terça-feira, 30 de setembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (4.1 - Nacionalismo Tribal)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

4. O Imperialismo Continental: Os Movimentos de Unificação
     4.1 - Nacionalismo Tribal
          Do mesmo modo como o imperialismo continental nasceu das ambições frustradas de países que não participaram da súbita expansão dos anos 80 do século XIX, o tribalismo surgiu como o nacionalismo daqueles povos que não haviam participado da emancipação nacional e não haviam alcançado a soberania de Estado nação. Onde as duas frustrações existiam lado a lado — como ocorria em países multinacionais como a Áustria-Hungria e a Rússia —, os movimentos de unificação étnica encontravam naturalmente o solo mais fértil. Além disso, como a Monarquia Dual abrigava as nacionalidades irredentistas eslavas e alemã, o pan-eslavismo e o pangermanismo concentraram-se desde o início em sua destruição, e a Áustria-Hungria se tornou o real centro desses movimentos. Os pan-eslavistas russos já em 1870 diziam que o melhor ponto de partida possível para um império pan-eslavo seria a desintegração da Áustria,[20] e os pangermanistas austríacos eram tão violentamente agressivos em relação ao seu próprio governo que até mesmo o Alldeutsche Verband na Alemanha se queixava frequentemente dos "exageros" dos seus correligionários austríacos.[21] O plano para a união econômica da Europa central sob a égide da Alemanha, concebido pelos alemães, bem como todos os projetos semelhantes dos pangermanistas alemães para criar um império continental, transformou-se subitamente, tão logo caiu nas mãos dos pangermanistas austríacos, numa estrutura que viria a ser o "centro da vida alemã em toda a terra, aliado a todos os outros Estados germânicos".[22]
     É claro que as tendências expansionistas do pan-eslavismo eram tão embaraçosas para o czar quanto eram para Bismarck os gratuitos protestos de lealdade ao Reich e a deslealdade à Áustria dos pangermanistas austríacos.[23] Pois, por mais que fossem ocasionalmente exaltados os sentimentos nacionais, ou por mais ridículas que se tornassem as alegações nacionalistas em tempos de crise, permaneciam dentro de certos limites, uma vez que se cingiam a um território nacional definido e eram controlados pelo orgulho num Estado nacional limitado, enquanto os movimentos de unificação logo ultrapassavam esse limites.
     Pode-se melhor avaliar a modernidade dos movimentos de unificação por sua posição inteiramente nova em relação ao antissemitismo. As minorias reprimidas, como os eslavos na Áustria e os poloneses na Rússia czarista, em virtude do antagonismo que as apartava dos seus respectivos governos, estavam predispostas a descobrir as relações ocultas entre as comunidades judaicas e os Es-tados-nações europeus, e essa descoberta podia facilmente levá-las à hostilidade. Nos países em que o antagonismo ao Estado não era identificado com falta de patriotismo, como na Polônia (então incorporada à Rússia), onde a deslealdade ao czar era sinônimo de lealdade à nação polonesa, ou como na Áustria, onde a população de língua alemã via em Bismarck sua grande figura nacional, o antissemitismo assumia formas mais violentas, porque os judeus aparentavam ser não só agentes de uma máquina estatal opressora, mas de um opressor estrangeiro. O papel fundamental do antissemitismo nos movimentos de unificação não se justifica nem pela posição das minorias, nem pelas experiências específicas que Schoenerer, o líder do pangermanismo austríaco, havia tido no início da sua carreira, quando, ainda membro do Partido Liberal, viera a saber das ligações entre a monarquia dos Habsburgos e o domínio dos Roths-child sobre a rede ferroviária da Áustria.[24] Isso não o teria levado a declarar que "nós, os pangermanistas, consideramos o antissemitismo como o esteio de nossa ideologia nacional",[25] como nenhum evento similar poderia ter induzido Rozanov, o escritor pan-eslavo russo, a pretender que "não existe problema na vida russa no qual, como uma vírgula na frase, não exista também a questão de como enfrentar o judeu".[26]
     A chave do súbito aparecimento do antissemitismo como centro de todo um conceito de vida e de mundo — em contraposição ao seu papel meramente político na França durante o Caso Dreyfus, ou como mero instrumento de propaganda no movimento alemão de Stoecker — está na natureza do tribalismo e não em fatos e circunstâncias políticas. A verdadeira importância do antissemitismo dos movimentos de unificação étnica está nisto: o ódio aos judeus foi pela primeira vez isolado de toda experiência real — política, social ou econômica —, seguindo apenas a lógica peculiar de uma ideologia.
     O nacionalismo tribal, a força motora do imperialismo continental, tinha pouco em comum com o nacionalismo do Estado-nação ocidental plenamente desenvolvido. O Estado-nação, com a sua reivindicação de representação popular e soberania nacional, tal como havia evoluído desde a Revolução Francesa até o século XIX, resultava da combinação de dois fatores que, ainda separados no século XVIII, permaneceram separados na Rússia e na Áustria-Hungria até 1919: nacionalidade e Estado. As nações adentravam a história e se emancipavam quando os povos adquiriam a consciência de serem entidades culturais e históricas e a de ser o seu território um lar permanente marcado pela história comum, fruto do trabalho dos ancestrais, e cujo futuro dependeria do desenvolvimento de uma civilização comum. Onde quer que surgissem, os Estados-nações cessavam quase que por completo os movimentos migratórios; enquanto na Europa oriental e meridional, onde fracassou a fundação de Estados-nações, isso ocorreu porque faltava ainda o apoio de classes rurais firmemente enraizadas.[27]
     Do ponto de vista sociológico, o Estado-nação era o corpo político das classes camponesas europeias emancipadas — isto é, dos proprietários rurais — e é por isso que os exércitos nacionais só puderam conservar sua posição permanente nesses Estados enquanto constituíam a verdadeira representação da classe rural, ou seja, até o fim do século XIX. "O Exército", como disse Marx, "era o ponto de honra dos fazendeiros: transformados em senhores, o Exército os corporificava, defendendo no exterior sua propriedade recém-adquirida. (...) O uniforme era a sua roupa de gala, a guerra era a sua poesia; o seu lote de terra era a pátria, e o patriotismo era a forma ideal da propriedade."[28] O nacionalismo ocidental, que culminou no recrutamento geral, foi produto de classes firmemente enraizadas e emancipadas.
     Enquanto a consciência da nacionalidade é comparativamente recente, a estrutura do Estado é fruto da secular evolução da monarquia e do despotismo esclarecido. Fosse sob forma de nova república ou de monarquia constitucional reformada, o Estado herdou como função suprema a proteção de todos os habitantes do seu território, independentemente de nacionalidade, e devia agir como instituição legal suprema. A tragédia do Estado-nação surgiu quando a crescente consciência nacional do povo interferiu com essas funções. Em nome da vontade do povo, o Estado foi forçado a reconhecer como cidadãos somente os "nacionais", a conceder completos direitos civis e políticos somente àqueles que pertenciam à comunidade nacional por direito de origem e fato de nascimento. Isso significa que o Estado foi parcialmente transformado de instrumento da lei em instrumento da nação.
     A conquista do Estado pela nação[29] foi facilitada pela queda da monarquia absoluta e pelo subsequente surgimento de classes. O monarca absoluto devia servir aos interesses da nação como um todo e ser expoente e prova visível da existência de tal interesse comum. O despotismo esclarecido baseava-se no que disse Rohan: "Os reis comandam os povos e o interesse comanda os reis".[30] Abolidos os reis, esse interesse comum corria o perigo de ser substituído por um permanente conflito entre numerosos interesses de classes e por uma luta pelo controle da máquina estatal, ou seja, por uma guerra civil permanente. O único laço comum que restava aos cidadãos do Estado-nação, sem um monarca que simbolizasse a essência do grupo, era a origem comum. Assim, num século em que cada classe e cada segmento da população eram dominados por interesses próprios, o interesse da nação como um todo era supostamente garantido pela origem comum, que encontrou sua expressão sentimental no nacionalismo. O conflito latente entre o Estado e a nação veio à luz por ocasião do próprio nascimento do Estado-nação moderno, quando a Revolução Francesa, ao declarar os Direitos do Homem, expôs a exigência da soberania nacional. De uma só vez, os mesmos direitos essenciais eram reivindicados como herança inalienável de todos os seres humanos e como herança específica de nações específicas; a mesma nação era declarada, de uma só vez, sujeita a leis que emanariam supostamente dos Direitos do Homem, e soberana, isto é, independente de qualquer lei universal, nada reconhecendo como superior a si própria.[31]  O resultado prático dessa contradição foi que, daí por diante, os direitos humanos passaram a ser protegidos e aplicados somente sob a forma de direitos nacionais, e a própria instituição do Estado, cuja tarefa suprema era a de proteger e garantir ao homem os seus direitos como homem, como cidadão — isto é, indivíduo — e como membro de grupo, perdeu a sua aparência legal e racional e podia agora ser interpretada pelos românticos como a nebulosa representação de uma "alma nacional" que, pelo próprio fato de existir, devia estar além e acima da lei. Consequentemente, a soberania nacional perdeu a sua conotação original de liberdade do povo e adquiriu uma aura pseudomística de arbitrariedade fora da lei. Em sua essência, o nacionalismo é a expressão dessa perversa transformação do Estado em instrumento da nação e da identificação do cidadão com o membro da nação. A relação entre o Estado e a sociedade foi determinada pela luta de classes, que havia suplantado a antiga ordem feudal. Permeou a sociedade um liberalismo individual que acreditava, erradamente, que o Estado governava meros indivíduos, quando na realidade governava classes, e que via no Estado uma espécie de entidade suprema, diante da qual todos os indivíduos tinham de curvar-se.
     Parecia ser o desejo da nação que o Estado a protegesse das consequências de sua atomização social e, ao mesmo tempo, garantisse a possibilidade de permanecer nesse estado de atomização. Para poder enfrentar essa tarefa, o Estado teve de reforçar todas as antigas tendências de centralização, pois só uma administração fortemente centralizada, que monopolizasse todos os instrumentos de violência e possibilidades de poder, poderia contrabalançar as forças centrífugas constantemente geradas por uma sociedade dominada por classes. A essa altura, o nacionalismo tornou-se o precioso aglutinante que iria unir um Estado centralizado a uma sociedade atomizada e, realmente, demonstrou ser a única ligação operante e ativa entre os indivíduos formadores do Estado-nação.
     O nacionalismo sempre conservou essa íntima lealdade ao governo e nunca chegou a perder a sua função de manter um precário equilíbrio entre a nação e o Estado, de um lado, e entre os cidadãos de uma sociedade atomizada, do outro. Os cidadãos nativos de um Estado-nação frequentemente olhavam com desprezo os cidadãos naturalizados, aqueles que haviam recebido seus direitos por lei e não por nascimento, do Estado e não da nação; mas nunca chegaram ao extremo de propor a distinção pangermanista entre Staatsfremde, alienígenas do Estado, e Volksfremde, alienígenas da nação, que foi mais tarde incorporada à legislação nazista. Como o Estado permaneceu instituição legal mesmo em sua forma pervertida, a lei controlava o nacionalismo; e, como este havia surgido da identificação dos cidadãos com o seu território, era delineado por fronteiras definidas.
     Muito diferente foi a primeira reação nacional de povos cuja nacionalidade não havia ainda ultrapassado o estágio de mal definida consciência étnica, cujo idioma não havia ainda saído daquela fase de dialetos por que passaram todas as línguas europeias antes de se prestarem a fins literários, cuja classe camponesa não havia assentado raízes e não estava à beira da emancipação, e para os quais, consequentemente, a qualidade nacional parecia ser muito mais um sentimento privado e portátil, inerente à própria personalidade do indivíduo, do que uma questão do interesse público e da civilização.[32] Se tentavam igualar o orgulho nacional das nações do Ocidente, constatavam não ter país nem Estado — nem sequer realizações nacionais — e podiam apenas apontar para si mesmos, ou seja, para o seu idioma — como se a língua, em si, já fosse uma realização — ou para a sua alma — eslava, germânica ou sabe Deus o quê. No entanto, num século que ingenuamente julgava que todos os povos eram virtualmente nações, só isso restava aos povos oprimidos da Áustria-Hungria e da Rússia czarista, onde não existiam condições para a realização da trindade ocidental de povo-território-Estado, onde as fronteiras mudavam constantemente durante séculos e as populações permaneciam em movimento migratório mais ou menos contínuo. Essas massas não tinham a menor ideia do significado dos conceitos pátria e patriotismo, nem a mais vaga noção de responsabilidade comunitária limitada. Era este o problema do "cinturão de populações mistas" (Macartney) que, estendendo-se do Báltico ao Adriático, de Danzig a Trieste, encontrou a sua melhor expressão da Monarquia Dual.
     O nacionalismo tribal surgiu dessa atmosfera de desarraigamento. Alastrou-se não apenas entre os povos da Áustria-Hungria, mas também, embora em nível mais alto, entre os membros da infeliz intelligentsia da Rússia czarista. O desarraigamento foi a verdadeira fonte daquela "consciência tribal ampliada", que, na verdade, significava que os indivíduos desses povos não tinham um lar definido, mas sentiam-se em casa onde quer que vivessem outros membros de sua "tribo". "Somos diferentes", dizia Schoenerer, "(...) por «ão gravitarmos em direção a Viena, mas por gravitarmos para onde quer que vivam outros alemães." [33] O que caracterizou os movimentos de unificação étnica é que nunca tentaram ao menos alcançar a emancipação nacional mas, imediatamente, em seus sonhos de expansão, transcenderam os estreitos limites da comunidade nacional e proclamaram a comunidade de um povo que permaneceria como fator político ainda que os seus membro? estivessem espalhados por toda a terra. Do mesmo modo, e em contraste com os verdadeiros movimentos de libertação nacional de povos pequenos, que sempre começavam com uma exploração do passado nacional, não se detiveram para "explorar" o passado, mas projetaram a base de sua comunidade num futuro, em cuja direção o movimento deveria marchar.
     O nacionalismo tribal, alastrando-se entre todas as nacionalidades oprimidas da Europa oriental e meridional, assumiu novo aspecto organizacional — os movimentos de unificação — entre aqueles povos que dispunham, ao mesmo tempo, de alguma forma de país natal, como a Alemanha e a Rússia, e de grandes populações dispersas no exterior, como era o caso dos alemães e eslavos em outros países.[34] Em contraste com o imperialismo de ultramar, que se contentava com a relativa superioridade da missão nacional ou da tarefa do homem branco, os movimentos de unificação étnica partiam da reivindicação absoluta de escolha divina. Já se disse muitas vezes que o nacionalismo é um substituto emocional da religião, mas só o tribalismo dos movimentos de unificação étnica ofereceu nova teoria religiosa e novo conceito de santidade. A função e a posição religiosa do czar na Igreja greco-ortodoxa não seriam suficientes para levar os pan-eslavos russos a descobrir a natureza e a essência cristãs do povo russo, o qual, segundo Dostoiévski, era o próprio "são Cristóvão das nações" que levava Deus diretamente aos problemas deste mundo.[35] Foi devido às pretensões de serem os russos o "único povo divino dos tempos modernos"[36] que os pan eslavistas abandonaram suas antigas tendências liberais e, apesar da oposição e de certa perseguição do governo, tornaram-se fiéis defensores da Rússia Sagrada.
     Os pangermanistas austríacos formulavam reivindicações semelhantes quanto à divina escolha, embora, com igual passado liberal, permanecessem anticlericais e se tornassem anticristãos. Quando Hitler, discípulo confesso de Schoenerer, disse durante a Segunda Guerra Mundial: "Deus todo-poderoso construiu nossa nação. Ao defendermos sua existência, estamos defendendo o Seu trabalho",[37] a resposta que veio do outro lado, de um seguidor do pan eslavismo, foi no mesmo tom: "Os monstros alemães não são apenas nossos inimigos, são os inimigos de Deus".[38] Essas formulações não decorriam de necessidades propagandísticas do momento; esse fanatismo é algo mais que simples abuso de linguagem religiosa: por trás dele há uma infraestrutura teológica, responsável pelo ímpeto dos primeiros movimentos de unificação étnica, e que teve considerável influência na evolução dos modernos movimentos totalitários.
     Os movimentos de unificação étnica pregavam a origem divina dos seus próprios povos, em contraposição à fé judaico-cristã na origem divina do Homem. Segundo eles, o homem, por pertencer inevitavelmente a algum povo, só através desse povo podia receber sua qualidade divina. O indivíduo, portanto, só tem valor divino enquanto pertence ao povo escolhido, cuja origem é divina. Perde-a, quando decide mudar de nacionalidade, pois com este ato destrói todos os laços através dos quais fora dotado de origem divina, e cai num estado de apatria metafísica. Era dupla a vantagem política desse conceito. Fazia da nacionalidade uma qualidade permanente que já não era afetada pela história, não importando o que acontecesse a determinado povo — emigração, conquista ou dispersão. Mas de impacto ainda mais imediato era o fato de que, no contraste absoluto entre um povo de origem divina e todos os outros povos, desapareciam todas as diferenças entre os indivíduos desse povo — econômicas, sociais ou psicológicas. A origem divina transformava o povo numa massa uniforme "escolhida" de robôs arrogantes.[39]
     A inverdade dessa teoria é tão notável quanto a sua utilidade política. Deus não criou nem os homens — cuja origem é obviamente a procriação — nem os povos — que passaram a existir como resultado da organização humana em grupos sociais. Os homens são desiguais segundo sua origem natural, sua diferente organização e seu destino na história. Sua igualdade é apenas uma igualdade de direitos, isto é, uma igualdade de objetivo humano; contudo, atrás dessa igualdade de objetivo humano, existe, segundo a tradição judaico-cristã, uma outra igualdade, expressa no conceito de uma origem comum que está além da história humana, da natureza humana e dos objetivos humanos — a origem comum do Homem místico e inidentificável, o único que foi criado por Deus. Essa origem divina é o conceito metafísico no qual pode basear-se a igualdade de objetivo político, o objetivo de estabelecer a humanidade na terra. O positivismo e o progressismo do século XIX perverteram a finalidade dessa igualdade humana quando tentaram demonstrar o que não pode ser demonstrado, isto é, que os homens são iguais por natureza e diferem apenas pela história e pelas circunstâncias, de modo que podem ser igualados, não por direitos, mas por circunstâncias e pela educação. O nacionalismo e o seu conceito de "missão nacional" perverteram, por sua vez, o conceito nacional da humanidade como família de nações, transformando-a numa estrutura hierárquica onde as diferenças de história e de organização eram tidas como diferenças entre homens, resultantes de origem natural. O racismo, que negava a origem comum do homem e repudiava o objetivo comum de estabelecer a humanidade, introduziu o conceito da origem divina de um povo em contraste com todos os outros,, encobrindo assim com uma nuvem pseudomística de eternidade e finalidade o que era resultado temporário e mutável do engenho humano.
     É essa finalidade que age como denominador comum entre a filosofia dos movimentos de unificação étnica e os conceitos raciais, e explica sua afinidade intrínseca no que tange à teoria. Politicamente, não importa que Deus ou a natureza venham a constituir a origem de um povo; num caso ou no outro, por mais elevadas que sejam suas reivindicações, os povos se transformam em espécies animais, de modo que um russo parece tão diferente de um alemão quanto um lobo difere de uma raposa. Um "povo divino" -vive num mundo no qual é o perseguidor inato de todas as outras espécies mais fracas, ou a vítima inata de todas as outras espécies mais fortes. Só as regras do mundo animal podem aplicar-se aos seus destinos políticos.
     O tribalismo dos movimentos de unificação, com seu conceito da "origem divina" de um povo, deve parte da atração que exerceu ao desprezo com que via o individualismo liberal,[40] o ideal de humanidade e a dignidade do homem. Nenhuma igualdade subsiste quando o indivíduo deve o seu valor apenas ao fato de ter nascido russo ou alemão; mas fica em seu lugar uma nova coerência, um sentido de confiança mútua entre todos os membros do povo que, realmente, é capaz de aplacar as justificadas apreensões dos homens modernos quanto ao que lhes poderia acontecer se, como indivíduos isolados numa sociedade atomi-zada, não fossem protegidos pelo próprio número e pela imposição de uma coerência uniforme. Analogamente, o "cinturão de populações mistas", mais exposto que outras partes da Europa às tormentas da história e menos enraizado na tradição ocidental, sentiu, antes de outros povos europeus, o terror do ideal de humanidade e da fé judaico-cristã na origem comum do homem. Esses povos não alimentavam quaisquer ilusões quanto ao "nobre selvagem", pois conheciam bastante a potencialidade do mal sem precisarem pesquisar os hábitos dos canibais. Quanto mais um povo aprende a respeito de outro, menos quer reconhecê-lo como seu igual, e mais se afasta do ideal de humanidade.
     A tendência para o isolamento tribal e para a ambição de raça dominante resultava em parte do sentimento instintivo de que o conceito de humanidade como ideal religioso ou humanístico implica a responsabilidade comum.[41] O encurtamento das distâncias geográficas transformava isso em realidade política de primeira grandeza.[42] E transformou em coisa do passado a discussão idealista sobre a humanidade e dignidade do homem, pelo simples fato de que todas essas ideias excelsas mas oníricas, com as suas tradições consagradas pelo tempo, perdiam repentina e assustadoramente o sentido de tempo. Nem mesmo a insistência sobre a natureza pecadora dos homens, naturalmente omitida da fraseologia dos representantes liberais da humanidade, bastava para a aceitação do fato de que a ideia de humanidade, despida de sentimentalismo, tem a gravíssima consequência de tornar os homens, de um modo ou de outro, responsáveis por todos os crimes cometidos pelos homens e eventualmente forçar todas as nações a responderem pelo mal cometido pelas outras.
     O tribalismo e o racismo são maneiras muito realistas — se bem que muito destrutivas — de fugir a essa situação de responsabilidade comum. Seu desarraigamento metafísico, que correspondia tão bem ao desarraigamento territorial das primeiras nacionalidades que vieram a seduzir, amoldava-se igualmente bem às necessidades das massas flutuantes das cidades modernas e foi, portanto, absorvido prontamente pelo totalitarismo. E até mesmo a fanática adoção do marxismo — a maior das doutrinas antinacionais — pelos bolchevistas foi depois contra-atacada pela propaganda pan-eslavista reintroduzida na União Soviética, tal o valor isolacionista dessas teorias.[43]
     É verdade que o sistema de governo na Ãustria-Hungria e na Rússia czarista, baseado na opressão de nacionalidades, servia como verdadeiro aprendizado de nacionalismo tribal. Na Rússia, essa opressão era monopolizada exclusivamente pela burocracia, que também oprimia o povo russo, de sorte que somente a intelligentsia russa veio a ser pan-eslavista. A Monarquia, pelo contrário, dominava as nacionalidades indóceis outorgando-lhes liberdade suficiente para que oprimissem outras nacionalidades, de modo que estas se transformaram na verdadeira base para a ideologia dos movimentos de unificação. O segredo da sobrevivência da casa dos Habsburgos no século XIX está no cuidadoso equilíbrio de uma máquina supranacional, proporcionado pelo mútuo antagonismo e pela exploração dos tchecos pelos alemães, dos eslovacos pelos húngaros, dos rutênios pelos poloneses, e assim por diante. Todos aceitavam com naturalidade o fato de que cada grupo poderia ser promovido a nação à custa dos outros grupos nacionais, e renunciaria com prazer à liberdade se a opressão viesse de um governo nacional próprio.
     Os dois movimentos unificadores [pan-eslavo e pangermânico] surgiram sem qualquer ajuda dos governos russo ou alemão. Isto não evitou que os seus adeptos austríacos se entregassem ao prazer da alta traição contra o governo de seu país. Foi a possibilidade de educar as massas no espírito da alta traição que deu aos movimentos austríacos de unificação étnica o considerável apoio popular que nunca tiveram na Alemanha e na Rússia propriamente ditas. Era muito mais fácil induzir o trabalhador alemão a atacar a burguesia alemã do que a atacar o governo, como era muito mais fácil na Rússia "levantar os camponeses contra os proprietários rurais do que contra o czar".[44] As diferenças entre as atitudes dos trabalhadores alemães e dos camponeses russos eram, sem dúvida, tremendas: os primeiros olhavam um monarca, embora não muito querido, como símbolo da unidade nacional, enquanto os últimos viam no governo o verdadeiro representante de Deus na terra. Essas diferenças, contudo, eram menos significativas do que o fato de que, nem na Rússia nem na Alemanha, o governo era tão fraco como na Áustria; nem sua autoridade havia caído em tal descrédito que os movimentos de unificação étnica pudessem capitalizar politicamente a agitação revolucionária. Somente na Áustria o ímpeto revolucionário encontrou essa válvula de escape natural nos movimentos de unificação. O expediente de divide et impera, não muito habilmente conduzido pelo governo, pouco contribuiu para diminuir as tendências centrífugas dos sentimentos nacionais, mas criou complexos de superioridade e levou a uma atmosfera geral de deslealdade. A hostilidade do Estado como instituição é parte das teorias de todos os movimentos de unificação étnica. Já se disse, com razão, que a oposição dos eslavófilos ao Estado é "inteiramente diferente de tudo que é encontrável na atitude do sistema do nacionalismo oficial".[45] O Estado, por sua própria natureza, era declarado estranho ao povo. Assim, a superioridade eslava, segundo se pensava, jazia na indiferença com que o povo russo via o Estado, no fato de o povo se manter como um corpus separatum do seu próprio governo. É isso o que os eslavófilos queriam dizer quando chamaram o povo russo de "povo sem Estado". Mas isso também possibilitou a esses "liberais" reconciliarem-se com o despotismo, pois o fato de o povo não "interferir com o poder estatal", isto é, com o absolutismo desse poder,[46] estava de acordo com a exigência do despotismo. Os pangermanistas, politicamente mais articulados, sempre insistiam na prioridade do interesse nacional sobre o interesse do Estado[47] e geralmente argumentavam que "a política mundial transcende a estrutura do Estado", que o único fator permanente no decorrer da história era o povo e não o Estado, e que, portanto, as necessidades nacionais, mudando com as circunstâncias, deviam sempre determinar os atos políticos do Estado.[48] Mas o que na Alemanha e na Rússia não passou de frases altissonantes até o fim da Primeira Guerra Mundial tornou-se real e efetivo na Monarquia Dual cuja decadência gerou um permanente desprezo pelo governo.
     Seria erro grave presumir que os líderes dos movimentos de unificação eram reacionários ou "contrarrevolucionários". Embora não estivessem, via de regra, muito interessados em questões sociais, nunca cometeram o equívoco de se aliar à exploração capitalista; a maioria havia pertencido, e alguns continuavam a pertencer, a partidos liberais e progressistas. De certo modo, é fato que a Liga Pangermânica "concretizou uma verdadeira tentativa de controle popular no campo da política estrangeira. Acreditava firmemente na eficiência de uma opinião pública forte, voltada para a nação (...) para ditar a política nacional pela força da exigência popular".[49]  Mas a ralé, que se agrupava nos movimentos de unificação inspirados por ideologias raciais, não era a mesma massa cujas ações revolucionárias haviam levado à criação do governo constitucional e cujos verdadeiros representantes, àquela altura, só se podiam encontrar nos movimentos trabalhistas; essa ralé, com a sua "consciência tribal ampliada" e com a sua notável falta de patriotismo, se assemelhava mais a uma "raça".
     Em contraste com o pangermanismo, o pan-eslavismo foi formado pela intelligentsia russa, à qual impregnou totalmente. Muito menos desenvolvido como organização e muito menos consistente em sua programação política, manteve por um tempo surpreendentemente longo um nível muito alto de sofisticação literária e especulação filosófica. Enquanto Rozanov analisava as misteriosas diferenças entre a força sexual de judeus e cristãos e chegava à surpreendente conclusão de que os judeus estão "unidos a essa força, enquanto os cristãos estão separados dela",[50] o líder os pangermanistas da Áustria descobria as maneiras de "atrair o interesse do homem do povo através de músicas de propaganda, cartões-postais, canecas de cerveja, bengalas e caixas de fósforos".[51] Mas finalmente as filosofias de "Schelling e Hegel foram abandonadas e a ciência natural foi convocada a fornecer a munição teórica" também aos pan eslavistas.[52]
     O pangermanismo, fundado por um só homem, Georg von Schoenerer, e apoiado principalmente pelos estudantes austro-alemães, empregou desde o início uma linguagem extraordinariamente vulgar, destinada a atrair camadas sociais mais vastas e diferentes. Consequentemente, Schoenerer foi também "o primeiro a perceber as possibilidades do anti semitismo como instrumento para forçar a direção da política externa e destruir (...) a estrutura interna do Estado".[53] Algumas das razões pelas quais o povo judeu se prestava a essa finalidade são óbvias: sua posição muito proeminente em relação à monarquia dos Habsburgos, aliada ao fato de que, num país multinacional, era mais fácil reconhecê-los como nacionalidade à parte do que nos Estados-nações, cujos cidadãos, pelo menos teoricamente, tinham origem homogênea. Isso, contudo, embora explique a violência do antissemitismo austríaco e revele a sagacidade política de Schoenerer na exploração da questão, não ajuda a compreender o papel ideológico central que o anti-semitismo desempenhou em ambos os movimentos.
     A "consciência tribal ampliada" como motor emocional dos movimentos de unificação já era madura quando o antissemitismo tornou-se questão central e centralizadora. O pan-eslavismo, com a sua tradição mais duradoura e mais respeitável de especulação filosófica, e com a sua ineficácia política mais notável, só virou antissemita nas últimas décadas do século XIX; Schoenerer, o pangermanista, já havia anunciado abertamente sua hostilidade às instituições estatais quando muitos judeus ainda eram membros do seu partido.[54] Na Alemanha, onde o movimento de Stoecker havia demonstrado a utilidade do antissemitismo como arma de propaganda política, a Liga Pangermância teve, de início, certa tendência antissemita, mas, antes de 1918, nunca chegou a excluir os seus membros judeus.[55] A ocasional antipatia dos eslavófilos pelos judeus transformou-se em antissemitismo no seio de toda a intelligentsia russa quando, após o assassínio do czar em 1881, uma onda de pogroms organizados pelo governo focalizou a atenção pública na questão judaica.
     Schoenerer, que descobriu o antissemitismo na mesma época, provavelmente percebeu suas possibilidades quase por acaso: como o que desejava acima de tudo era destruir o império dos Habsburgos, não era difícil calcular o efeito da exclusão de uma nacionalidade da estrutura estatal, que se apoiava numa multitude de nacionalidades. Toda a textura dessa constituição peculiar e o precário equilíbrio de sua burocracia podiam ser destruídos se os movimentos populares sabotassem a moderada opressão sob a qual todas as nacionalidades tinham certa igualdade. Essa finalidade poderia ter sido igualmente atingida pelo furioso ódio que os pangermanistas sentiam com relação às nacionalidades eslavas, ódio que, arraigado antes que o movimento se tornasse antissemita, era também aprovado por seus membros judeus. O que tornou o antissemitismo dos movimentos de unificação étnica tão eficaz, a ponto de ter sobrevivido ao declínio da propaganda antissemita durante a enganadora calma que precedeu a deflagração da Primeira Guerra Mundial, foi a sua fusão com o nacionalismo tribal da Europa oriental. Pois havia uma afinidade inerente entre as teorias daqueles movimentos a respeito dos povos e a existência sem raízes do povo judeu. Os judeus pareciam ser o único exemplo perfeito de um povo no sentido tribal; sua organização tornou-se modelo que os movimentos de unificação procuravam copiar; sua sobrevivência e suposta força pareciam a melhor prova da correção das teorias raciais.
     Se outras nacionalidades na Monarquia Dual tinham apenas débeis raízes no solo e pouca noção do significado de um território comum, os judeus eram o exemplo de um povo que, sem país de qualquer espécie, havia podido manter sua identidade no decorrer dos séculos e, portanto, podia ser citado como prova de que não havia necessidade de território para que se constituísse uma nacionalidade.[56] Se os movimentos de unificação étnica insistiam na importância secundária do Estado e na suprema importância do povo, organizado em vários países e não necessariamente representado por instituições visíveis, os judeus eram o modelo perfeito de uma nação sem Estado e sem essas instituições.[57] Se as nacionalidades tribais apontavam para si mesmas como o centro de seu orgulho nacional, independentemente de realizações históricas e de participação em acontecimentos registrados, se acreditavam que alguma qualidade inerente misteriosa, psicológica ou física; fazia delas a encarnação, não da Alemanha, mas do germanismo, não da Rússia, mas da alma russa, sentiam de alguma forma, mesmo que não soubessem expressá-lo, que a "judeidade" dos judeus assimilados correspondia exatamente ao mesmo tipo de encarnação individual e pessoal do judaísmo, e que o orgulho peculiar dos judeus secularizados, que não haviam desistido de sua antiga qualidade de "escolhidos", realmente significava que acreditavam ser diferentes e melhores pelo simples fato de terem nascido judeus, independentemente das realizações e tradição judaicas.
     É bem verdade que essa atitude judaica — esse tipo judaico de nacionalismo tribal, por assim dizer — fora resultado da posição anormal dos judeus nos Estados modernos, fora do âmbito da sociedade e da nação. Mas a posição daqueles grupos étnicos flutuantes, que só tomaram consciência de sua nacionalidade através do exemplo de outras nações ocidentais e, mais tarde, a posição das massas desarraigadas das grandes cidades, que o racismo mobilizou com tanta eficácia, eram semelhantes em muitos aspectos. Também se situavam fora do âmbito social e também estavam fora do corpo político do Estado-nação, que parecia ser a única organização política satisfatória para um povo. Logo reconheceram nos judeus os seus concorrentes mais felizes, mais protegidos pela sorte, pois, em sua opinião, os judeus haviam encontrado um meio de constituir uma sociedade própria que, precisamente por não ter representação visível nem escoadouro político normal, podia vir a substituir a nação.
     Mas o que arrastou os judeus para o centro dessas ideologias racistas, mais que qualquer outro fato, foi a pretensão judaica ser de um povo eleito — único obstáculo sério à igual pretensão que emanava dos movimentos de unificação étnica. Não importava que o conceito judaico nada tivesse em comum com as teorias tribais acerca da origem divina de um povo. A ralé não estava muito interessada nessas sutilezas de correção histórica, e mal percebia a diferença que havia entre uma histórica missão judaica de realizar o estabelecimento da humanidade na terra e a sua própria "missão" de dominar todos os outros povos da terra. Mas os líderes dos movimentos sabiam muito bem que os judeus haviam dividido o mundo — exatamente como eles o preconizavam — em duas partes: eles próprios e todos os outros.[58] Nessa dicotomia, os judeus surgiam mais uma vez como os concorrentes mais afortunados, que haviam herdado algo e eram reconhecidos por algo que os gentios tinham de construir a partir do nada.[59]
     Ê um "truísmo", que não se tornou mais verdadeiro com a repetição, que o anti-semitismo seja apenas uma forma de inveja. Mas, no tocante à escolha dos judeus ele é bastante verdadeiro. Sempre que um povo é apartado da ação e da realização, sempre que esses laços naturais com o mundo comum são rompidos ou não existem por um motivo ou outro, ele tende a voltar-se para dentro de si mesmo, em sua elementaridade nua e natural, e a alegar divindade e uma missão de redimir a terra. Quando isso acontece na civilização ocidental, tal povo encontra a antiga pretensão dos judeus a barrar-lhe o caminho messiânico. Foi isso que perceberam os porta-vozes dos movimentos de unificação étnica, e é por isso que se incomodaram tão pouco com a questão realista de saber se o problema judeu, em termos de números e de poder, era suficientemente importante para fazer do ódio aos judeus o esteio de suas ideologias. Do mesmo modo como o seu próprio orgulho nacional independia de qualquer realização, também o seu ódio pelos judeus independia de qualquer coisa que os judeus houvessem feito, de bom ou de mau. Nesse ponto, todos os movimentos de unificação concordavam plenamente, embora nenhum deles soubesse como utilizar esse esteio ideológico para fins de organização política.
     A defasagem entre a formulação da ideologia dos movimentos e a possibilidade de sua aplicação séria na política é demonstrada pelo fato de que os "Protocolos dos sábios do Sião" — forjados por volta de 1900 por agentes da polícia secreta russa em Paris, mediante sugestão de Pobiedonostzev, conselheiro político de Nicolau II e o único pan-eslavista a galgar uma posição influente — ficaram como um panfleto semi esquecido até 1919, quando iniciaram sua marcha verdadeiramente triunfal em todos os países e idiomas europeus;[60] trinta anos mais tarde, sua circulação só era inferior à do Mein Kampf de Hitler. Nem o falsificador nem o seu patrão sabiam que viria um tempo em que a polícia seria realmente a instituição central de uma sociedade, e toda a força do país se organizaria de acordo com os princípios, supostamente judeus, expostos nos Protocolos. Talvez tenha sido Stalin o primeiro a descobrir todo o potencial de domínio da polícia; certamente foi Hitler quem, mais sagaz que o seu pai espiritual Schoenerer, soube como usar o princípio hierárquico do racismo; como explorar a afirmação antissemita da existência de um povo que era "o pior de todos" a fim de organizar devidamente "o melhor de todos", ficando entre estes dois extremos todos os outros povos conquistados e oprimidos; como generalizar o complexo de superioridade dos movimentos de unificação de modo que cada povo, com a necessária exceção dos judeus, pudesse olhar com desprezo aquele povo que era ainda pior que ele próprio.
     Foram necessárias mais algumas décadas de caos encoberto e de franco desespero, antes que muitas pessoas confessassem alegremente que iriam realizar justamente aquilo que, segundo pensavam, somente os judeus em seu diabolismo inato tinham conseguido fazer até então. De qualquer forma, os líderes dos movimentos de unificação, embora já tivessem uma vaga noção da questão social, foram muito unilaterais em sua ênfase na política externa — e não conseguiram ver que o antissemitismo poderia constituir o necessário elo de ligação entre os métodos domésticos e externos; não sabiam ainda como estabelecer uma "comunidade popular", isto é, uma horda completamente desarraigada e racialmente doutrinada. O fato de que o fanatismo dos movimentos de unificação étnica tenha escolhido os judeus para seu centro ideológico, que foi o começo do fim das comunidades judaicas europeias, constitui uma das mais lógicas e mais amargas vinganças de toda a história. Porque há certa dose de verdade nas afirmações "esclarecidas", desde Voltaire até Renan e Taine, de que o conceito de escolha divina dos judeus, o modo como identificavam a religião com a nacionalidade, sua reivindicação de uma posição absoluta na história e uma relação especial com Deus trouxeram para a civilização ocidental, por um lado, um elemento de fanatismo até então desconhecido (e que foi herdado pelo cristianismo em sua pretensão de posse exclusiva da Verdade) e, por outro lado, um elemento de orgulho tão perigosamente próximo da perversão racial.[61]
     Politicamente, não teve a menor importância o fato de que o judaísmo e a devoção judaica, ainda intacta, houvessem sido sempre isentos da imanência direta da Divindade, e até hostis a esse conceito. Porque o nacionalismo tribal é a perversão da religião que fez com que Deus escolhesse uma nação entre as demais; e, somente porque esse velho mito e o único povo sobrevivente da Antiguidade tinham raízes profundas na civilização ocidental, o líder da moderna ralé podia, com certa plausibilidade e imprudência, trazer Deus para a luta mesquinha entre os povos e pedir o Seu consentimento para outra eleição, que ele, líder, em nome dos potencialmente elegíveis, já havia manipulado.[62] O ódio dos racistas aos judeus advinha da supersticiosa apreensão de que Deus poderia ter realmente escolhido os judeus e não a eles, de que a divina providência realmente houvesse concedido o sucesso aos judeus. Havia um certo ressentimento indeciso contra um povo que, ao que se receava, tinha recebido uma garantia racionalmente incompreensível de que surgiria finalmente, e a despeito de todas as aparências, como vencedor final na história do mundo.
     Pois, para a mentalidade da ralé, o conceito judeu de uma missão divina de realizar o reino de Deus só podia ser entendido em termos vulgares de sucesso e fracasso. O temor e o ódio eram alimentados e, até certo ponto, racionalizados pelo fato de que o cristianismo, religião de origem judaica, já havia conquistado a humanidade ocidental. Levados por suas próprias superstições ridículas, os líderes dos movimentos de unificação descobriram aquela pequena mola oculta na mecânica da devoção judaica que possibilitava uma completa reversão e perversão, de modo que a escolha já não correspondia mais ao mito da realização final do ideal de uma humanidade comum — mas da sua destruição final.

Parte II Imperialismo (4.1 - Nacionalismo Tribal)
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[20] Durante a Guerra da Criméia (1853-6), Michael Pagodin, folclorista e filólogo russo, escreveu uma carta ao czar na qual chamava os povos eslavos de únicos fortes e fiéis aliados da Rússia (Staehlin, op. cit., p. 35); pouco depois, o general Nikolai Muravyev Amursky, "um dos grandes construtores de império da Rússia", fazia votos pela "liberação dos eslavos da Turquia e da Áustria" (Hans Kohn, op. cit.); e já em 1870 surgia um panfleto militar que exigia "a destruição da Áustria como condição necessária para uma federação pan-eslava" (ver Staehlin, op. cit., p. 282). 
[21] Ver Otto Bonhard, op. cit., pp. 58 ss., e Hugo Grell, Der alldeutsche Verban, seine Geschichte, seine Bestrebungen, seine Erfolge [A Liga Pangermânica, sua história, seus sucessos], Alldeutsche Flugschriften, n? 8.
[22] Segundo o programa pangermanista austríaco de 1913, citado por Eduard Pichl, Georg Schoenerer, 1938, 6 vols., VI, 375.
[23] Enquanto Schoenerer, com a sua admiração por Bismarck, declarou em 1876 que "a Áustria como grande potência deve deixar de existir" (Pichl, op. cit., I, 90), Bismarck achava e dizia aos seus admiradores austríacos que "uma Áustria poderosa é uma necessidade vital para a Alemanha". VerF. A. Neuschafer, Georg Rittervon Schoenerer (tese), Hamburgo, 1935. A atitude do czar em relação ao pan-eslavismo era muito mais ambígua, porque o pan eslavismo tinha uma concepção de Estado que incluía forte apoio popular ao governo despótico. Contudo, mesmo em circunstâncias tão tentadoras, o czar não apoiou a exigências expansionista dos eslavófilos e dos seus sucessores. Ver Staehlin, op. cit., pp. 30 ss.
[24] Ver o capítulo 2.
[25] Pichl, op. cit.,l, 26.
[26] Vassilif Rozanov, Fallen leaves, 1929, pp. 163-4.
[27] Ver C. A. Macartney, National states and national minorities, Londres, 1935, pp. 432 ss.
[28] Karl Marx, O ISBrumário de Luís Bonaparte.
[29] Ver J. T. Delos, La nation, Montreal, 1944, importante estudo sobre o assunto.
[30] Ver o duque de Rohan, DeVintérêt desprinces et états de Ia chrétienté, 1638, dedicado ao cardeal Richelieu.
[31] Uma das mais esclarecedoras discussões do princípio da soberania é ainda Jean Bodin, Six livres de Ia republique, 1576. Para um bom relato e discussão das principais teorias de Bodin, ver George H. Sabine, A history qfpolitical theory, 1937.
[32] Interessante nesse contexto são as proposições socialista de Karl Renner e Otto Bauer, na Áustria, de separar a nacionalidade inteiramente de sua base territorial e torná-la uma espécie de status pessoal; isso, naturalmente, correspondia a uma situação em que grupos étnicos se disseminavam por todo o império sem perder suas características nacionais. Ver Otto Bauer, Die Natio-nalitàtenfrage und die osterreichische Sozialdemokratie [A questão nacional e a social-democracia austríaca], Viena, 1907, quanto ao princípio pessoal (em oposição ao territorial) da nacionalidade (pp. 332 ss, 353 ss). "O princípio pessoal deseja organizar as nações não como entidades territoriais, mas como meras associações de pessoas."
[33] Picbl, op.cit., 1,152.
[34] Somente nessas condições é que surgia um movimento de unificação étnica, completamente organizado. O panlatinismo foi a denominação errada de certas tentativas frustradas das nações latinas de entrarem em alguma aliança contra o perigo alemão, e o messianismo polonês nunca exigiu outra coisa senão o que foi no passado território dominado pela Polônia. Ver também Deckert, op. cit., que disse em 1914: "o panlatinismo tem declinado cada vez mais, e o nacionalismo e a consciência estatal têm se tornado mais fortes e conservado um potencial maior aqui do que em qualquer outra parte da Europa" (p. 7).
[35] Nicolas Berdyaev, The origin of Russian communism, 1937, p. 102. K. S. Aksakov chamava o povo russo de "único povo cristão na terra" em 1855 (ver Hans Ehrenberg e N. V. Bubnoff, Oestliches Christentum [Cristandade oriental], parte I, pp. 92 ss), e o poeta Tyutchev dizia, na mesma época, que "o povo russo é cristão não apenas pela ortodoxia de sua fé, mas também por algo mais íntimo. É cristão por aquela capacidade de renúncia e sacrifício que é o fundamento de sua natureza moral". Citado por Hans Kohn, op. cit.
[36] Segundo Chaadayev, cujas Cartas filosóficas 1829-1831 constituem a primeira tentativa sistemática de apresentar a história do mundo evoluindo ao redor do povo russo como seu centro. Ver Ehrenberg, op. cit., I, 5ss.
[37] Discurso de 30 de janeiro de 1945. New York Times, 31 de janeiro de 1945.
[38] Palavras de Lucas, arcebispo de Tambov, citadas no Jornal do Patriarcado de Moscou, n? 2,1944.
[39]  Isso já era reconhecido pelo jesuíta russo, príncipe Ivan S. Gagarin, em seu panfleto La Russie sera-t-elle catholique? (1856), no qual atacava os eslavófilos porque "querem estabelecer a mais completa uniformidade religiosa, política e nacional. Em sua política exterior, querem fundir todos os cristãos ortodoxos, de qualquer nacionalidade, e todos os eslavos de qualquer nacionalidade, num grande império eslavo e ortodoxo". (Citado por Hans Kohn, op. cit.)
[40] "Todos reconhecerão que o homem não tem outro destino neste mundo senão trabalhar pela destruição de sua personalidade e sua substituição por uma existência social e impessoal." Chaadayev, op. cit., p. 60.
[41] O seguinte trecho de Frymann, op. cit., p. 186, é característico: "Conhecemos o nosso próprio povo, suas qualidades e seus defeitos — não conhecemos a humanidade, e nos recusamos a ter alguma preocupação ou entusiasmo por ela. Onde começa e onde termina aquilo a que devemos amar porque pertence à humanidade (...)? O camponês russo do mir [comuna], decadente e semi-animalesco, o negro da África, o mestiço do Sudoeste Africano ou os insuportáveis judeus da Galícia e da Romênia são todos membros da humanidade? (...) É possível crer na solidariedade dos povos germânicos — e não importa para nós quem estiver fora dessa esfera".
[42]  Foi esse encurtamento das distâncias geográficas que Friedrich Naumann expressou em Central Europe: "Ainda está longe o dia em que haverá 'um só rebanho e um só pastor', mas já se foi o tempo em que um sem-número de pastores, maiores ou menores, dirigiam os seus rebanhos livremente pelos pastos da Europa. O espírito da indústria em larga escala e da organização supranacional tomou conta da política. As pessoas pensam, como disse certa vez Cecil Rhodes, 'em termos de continentes'". Estas poucas frases foram citadas em inúmeros artigos e panfletos da época.
[43]  Muito interessantes a esse respeito são as teorias genéticas da Rússia soviética que surgiram na década dos 50. A herança de caracteres adquiridos significa claramente que as populações que vivem sob condições desfavoráveis transferem a seus descendentes uma hereditariedade inferior, e vice-versa. "Em uma palavra, teríamos raças dominantes e dominadas inatas." Ver H. S. Muller, "The soviet master race theory", em New Leader, 30 de junho de 1949.
[44] G. Fedotov, "Rússia and Freedom", em The Review of Politics, vol. VIII, n? 1, janeiro de 1946. Trata-se de verdadeira obra-prima em matéria de trabalho histórico; dá um resumo de toda a história da Rússia.
[45] N. Berdyaev, op. cit., p. 29.
[46] K. S. Aksakov, em Ehrenberg, op. cit., p. 97.
[47] Ver, por exemplo, a queixa de Schoenerer de que o "Verfassungspartei" [partido da situação] austríaco ainda subordinava os interesses nacionais aos interesses do Estado (Pichl, op. cit., I, 151). Ver também os trechos característicos do Judas KampfundNiederlageinDeutschland, 1937, pp. 39ss do pangermanista conde E. Reventlow. O autor via no nazismo a realização do pangermanismo, dada a sua recusa de "idolatrar" o Estado, considerado apenas como uma das funções da vida do povo.
[48] Ernst Hasse, Deutsche Weltpolitik [A política mundial alemã], 1897, Alldeutsche Flug-schriften, n? 5, e Deutsche Politik, vol. I: Das deutsche Reich ais Nationalstaat [O Reich alemão como Estado nacional], 1905, p. 50. (49) Wertheimer, op. cit., p. 209.
[49] Wertheimer, op. cit., p. 209.
[50] Rozanov, op. cit., pp. 56-7.
[51] Oscar Karbach, op. cit.
[52] Louis Levine, Pan-Slavism and European politics, Nova York, 1914, descreve essa transformação dos eslavófilos antigos.
[53] Oscar Karbach, op. cit.
[54] O Programa de Linz, que ficou sendo o programa dos pangermanistas da Áustria, foi originalmente redigido sem o parágrafo sobre os judeus; havia até três judeus no comitê que o esboçou em 1882. O parágrafo sobre os judeus foi acrescentado em 1885. Ver Oscar Karbach, op. cit.
[55] Otto Bonhard, op. cit., p. 45.
[56] Como o foi pelo socialista Otto Bauer, op. cit., p. 373, que certamente não era antissemita.
[57] Muito elucidativo quanto à auto-interpretação judaica é o ensaio de A. S. Steinberg, "Die weltanschaulichen Voraussetzungen der jüdischen Geschichtsschreibung" [Os pressupostos ideológicos da escrita histórica judaica], em Dubnow Festschrífi, 1930: "Se um homem (...) se convence do conceito da vida conforme é expresso na história judaica (...) então a questão do Estado perde o seu significado, sem que importe como se venha a defini-lo".
[58] A similaridade que existe entre esses conceitos pode ser vista na seguinte coincidência, à qual se poderiam ajuntar muitos outros exemplos: Steinberg, op. cit., diz dos judeus: a sua história ocorre fora de todas as leis históricas comuns; Chaadayev chama os russos de povo-exceção. Berdyaev disse claramente (op. cit., p. 135): "O messianismo russo é semelhante ao messianismo judaico".
[59] Ver o antissemita E. Reventlow, op. cit., mas também o filósofo russo filo semita Vladimir Slovyov, O judaísmo e a questão cristã (1884): entre as duas nações religiosas, os russos e os poloneses, a história introduziu um terceiro povo religioso, os judeus. Ver Ehrenberg, op. cit., p. 314ss. Ver também Cleinow, op. cit., pp. 44ss.
[60] Ver John S. Curtiss, Theprotocols of Zion, Nova York, 1942.
[61] Ver Berdyaev, op. cit., p. 5: "A religião e a nacionalidade desenvolveram-se juntas no reino moscovita, como ocorreu na consciência do antigo povo hebreu. E, do mesmo modo como a consciência messiânica era um atributo do judaísmo, foi também um atributo da ortodoxia russa".
[62] Um fantástico exemplo de toda essa loucura é a seguinte passagem de Léon Bloy — que, felizmente, não é típica do nacionalismo francês: "A França está colocada tão acima das outras nações que todas elas, não importa quais sejam, devem sentir-se honradas se tiverem a permissão de comer as migalhas dos seus cães. Se a França for feliz, então o resto do mundo pode dar-se por satisfeito, mesmo que tenha de pagar pela felicidade da França com a escravidão e a destruição. Mas, se a França sofrer, então o próprio Deus, o terrível Deus, sofre também. (...) Isto é tão absoluto e inevitável como o segredo da predestinação". Citado por R. Nadolny, Germanisie rungoder5/avíííeru/i^?[Germanizaçao ou eslavização?], 1928, p. 55.

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