulando ao longo desses quarenta e tantos anos em sala de aula, levo o dedo indicador aos lábios
a gritaria, o espancamento do chão e da fórmica verde vai desanimando, o silêncio retornando sem gritos ou ameaças, preciso aproveitar esse armistício, Crianças! Vamos no conhecer? Eu começo, pode ser?
sinto o silêncio da curiosidade se apossando da turma, suas perguntas precisam respostas imediatas, uma pausa para a presença do desejo de saber, Silêncio, ufa! a curiosidade se refina, espera, permite dúvidas, as respostas são desconhecidas, é preciso contemplação e reflexão, explorar com mais clareza o que ainda está por se descobrir, a essência da curiosidade florescendo suavemente até o conhecimento e compreensão
O meu nome é Marko, faço uma pausa proposital, continuo com a voz mais suave, Vocês podem me chamar ‘professor Marko’, ou ‘professor’, ou ‘Marko’. Não tenho preferências, um dos meninos sentado lá atrás, na fileira da parede, levanta a mão, pergunto seu nome
Gustavo, professor.
Muito bem, Gustavo. Você tem alguma pergunta?
ele desce a mão, mas não curva os olhos, Pode ser... professor Girafales?
gritos e mais assobios, percebo que o Chaves continua circulando em suas reprises, estão eufóricos com o velho e surrado apelido que me persegue, nenhuma novidade
Gustavo, gostei muito da sua pergunta, ou do seu atrevimento, poderia ter dito, outro desafio está lançado, Não posso impedir os apelidos e não vejo problema, desde que não intimide ou aborreça alguém. Prestem atenção, se você ou vocês, abri os braços e endureci a voz, inventam um apelido para alguém e acham divertido, mas essa pessoa fica triste e aborrecida com esse apelido, vocês acham que é uma coisa boa?
Nãoooo!
Turma... os apelidos podem fortalecer a amizade, destacar carinhosamente um amigo ou amiga, deixar as pessoas mais descontraídas. Mas também podem provocar constrangimentos ou desconforto, alguns apelidos são capazes de deixar as pessoas tristes, sentirem-se desrespeitadas, criando mágoas, conflitos, destacando coisas no coleguinha ou na coleguinha que não gostam que falem ou que mostrem. Eu, particularmente, fico lisonjeado de ser comparado com um professor tão famoso e reconhecido. Mas eu não sou ele, eu sou o ‘professor Marko’ ou o ‘Marko’, professor de vocês. Acho que assim é mais legal, né?
olho em seus olhos, não estou sorrindo, estamos aprendendo
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leia também:
um professor bagunceirinho (5)
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