Elias Canetti
MALTA E HISTÓRIA
Os Holandeses
O significado dos símbolos nacionais de massa se deixa divisar com
particular clareza no contraste entre ingleses e holandeses. Ambos esses
povos são aparentados em sua origem; suas línguas são parecidas e seu
desenvolvimento religioso, quase idêntico. Os dois constituem nações
de navegadores e fundaram impérios marítimos mundiais. O destino de
um capitão holandês em busca de descobertas comerciais não se
diferenciava em nada de um inglês. As guerras que lutaram entre si
foram guerras entre rivais intimamente aparentados. E, no entanto, há
uma diferença entre eles que, embora possa parecer insignificante, é
decisiva. Tal diferença diz respeito a seus símbolos nacionais de massa.
Os ingleses conquistaram sua ilha, mas não a arrebataram ao mar. O
inglês subjuga o mar unicamente por meio de seus navios; o capitão é o
comandante do mar. O holandês teve primeiro de arrancar do mar a terra
que habita. Ela jazia tão no fundo que ele precisou protegê-la do mar
por meio de diques. O dique é o princípio e o m de sua vida nacional.
A massa dos homens equipara-se ao dique; juntos, eles se opõem ao mar. Se
os diques são danificados, o país inteiro está em perigo. Em épocas de
crise, eles são traspassados; em ilhas artificiais, os holandeses protegem
se do inimigo. Em parte alguma desenvolveu-se tanto quanto ali o
sentimento de uma parede humana a contrapor-se ao mar. Na paz,
confia-se nos diques; mas se, diante do inimigo, tem-se de destruí-los,
sua força transmite-se aos homens, que, passada a guerra, irão reerguê-los. Em sua mente, o dique se conserva até que possa fazer-se
novamente realidade. Em tempos de sério perigo, os holandeses, de um
modo notável e inconfundível, carregam dentro de si as fronteiras que os
separam do mar.
Nas vezes em que os ingleses foram atacados em sua ilha, eles
confiaram no mar: com suas tempestades, ele veio em seu auxílio contra
os inimigos. Em sua ilha estavam seguros, e a mesma segurança sentiam
todos em seus navios. O holandês sempre teve o perigo às suas costas.
Para ele, o mar nunca foi totalmente subjugado. É certo que por ele
velejou até os confins do mundo, mas, em casa, o mar podia voltar-se
contra ele; e, em casos extremos, teve ele próprio de fazer de tudo para
voltá-lo contra si, afim de deter o inimigo.
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e História: Os Holandeses
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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