Origens do Totalitarismo
3. Raça e Burocracia
Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
3.3 - O caráter imperialista
Dos dois principais mecanismos políticos do domínio imperialista, a raça foi descoberta na
África do Sul e a burocracia na Argélia, Egito e índia; a primeira foi inicialmente a reação quase
inconsciente diante de tribos cuja humanidade atemorizava e envergonhava o homem europeu,
enquanto a segunda resultou da aplicação de princípios administrativos através dos quais os
europeus haviam tentado dominar povos estrangeiros considerados inferiores e carentes de sua
proteção especial. Em outras palavras, a raça foi a fuga para a irresponsabilidade desprovida de
qualquer aspecto humano, e a burocracia foi a consequência da tentativa de assumir uma
responsabilidade que, na verdade, nenhum homem pode assumir por outro homem e nenhum
povo por outro povo.
O exagerado senso de responsabilidade dos administradores britânicos da índia, que sucederam
os "trangressores da lei" de Burke, resultava do fato de que o Império Britânico havia sido
adquirido "num momento de descuido". Assim, aqueles que se defrontavam com o fato
consumado e com a tarefa de conservar aquilo que haviam herdado acidentalmente tinham de
encontrar uma interpretação que transformasse o acaso em ato consciente. Desde os tempos
antigos, as lendas servem para alterar fatos históricos dessa natureza: e as lendas fabricadas
pelos intelectuais britânicos tiveram um papel decisivo na formação do burocrata e do agente
secreto dos serviços ingleses.
As lendas sempre influenciaram fortemente a feitura da história. O homem, que não tem o poder
de modificar o passado, que herda as ações alheias sem consulta prévia e sente o peso da
responsabilidade resultante de uma série infinita de acasos e não de atos conscientes, exige uma
explicação e uma interpretação do passado, onde parece esconder-se a misteriosa chave do seu
destino futuro. As lendas foram o alicerce espiritual dos povos antigos, uma promessa de guia
seguro para a vastidão do amanhã. Sem jamais relatar fielmente os fatos, mas expressando
sempre o seu verdadeiro significado, oferecem uma verdade que transcende a realidade, uma
lembrança além da memória.
As explicações lendárias da história sempre serviram como tardias correções de fatos e eventos
reais, necessárias precisamente porque a própria história iria responsabilizar o homem por atos
que ele não havia cometido e por consequências que não tinha previsto. A veracidade das lendas
antigas — aquilo que lhes empresta uma fascinante atualidade muitos séculos após a destruição
das cidades, impérios e povos a que serviram — estava na forma a que eram reduzidos os fatos passados, para ajustá-los à condição humana em geral e a determinadas aspirações
políticas em particular. Somente através das narrativas francamente inventadas o homem
consentia em assumir a responsabilidade pelos acontecimentos e em considerar os eventos
passados como o seu passado. As lendas davam-lhe o domínio sobre o que não fora obra sua, e a
capacidade de lidar com o que não podia desfazer. Nesse sentido, as lendas não são apenas as
primeiras lembranças da humanidade, mas também o verdadeiro começo da história humana.
O florescimento das lendas históricas e políticas terminou de modo bastante abrupto após o
nascimento do cristianismo. A interpretação cristã da história, desde os tempos de Adão até o
Juízo Final, como uma estrada única para a redenção e a salvação ofereceu a mais poderosa e
completa explicação lendária do destino humano. Somente depois que a unidade espiritual dos
povos cristãos cedeu à pluralidade das nações, quando a estrada da salvação tornou-se um artigo
incerto da fé individual e não mais a teoria universal aplicável a todos os casos, é que surgiram
novos tipos de explicações históricas. O século XIX ofereceu-nos o curioso espetáculo do
nascimento quase simultâneo das mais diversas e contraditórias ideologias, cada uma das quais
pretendia conhecer a verdade a respeito de fatos que, de outra forma, seriam incompreensíveis.
As lendas, porém, não são ideologias; não visam a explicações universais: interessam-se por
fatos concretos. Parece-nos bastante significativo que o surgimento de estruturas nacionais não
tenha, em parte alguma, sido reforçado por lendas que legitimassem a sua fundação e que,
somente quando era óbvio o declínio da entidade nacional e quando o imperialismo parecia
substituir o nacionalismo antiquado, surgisse a lenda do imperialismo.
O autor da lenda imperialista é Rudyard Kipling, seu tema é o Império Britânico, seu resultado é
o homem imperialista (o imperialismo foi a única escola formadora de caráter na política
moderna). E, embora a lenda do Império Britânico tenha pouco a ver com as realidades do
imperialismo inglês, conseguiu levar para os serviços do Império, por força ou por ilusão, os
melhores filhos da Inglaterra. Pois as lendas atraem a elite como as ideologias atraem os homens
comuns, e como as descrições de "terríveis" forças ocultas atraem a ralé e a escória. Nenhuma
estrutura política é mais evocativa de lendas e justificações que o Império Britânico ou o povo
inglês, que passava de consciente fundador de colônias a dominador de povos estrangeiros em
todo o mundo.
A lenda da fundação, contada por Kipling, começa com a realidade fundamental do povo das
Ilhas Britânicas.[61] Cercados pelo mar, necessitam do auxílio dos três elementos — Água, Vento
e Sol — e o obtêm com a invenção do Navio. O navio tornou possível a sempre perigosa aliança
com os elementos e fez do inglês o senhor do mundo. "Conquistarás o mundo", diz Kipling,
"sem que ninguém se importe como; conservarás o mundo em teu poder sem que ninguém saiba
como; e levarás o mundo em tuas costas sem que ninguém se aperceba como. Mas nem tu nem
teus filhos ganharão coisa alguma por esse pequeno feito, a não ser os Quatro Dons — um do Mar, um do Vento, um do Sol e um do Navio
que te leva. (...) Pois conquistando o mundo e conservando o mundo, e levando o mundo às tuas
costas —na terra, no mar ou no ar —, os teus filhos terão sempre Quatro Dons. Serão
intelectualmente astutos, macios no falar e terão a mão pesada — terrivelmente pesada —; e
estarão sempre um pouco a barlavento do inimigo, para que possam salvaguardar os que cruzam
os mares para fins lícitos."
O que torna essa pequena história de "The first sailor" tão próxima das antigas lendas de
fundação é o fato de apresentar o povo britânico como o único politicamente amadurecido e
preocupado com a lei e encarregado do bem-estar do mundo, em meio aos bárbaros que não
sabem nem querem saber o que faz o mundo girar. Infelizmente, da história de Kipling não
emana a verdade inata das lendas antigas; o mundo se importava, e sabia, e viu como eles
fizeram tudo, e nenhuma lenda podia jamais convencer a ninguém que os ingleses "não haviam
ganho coisa alguma com aquele pequeno feito". Existia, contudo, uma certa realidade na própria
Inglaterra que correspondia à lenda de Kipling e que a tornara possível: a existência de virtudes
como cavalheirismo, nobreza, bravura, embora completamente deslocadas numa realidade
política dominada por Cecil Rhodes ou por lorde Curzon — símbolos de um mundo e de um
tipo de domínio.
O racismo e a hipocrisia escondida na definição do "fardo do homem branco" não impediram
que alguns dos melhores homens da Inglaterra a aceitassem seriamente, transformando-se em
trágicos e quixotescos bobos do imperialismo. Existe na Inglaterra outra tradição, menos óbvia
do que a tradição da hipocrisia, que poderíamos chamar de tradição de "matadores-de-dragões".
São os que partem entusiasmados para países distantes e exóticos, ao encontro de povos
estranhos e ingênuos, para matar os numerosos dragões que os atormentam há séculos. Há uma
boa dose de verdade na outra história de Kipling, "The tomb of his ancestors",[62] na qual a
família Chinn "serve a índia, geração após geração, como uma fileira de golfinhos a cruzar o
mar aberto". Matam o cervo que devora a plantação do pobre, a quem ensinam os mistérios de
métodos agrícolas melhores, livrando-o de algumas superstições em que crê; trucidam leões e
tigres; e sua única recompensa é um "túmulo de ancestrais" e uma lenda familiar, aceita por toda
a tribo indiana, segundo a qual "o respeitado ancestral (...) tem o seu próprio tigre — um tigre
de sela que ele monta para andar pelo mato sempre que tem vontade". Infelizmente, esses
passeios são "sinal certo de guerra ou peste ou ... ou de algo", que no caso do conto revela-se ser
sinal de vacina. De modo que Chinn, o Moço, subalterno sem importância na hierarquia do
Exército, mas de suma importância para os indianos, tem de matar a montaria do seu ancestral
para que o povo possa ser vacinado sem medo de "guerras ou peste ou algo".
Se levarmos em conta a vida moderna, os Chinn são realmente "mais afortunados que a
maioria". Têm a sorte de nascer para uma carreira que, suave e naturalmente, os leva a realizar os melhores sonhos da juventude. Quando outros
jovens têm de esquecer seus "nobres sonhos", eles se encontram na idade certa para
transformá-los em ação. E, quando se aposentam após trinta anos de serviço, seu navio cruza
com "o carregamento de tropas que parte, levando para o Oriente o filho que vai cumprir o
dever da família", de modo que o vigor da existência do velho Chinn, como matador-de-dragão
eleito pelo governo e pago pelo Exército, pode ser transmitido à próxima geração. E certo que o
governo britânico recompensa-lhes os serviços, mas não se sabe ao certo a quem terminam
servindo. É muito provável que sirvam realmente a essa tribo indiana, geração após geração, e é
sem dúvida um consolo o fato de que pelo menos a própria tribo pensa assim. Se os serviços
superiores nada sabem dos estranhos deveres e aventuras do pequeno tenente Chinn e ignoram
que ele é a reencarnação vitoriosa do seu avô, isso dá à sua dupla vida onírica uma tranquila
base de realidade. Ele simplesmente se sente à vontade nos dois mundos separados por muralhas
à prova d'água e à prova de mexericos. Nascido "no coração da floresta mirrada e feroz" e
educado entre o seu próprio povo na Inglaterra pacata, equilibrada e mal informada, está pronto
a viver permanentemente com dois povos, e é bem entrosado e versado na tradição, língua,
superstição e preconceitos de ambos. De um momento para outro, pode mudar de obediente e
subalterno soldado de Sua Majestade para a excitante e nobre figura do mundo nativo, protetor
bem-amado dos fracos e matador-de-dragões das velhas histórias.
Mas esses curiosos e quixotescos protetores dos fracos, que desempenhavam seu papel por trás
dos bastidores do domínio oficial britânico, não eram tanto o produto da ingênua imaginação de
um povo primitivo quanto de sonhos que encerravam as melhores tradições europeias e cristãs,
mesmo quando estas já se haviam deteriorado na futilidade de ideais de infância. Nenhum
soldado de Sua Majestade, nenhum oficial superior britânico podia ensinar aos nativos algo da
grandeza do mundo ocidental; só aqueles que nunca tinham podido desfazer-se de seus ideais de
infância e que, portanto, haviam se alistado nos serviços coloniais estavam à altura da tarefa. O
imperialismo era para eles somente uma oportunidade acidental de fugirem de uma sociedade na
qual, para crescer, o homem tinha de esquecer sua mocidade. Para a sociedade inglesa era um
alívio vê-los partirem para países distantes, circunstância que permitia que se tolerassem e até se
estimulassem os ideais de infância no sistema de public schools [internatos particulares]; os
serviços coloniais levavam-nos para longe da Inglaterra e evitavam que transformassem seus
ideais infantis nas ideias maduras de um homem. As terras estranhas e curiosas atraíram os
melhores jovens da Inglaterra desde o fim do século XIX, privaram sua sociedade dos
elementos mais honestos e mais perigosos, e garantiram uma certa conservação, ou talvez
petrificação, da nobreza dos jovens que preservou e infantilizou os padrões morais do Ocidente.
Lorde Cromer, secretário do vice-rei e membro financeiro do governo pré-imperialista da Índia,
pertencia ainda à categoria dos matadores-de-dragões ingleses. Guiado apenas pelo "senso de sacrifício" em relação às populações atrasadas e pelo
"senso de dever"[63] para com a glória da Grã-Bretanha que "fez surgir uma classe de funcionários
com o desejo e a capacidade de governar",[64] declinou em 1894 do posto de vice-rei e recusou
dez anos mais tarde o lugar de secretário de Estado dos Negócios Exteriores. Em lugar de tais
honrarias, que teriam satisfeito a um homem de menor calibre, tornou-se o pouco conhecido
mas todo-poderoso cônsul-geral britânico no Egito de 1883 a 1907. Lá, veio a ser o primeiro
administrador imperialista, certamente "não inferior a nenhum dos que glorificaram a raça
inglesa com os seus serviços"[65] e talvez o último a morrer com tranqüilo orgulho: Let these
sufficefor Britain 's Meed — / No nobler price was ever won, / The blessings of a people freed, /
The cons-ciousness ofduty done.[66]
Cromer foi para o Egito porque compreendia que "o inglês que se esforça em conservar sua
amada índia [tem de] ter um pé firme nas margens do Nilo".[67] O Egito, para ele, não passava de
um meio para atingir um fim, uma expansão necessária em prol da segurança da índia. Sucedeu
que quase ao mesmo tempo outro inglês assentou o pé no continente africano, embora no
extremo oposto e por motivos opostos: Cecil Rhodes foi para a África do Sul e salvou a colônia
do Cabo quando esta havia perdido toda a importância para a "amada índia" dos ingleses. As
ideias expansionistas de Rhodes eram muito mais avançadas que as do seu colega mais
respeitável do norte; para ele, a expansão não precisava ser justificada por motivos sensatos
como a necessidade de preservar o que já se possuía. "A expansão é tudo", dizia, e nesse sentido
a índia, a África do Sul e o Egito eram igualmente importantes ou desimportantes como degraus
numa expansão a que só o tamanho da terra impunha limites. Havia por certo um abismo entre
Rhodes, o vulgar megalômano, e Cromer, o culto homem do dever e do sacrifício; contudo,
alcançaram resultados mais ou menos idênticos e foram igualmente responsáveis pelo "Grande
Jogo" do segredo, que não foi menos insano nem menos nocivo para a política do que o mundo
fantasma das raças.
A principal semelhança entre o governo de Rhodes na África do Sul e o domino de Cromer no
Egito era esta: ambos olhavam os seus países não como fins, mas simplesmente como meios
para uma finalidade supostamente mais elevada. Igualavam-se, portanto, em sua indiferença e
alheamento, em sua genuína falta de interesse pelos súditos, atitude tão distinta da crueldade e
arbitrariedade dos déspotas nativos da Ásia como da incúria exploradora dos conquistadores ou
da anárquica e louca opressão de uma tribo por outra. Assim que Cromer começou a governar o Egito por amor à índia, perdeu o seu papel de protetor de
"povos atrasados" e já não podia crer sinceramente que "a defesa do interesse pelas raças
subjugadas é o principal fundamento de toda a estrutura imperial".[68]
O alheamento passou a ser a atitude de todos os membros da administração britânica, numa
forma de governo mais perigosa que o despotismo e a arbitrariedade, porque nem ao menos
tolerava aquele último elo de ligação entre o déspota e seus súditos, que eram o suborno e os
presentes. A própria integridade da administração britânica tornou seu governo mais desumano
e mais inacessível aos seus súditos que o de qualquer dominador ou conquistador.[69] A
integridade e o alheamento simbolizavam uma absoluta separação de interesses, a ponto de nem
poderem entrar em conflito. Comparada a eles, a exploração, a corrupção ou a opressão parece
salvaguardar a dignidade humana, porque o explorador e o explorado, o opressor e o oprimido,
o corruptor e o corrupto ainda vivem no mesmo mundo, ainda têm objetivos comuns, ainda se
batem pela posse das mesmas coisas; e era isso que o alheamento destruía. E o pior era que o
administrador alheado mal percebia ter inventado uma nova forma de governo: acreditava
realmente que a sua atitude era condicionada pelo "contato forçado com pessoas que viviam
num plano inferior". Assim, em vez de crer na sua superioridade individual, com algum rastro
de vaidade inofensiva, sentia-se como membro de "uma nação que havia atingido um nível
relativamente alto de civilização"[70] e, portanto, podia manter a sua posição por direito de
nascimento, independentemente de realizações pessoais.
A carreira de lorde Cromer é fascinante porque personifica o ponto de transição entre os antigos
serviços coloniais e os serviços imperialistas. Sua primeira reação às funções que
desempenharia no Egito foi certa inquietude e preocupação com um estado de coisas que, sem
ser "anexação", era "uma forma híbrida de governo à qual não se pode dar nome e para a qual
não há precedente".[71] Em 1885, depois de dois anos de serviço, ainda alimentava sérias dúvidas
a respeito de um sistema no qual ele era, normalmente, o cônsul-geral inglês e, na prática, o
governante do Egito, e escreveu que um "mecanismo altamente delicado, [cujo] funcionamento
eficaz depende muito do julgamento e da habilidade de alguns indivíduos (...), pode (...) ser
justificado [somente] se pudermos ter sempre em vista a possibilidade de evacuação. (...) Se
essa possibilidade se tornar tão remota a ponto de ser quase inexistente (...) ser-nos-á preferível
(...) acertar (...) com as outras potências que assumiremos o governo do país, garantindo sua
dívida etc.".[72] Não há dúvida de que Cromer tinha razão, e que tanto a ocupação como a
evacuação teriam normalizado aquele estado de coisas. Mas aquela "forma híbrida de governo" sem precedentes iria marcar todo o empreendimento
imperialista de tal modo que, algumas décadas depois, ninguém se lembrava da sensata opinião de
Cromer quanto a formas possíveis e impossíveis de governo, da mesma maneira como foi esquecido o
que lorde Selbourne percebera havia muito tempo quando disse que uma sociedade racista como modo
de vida era um fenômeno sem precedentes. Nada caracteriza melhor o estágio inicial do imperialismo do
que a combinação dessas duas opiniões sobre as condições existentes na África: um modo de vida sem
precedentes no sul e um governo sem precedentes no norte.
Nos anos que se seguiram, Cromer reconciliou-se com a "forma híbrida de governo"; começou a justificá-la em suas cartas e expôs a necessidade de um governo sem denominação e sem precedentes. No fim da
vida, traçou (em seu ensaio sobre "O governo de raças dominadas") as linhas mestras do que se pode
chamar a filosofia do burocrata.
De início Cromer reconhecia que a "influência pessoal" sem qualquer tratado político escrito podia bastar
para uma "supervisão suficientemente eficaz dos negócios públicos"[73] nos países estrangeiros. Esse tipo
de influência informal era preferível a uma política bem definida, porque podia ser alterada de um
momento para outro e não envolvia necessariamente o governo inglês em caso de dificuldade. Exigia um
corpo de assistentes altamente treinados e dignos de confiança, cuja lealdade e patriotismo não estivessem
ligados à ambição e à vaidade pessoal, e que teriam de renunciar até mesmo à aspiração tão humana de
verem o nome que portavam associado às suas façanhas. Sua maior paixão teria de ser o sigilo ("quanto
menos se falar dos funcionários britânicos, melhor") [74]e uma função por trás dos bastidores; seu maior
desprezo seria pela publicidade e por aqueles que a apreciavam.
O próprio Cromer caracterizava-se em alto grau por todas estas qualidades; nunca ficou mais furioso do
que quando o "tiraram do esconderijo", quando "a realidade que antes só uns poucos conheciam [tornou
se] patente aos olhos de todos".[75] Seu orgulho era realmente "permanecer mais ou menos oculto [e] puxar
os cordões".[76] Em contrapartida, e para que possa executar o seu trabalho, o burocrata tem de se sentir a
salvo de controles — tanto de louvor como de reprovação — de todas as instituições públicas, seja o
Parlamento, os "Departamentos Ingleses" ou a imprensa. Cada avanço da democracia, ou mesmo o
simples funcionamento das instituições democráticas existentes, só pode tornar-se uma ameaça, pois é
impossível governar "um povo por intermédio de outro povo — o povo da índia através do povo da
Inglaterra".[77] A burocracia é sempre um governo de peritos, de uma "minoria experiente", basicamente formado por uma maioria inexperiente e, portanto, não se lhe pode confiar um assunto tão
altamente especializado como política e negócios públicos. Além disso, os burocratas não devem
absolutamente ter ideias gerais a respeito de assuntos políticos; seu patriotismo não deve desorientá-los a
ponto de acreditarem na virtude intrínseca dos princípios políticos do seu próprio país; isto apenas
resultaria numa vulgar aplicação "imitativa" desses princípios "ao governo das populações atrasadas", o
que, na opinião de Cromer, era o principal defeito do sistema francês.[78]
Ninguém jamais dirá que Cecil Rhodes sofria de falta de vaidade. Segundo Jameson, ele esperava ser
lembrado durante pelo menos 4 mil anos. No entanto, a despeito de todo o seu apetite de autoglorificação,
teve a mesma idéia de governo sigiloso que o supermodesto lorde Cromer. Extremamente dado a redigir
testamentos, Rhodes insistiu em todos eles (no decorrer de duas décadas de vida pública) em que o seu
dinheiro deveria ser usado para fundar "uma sociedade secreta (...) que realizasse os seus planos",
sociedade que devia ser organizada "como a de Loyola, com o apoio da riqueza acumulada daqueles cuja
aspiração é o desejo de fazer algo", de sorte que, eventualmente, existiriam "de 2 a 3 mil homens na flor
da vida espalhados pelo mundo, cada um dos quais levaria gravado na alma, desde os anos mais tenros, o
sonho do fundador e, além disso, teriam sido especialmente — matematicamente — escolhidos para a
finalidade prevista pelo Fundador".[79] Possuidor de visão mais larga que a de Cromer, Rhodes abriu desde
logo a sociedade a todos os membros da "raça nórdica",[80] de sorte que o seu objetivo não era tanto a
expansão ou a glória da Grã-Bretanha — e a ocupação por ela de "todo o continente africano, da Terra
Santa, do vale do Eufrates, das ilhas de Chipre e Creta, de toda a América do Sul, das ilhas do Pacífico,
(...) de todo o arquipélago malaio, dos litorais da China e do Japão [e] a recuperação final dos Estados
Unidos"[81] — quanto a expansão da "raça nórdica", a qual, unida em sociedade secreta, fundaria um
governo burocrático para dominar todos os povos da terra.
O que venceu a monstruosa vaidade inata de Rhodes e o fez descobrir os atrativos do sigilo foi o mesmo
que venceu o senso do dever inato de Cromer: a descoberta de uma expansão que não era motivada pelo
apetite específico por um país específico, mas sim concebida como processo infindável no qual cada país serviria de degrau para expansões futuras. Diante de tal conceito, o desejo de glória já não
era saciado pelo glorioso triunfo sobre determinado povo, nem o senso do dever era apaziguado
pela consciência de determinados serviços ou pelo cumprimento de determinadas tarefas. Não
importam as qualidades ou defeitos individuais que um homem possa ter: uma vez mergulhado
no turbilhão de um processo expansionista sem limites, cessa, por assim dizer, de ser o que era e
obedece às leis do processo, identifica-se com as forças anônimas a que deve servir para manter
o processo em andamento; concebe a si próprio como mera função e chega a ver nessa função,
nessa encarnação da tendência dinâmica, a sua mais alta realização. A essa altura, como o
próprio Rhodes foi suficientemente louco para dizer, não pode realmente "fazer nada errado", e
assim tudo o que fizer "passa a ser certo. Era seu dever fazer o que quisesse. Sentia-se como um
deus — nem mais nem menos".[82] Mas lorde Cromer apontou, com sensatez, o mesmo fenômeno
— homens que baixavam voluntariamente à condição de meros instrumentos ou meras funções
— quando chamou os burocratas de "instrumentos de incomparável valor na execução da
política do imperialismo".[83]
É óbvio que esses agentes secretos ou anônimos da força expansionista não tinham o menor
senso de obediência às leis humanas. A única "lei" que seguiam era a "lei" da expansão, e a
única prova de sua "legalidade" era o sucesso. Tinham de estar perfeitamente dispostos a
desaparecer no completo esquecimento em caso de fracasso, sumir, se por algum motivo
deixassem de ser "instrumentos de incomparável valor". Enquanto alcançavam o sucesso, a
sensação de forças incorporadoras, maiores do que eles próprios, tornava relativamente fácil
dispensar e mesmo desprezar o aplauso e a glorificação. Eram monstros de presunção no
sucesso e monstros de modéstia no fracasso.
Essa superstição de uma possível identificação mágica do homem com as forças da história está
na base da burocracia como forma de governo e da definitiva substituição da lei por decretos
provisórios e mutáveis. Para tal estrutura política, o ideal será sempre o homem que puxa os
cordões da história por trás da cortina. Cromer finalmente chegou a evitar todo "instrumento
escrito ou qualquer coisa tangível"[84] em suas relações com o Egito — até mesmo uma
proclamação de anexação — para ter a liberdade de obedecer somente à lei da expansão, sem se
sujeitar a tratados redigidos por homens. Do mesmo modo, o burocrata evita toda lei geral e
trata cada caso separadamente, por meio de decreto, porque a estabilidade da lei gera a ameaça
de formar uma comunidade na qual ninguém pode vir a ser um deus, porque todos têm de
obedecê-la.
As duas figuras centrais desse sistema, cuja própria essência é o processo sem fim, são, de um
lado, o burocrata e, do outro, o agente secreto. Enquanto serviam apenas o imperialismo
britânico, nem um nem outro chegaram a negar que descendessem de matadores-de-dragões e protetores dos fracos e, portanto, nunca levaram
os regimes burocráticos aos seus naturais extremos. Quase vinte anos depois da morte de
Cromer, um burocrata inglês sabia que os "massacres administrativos" podiam forçar a índia a
permanecer parte do Império Britânico, mas sabia também como era utópico tentar obter o
apoio da administração em Londres para esse tipo de planos, embora fossem bastante realistas.[85] Lorde Curzon, o vice-rei da índia, não mostrou nada da nobreza de Cromer e era produto bem
típico de uma sociedade cada vez mais tendente a aceitar os padrões raciais da ralé, se estes lhe
fossem oferecidos sob a forma de esnobismo elegante.[86] Mas o esnobismo é incompatível com o
fanatismo e, portanto, nunca é realmente eficaz.
O mesmo se aplica aos membros do Serviço Secreto Britânico. Sua origem também é ilustre —
o que o matador-de-dragões era para o burocrata, o aventureiro é para o agente secreto —, e
também eles tinham o direito de reclamar sua lenda fundamental, a lenda do Grande Jogo como
é narrada em Kim por Rudyard Kipling.
Todo aventureiro sabe, naturalmente, o que Kipling queria dizer quando louvava Kim porque
"ele amava o jogo pelo próprio jogo". Toda pessoa ainda capaz de admirar-se ante "este grande
e maravilhoso mundo" sabe que não é nenhum argumento contra o jogo o fato de que
"missionários e secretários de beneficências não podiam compreender a sua beleza". E aqueles
que julgam "um pecado beijar a boca de uma branca e uma virtude beijar o sapato de um
negro"[87] têm ainda menos razão de falar. Uma vez que a própria vida, afinal, tem de ser vivida e
amada pelo que é, a aventura e o amor ao jogo pelo próprio jogo facilmente parecem simbolizar
a vida de um modo intensamente humano. É esse apaixonado senso de humanidade em Kim que
faz dele o único romance da era imperialista no qual uma genuína fraternidade une as "estirpes
superiores e inferiores", e Kim, um "sahib e filho de um sahib", pode legitimamente dizer "nós"
quando fala de "escravos encadeados", "todos puxados por uma corda só". Esse "nós" —
expressão estranha na boca de um adepto do imperialismo — tem mais conteúdo que o completo anonimato dos que se orgulham de "não ter um nome, mas
apenas um número e uma letra", mais que o orgulho comum de ter "um preço sobre a cabeça". O que os
torna camaradas — no perigo, no medo, na constante surpresa, na completa ausência de tradição e na
constante disposição de trocar de identidade — é a experiência comum de serem símbolos da própria
vida, símbolos do que acontecia por toda a índia, onde participavam de toda aquela vida no momento
mesmo em que ela ocorria "passando como um comboio que atravessa o Hind de ponta a ponta";
portanto, não se sentiam "sozinhos, pessoas isoladas no meio de tudo aquilo", enclausurados na limitação
de sua própria individualidade e nacionalidade. Jogando o Grande Jogo, o homem pode sentir que vive a
única vida que vale a pena, porque se despe de tudo o que ainda pode ser considerado acessório. A
própria vida parece ficar para trás, numa pureza fantasticamente intensa, quando ele se liberta de todos os
laços sociais comuns — família, ocupação regular, objetivo definido, ambições e o lugar numa
comunidade à qual pertence por nascimento. "Só quando todos estão mortos é que o Grande Jogo acaba.
Não antes." Só quando se morre é que a vida acaba e não antes, não quando se vem a conseguir tudo o
que se desejou. O que faz o jogo tão perigosamente semelhante à própria vida é o fato de não ter um
objetivo final.
A ausência de objetivos é exatamente o encanto da existência de Kim. Não foi pela Inglaterra que ele
aceitou os seus estranhos encargos, nem pela índia, nem por qualquer outra causa digna ou indigna.
Noções imperialistas como a expansão por amor à expansão, ou o poder por amor ao poder, poderiam tê-lo contentado, mas eram fórmulas que não o atraíam muito, e ele certamente não as teria inventado.
Adotou o seu peculiar modo de vida de "não perguntar a razão, mas apenas agir ou morrer", sem ao
menos ter feito a primeira pergunta. Foi tentado apenas pela interminabilidade do jogo e pelo segredo em
si. E o segredo também parece simbolizar o mistério básico da vida.
De certa forma, não foi culpa dos aventureiros natos, daqueles que por sua própria natureza viviam fora
da sociedade e de todas as estruturas políticas, terem encontrado no imperialismo um jogo político que era
interminável por definição; como iriam saber que, na política, jogos intermináveis só podem terminar em
catástrofe, e que o segredo político raramente termina em algo melhor que a vulgar duplicidade do
espião? O logro desses jogadores do Grande Jogo é que os seus patrões sabiam o que eles buscavam, e
usavam o seu amor pelo anonimato para fins de mera espionagem. No entanto, esse triunfo dos
investidores famintos de lucro foi temporário: foram logrados, a seu turno, quando, algumas décadas
depois, enfrentaram os que jogavam o jogo do totalitarismo, um jogo sem motivos ulteriores como o lucro
e, portanto, jogado com eficiência tão mortal que devorou até mesmo aqueles que o financiaram.
Antes, porém, que isso acontecesse, os imperialistas haviam destruído o melhor homem que, em todos os
tempos, passou de aventureiro (com uma forte dose de matador-de-dragões) a agente secreto: Lawrence
da Arábia. Nunca mais a experiência da política secreta foi levada a cabo de maneira mais pura por um homem mais decente. Lawrence fez, sem medo, a experiência em si próprio, para depois retornar
e acreditar que pertencia à "geração perdida". Julgou que isso aconteceu porque "os velhos se ergueram
de novo e nos roubaram a vitória" para "refazer [o mundo] à semelhança do mundo antigo que
conheciam".[88] Na realidade, os velhos foram bem ineficazes até nisso, e entregaram sua vitória,
juntamente com o poder, a outros homens da mesma "geração perdida", nem mais velhos que Lawrence
nem muito diferentes dele. A única diferença era que Lawrence ainda se apegava firmemente a uma
moralidade que, no entanto, já havia perdido toda a sua base objetiva e não passava de cavalheirismo
quixotesco.
Lawrence foi levado a tornar-se agente secreto na Arábia pelo forte desejo de abandonar o mundo da
respeitabilidade insípida, cuja continuidade tornara-se simplesmente sem sentido, e por seu desgosto com
o mundo e consigo mesmo. O que mais o atraiu na civilização árabe foi o seu "evangelho da pobreza (...)
[que] também parece incluir uma espécie de pobreza moral", que "se limpou completamente de seus
deuses domésticos".[89] Depois que voltou para a civilização inglesa, o que ele mais evitou foi viver uma
vida própria, de sorte que terminou alistando-se, de maneira aparentemente incompreensível, como
soldado raso do Exército britânico, obviamente a única instituição onde a honra de um homem podia
identificar-se com a perda de sua personalidade individual.
Quando a deflagração da Primeira Guerra Mundial levou T. E. Lawrence ao Oriente Próximo, com o
encargo de fazer com que os árabes se rebelassem contra os dominadores turcos e lutassem ao lado dos
ingleses, ele se viu engolfado pelo Grande Jogo. Só podia atingir o seu objetivo se um movimento
nacional irrompesse entre as tribos árabes, um movimento nacional destinado a servir ao imperialismo
inglês. Lawrence tinha de fingir que aquele movimento nacional árabe era o seu principal interesse, e o
fez tão bem que terminou acreditando nele. Mas novamente se sentia deslocado: não podia, afinal de
contas, "pensar como eles" e "assumir o seu caráter".[90] Fingindo ser árabe, podia apenas perder sua
"natureza inglesa"[91] e o que o fascinou foi o completo segredo da anulação de si mesmo, não se deixando
enganar pela óbvia justificativa de um governo benevolente sobre um povo atrasado, que lorde Cromer
teria preferido. Apenas uma geração mais velho e mais triste do que Cromer, Lawrence encontrou
profunda satisfação num papel que exigia um recondicionamento de toda a sua personalidade até que se
adaptasse ao Grande Jogo, até que se tornasse a encarnação da força do movimento nacional árabe, até
que perdesse toda vaidade natural em sua misteriosa aliança com forças necessariamente superiores a ele
próprio, por maior que ele fosse, até que adquirisse um mortal "desprezo não pelos outros homens, mas por tudo o que eles fazem" por iniciativa própria e não
em concerto com as forças da história.
Quando, ao fim da guerra, Lawrence teve de abandonar a falsa aparência do agente secreto e recuperar de
algum modo a sua "natureza inglesa"[92] viu com outros olhos "o Ocidente e as suas convenções:
destruíram tudo para mim".[93] Do Grande Jogo de incalculável grandeza, que nenhuma publicidade havia
glorificado ou limitado, e que o havia erigido, em sua mocidade, acima de reis e de primeiros-ministros,
porque ele "os fizera ou se divertira com eles",[94] Lawrence voltou para casa com um desejo obsessivo de
anonimato e com a profunda convicção de que jamais o satisfaria o que ainda pudesse fazer em sua vida.
Essa conclusão advinha de sua perfeita consciência de que a grandeza não tinha sido sua, mas apenas do
papel que havia eficientemente assumido, que a sua grandeza havia sido o resultado do Jogo e não
produto de si próprio. Agora "já não queria ser grande" e, decidido a não "ser respeitável de novo", curou
se de vez de "qualquer desejo de fazer algo por si mesmo".[95] Havia sido o fantasma de uma força, e
tornou-se um fantasma entre os vivos quando lhe tiraram a força e a função. O que ele buscava
desesperadamente era outro papel a desempenhar — e isso, por sinal, era a essência do "jogo" a respeito
do qual George Bernard Shaw indagou, com tanta bondade mas com tanta incompreensão, como se a sua
indagação viesse de outro século, sem compreender por que um homem de tão grandes realizações não se
mantinha à altura delas.[96] Somente outro papel, outra função, seria capaz de evitar que ele próprio e todo
o mundo o identificasse com o que havia feito na Arábia, que substituísse sua antiga natureza por uma
nova personalidade. Não queria tornar-se "Lawrence da Arábia", uma vez que, basicamente, não queria
retomar uma nova natureza após haver perdido a anterior. Sua grandeza reside no fato de ter sido
suficientemente arrebatado para recusar concessões baratas e saídas fáceis para a realidade e a
respeitabilidade, e de nunca haver perdido a consciência de que havia sido apenas uma função,
representado um papel, e que, portanto, "não devia beneficiar-se de forma alguma pelo que havia feito na
Arábia. Recusou as honrarias que havia ganho. Rejeitou os empregos oferecidos em virtude de sua reputação e recusou-se a explorar seus sucessos escrevendo uma única contribuição jornalística remunerada
sob o nome de Lawrence".[97]
A história de T. E. Lawrence, em toda a sua comovente amargura e grandeza, não foi apenas a história de
um funcionário pago ou espião assalariado, mas precisamente a história de um autêntico agente ou
funcionário, de alguém que realmente acreditava haver penetrado — ou ter sido atirado — na correnteza
da necessidade histórica e que se tornou funcionário ou agente das forças secretas que governam o
mundo. "Eu havia empurrado o meu barco ao sabor da corrente eterna, de modo que ele ia mais rápido
que os que tentavam cortá-la ou ir contra ela. No fim, eu já não acreditava no movimento árabe, mas
achava-o necessário em seu tempo e lugar."[98] Do mesmo modo como Cromer havia governado o Egito
por causa da índia e Rhodes a África do Sul pela necessidade de expansão, Lawrence havia agido para
algum fim ulterior e imprevisível. A única satisfação que podia derivar disso, na falta da consciência
tranquila por alguma realização limitada, advinha do próprio senso de haver funcionado, de ter sido
abraçado e dirigido por algum movimento grandioso. De regresso a Londres, desesperado, procurava
encontrar algum substituto para esse tipo de "satisfação própria", e "só o achava na velocidade de uma
motocicleta".[99] Embora Lawrence não houvesse ainda sucumbido ao fanatismo de uma ideologia de
movimento, provavelmente por ser demasiado educado para as superstições do seu tempo, já havia
experimentado aquele fascínio, baseado no desespero de toda responsabilidade humana possível, exercido
pela corrente eterna e por seu eterno movimento. Afogou-se nessa corrente, e dele nada restou senão certa
decência inexplicável e o orgulho de se haver "esforçado na direção certa". "Ainda não sei quanto valor
tem o indivíduo: muito, acho eu, se se esforçar na direção certa."[100] Eis, portanto, o fim do verdadeiro
orgulho do homem ocidental que já não tem valor como um fim em si próprio, que já não faz "nada de si
próprio nem tem a decência de ser ele mesmo"[101] dotando o mundo de leis, e que só tem chance se "se
esforçar na direção certa", em uníssono com as forças secretas da História e da necessidade — das quais é
mera função.
Quando a ralé europeia descobriu a "linda virtude" que a pele branca podia ser na África,[102] quando o conquistador inglês da índia se tornou um administrador que já não acreditava na validez universal da lei
mas em sua própria capacidade inata de governar e dominar, quando os matadores-de-dragões se
transformaram em "homens brancos" de "raças superiores" ou em burocratas e espiões, jogando o Grande
Jogo de infindáveis motivos ulteriores num movimento sem fim; quando os Serviços de Informações
Britânicos (especialmente depois da Primeira Guerra Mundial) começaram a atrair os melhores filhos da
Inglaterra, que preferiam servir a forças misteriosas no mundo inteiro a servir o bem comum de
seu país, o cenário parecia estar pronto para todos os horrores possíveis. Sob o nariz de todos
estavam muitos dos elementos que, reunidos, podiam criar um governo totalitário à base do
racismo. Burocratas indianos propunham "massacres administrativos", enquanto funcionários
africanos declaravam que "nenhuma consideração ética, tal como os Direitos do Homem,
poderá se opor" ao domínio do homem branco.
Afortunadamente, embora o governo imperialista britânico descesse a certo nível de
vulgaridade, a crueldade teve um papel secundário entre uma Grande Guerra e outra, e sempre
se preservou um mínimo de direitos humanos. Foi essa moderação em meio à pura loucura que
preparou o caminho para o que Churchill chamou de "liquidação do Império de Sua Majestade"
e que pode vir a transformar a nação inglesa numa Comunidade de povos ingleses.
continua página 237...
________________
Parte II Imperialismo (3.3 - O caráter imperialista)
____________________[61] Rudyard Kipling, "The first sailor", em Humorous tales, 1891.
[62] Em The day'swork, 1898.
[63] LawrenceJ. Zetland, Lord Crommer, 1932, p. 16.
[64] Lorde Cromer, "The government of subject races", em Edinburgh Review, janeiro de 1908.
[65] Lorde Curzon, na inauguração da placa em memória de Cromer. Ver Zetland, op. cit., p. 362.
[66] "Que a Inglaterra se contente com este prêmio, —/ jamais outro mais nobre foi conseguido / as bênçãos de um povo
libertado, / a consciência do dever cumprido." Citado de um longo poema de Cromer. Ver Zetland, op. cit., pp. 17-8.
[67] De uma carta escrita por lorde Cromer em 1882. Ibid., p. 87.
[68] Lorde Cromer, op. cit.
[69] O suborno "era talvez a instituição mais humana na trama de arame farpado da ordem russa". Olgin,
ThesouloftheRussianrevolution,tio\aYorí, 1917.
[70] Zetland, op. cit., p. 89.
[71] De uma carta de lorde Cromer de 1884. Ibid., p. 117.
[72] Numa carta a lorde Granville, membro do Partido Liberal, em 1885. Ibid., p. 219.
[73] De uma carta a lorde Rosebery em 1886. Ibid., p. 134.
[74] Ibid., p. 352.
[75] De uma carta a Lord Rosebery em 1893. Ibid., pp. 204-5.
[76] Ibid., p. 192.
[77] De um discurso de Cromer no Parlamento após 1904. Ibid., p. 311
[78] No decorrer das negociações e considerações das normas administrativas para a anexação do Sudão, Cromer
insistiu em que o assunto fosse mantido fora da esfera de influência francesa: fez isso porque sentia "a mais completa
falta de confiança no sistema administrativo [francês] aplicado às raças dominadas" (de uma carta a Salisbury em
1899. Ibid., p. 248).
[79] Rhodes escreveu seis testamentos (o primeiro foi redigido em 1877), todos os quais mencionam a "sociedade
secreta". Para maiores detalhes, ver Basil Williams, Cecil Rhodes, Londres, 1921, e Millin, op. cit., pp. 128 e 331. As
citações são feitas por W. T. Stead.
[80] A "sociedade secreta" de Rhodes terminou sendo a mui respeitável Rhodes Scholarship Association, à qual
ainda hoje são admitidos só os ingleses e membros das demais "raças nórdicas", como alemães, escandinavos e norte
americanos.
[81] Basil Williams, op. cit., p. 51.
[82] Mfflin.op. cit., p. 92.
[83] Cromer, op. cit.
[84] De uma carta de lorde Cromer a lorde Rosebery em 1886. Zetland, op. cit., p. 134.
[85] "O sistema indiano de governo por meio de relatórios era (...) suspeito [na Inglaterra]. Na Índia, não havia
julgamento por júri, e todos os juízes eram servidores pagos da Coroa, muitos dos quais podiam ser removidos à
vontade. (...) Certos legisladores formais não viam com muito bons olhos o sucesso da experiência indiana. 'Se',
diziam eles, 'o despotismo e a burocracia funcionam tão bem na índia, não virá isso a ser usado como argumento para
a introdução do mesmo sistema aqui?'" De qualquer modo, o governo da índia "sabia muito bem que teria de
justificar a sua política perante a opinião pública da Inglaterra, e também sabia que a opinião pública jamais toleraria
a opressão" (A. Carthill, op. cit., pp. 70 e 41-2).
[86] Harold Nicolson, em seu Curzon: the last phase, 1919-1925, Boston-Nova York, 1934, conta a seguinte
história: "Por trás das linhas de combate em Flandres havia uma grande cervejaria, em cujos toneis os soldados se
banhavam ao regressar das trincheiras. Levaram Curzon para assistir a essa dantesca exibição. Ele olhou, interessado,
aquela centena de corpos nus saracoteando nas nuvens de vapor .'Ora esta!', exclamou, 'não tinha a menor ideia que a
gente das classes inferiores tivesse pele tão branca.' Curzon negava a autenticidade dessa história, mas, não obstante,
gostava dela" (pp. 47-8).
[87] Carthill, op. cit., p. 88.
[88] T. E. Lawrence, Seven pillars ofwisdom, introdução (primeira edição, 1926) que foi omitida por conselho de George Bernard
Shaw da edição posterior. Ver T. E. Lawrence, Letters, editado por David Garnett, Nova York, 1939, pp. 262 ss.
[89] De uma carta escrita em 1918, Letters, p. 224.
[90] T. E. Lawrence, Seven pillars ofwisdom, Garden City, 1938, cap. i.
[91] Ibid.
[92] Como esse processo deve ter sido ambíguo e difícil é exemplificado pela seguinte ocorrência: "Lawrence havia aceito um
convite para jantar no Claridge e, depois, para uma festa em casa da sra. Harry Lindsay. Deixou de ir ao jantar, mas foi à festa
vestido de árabe". Isso aconteceu em 1919, Letters, p. 272, nota 1.
[93] Lawrence, op. cit., cap. I.
[94] Lawrence escreveu em 1929: "Quem tivesse subido tão rápido como eu e tivesse visto como é por dentro o topo do mundo,
poderia muito bem perder suas aspirações e cansar-se dos motivos comuns da ação, que o impeliram até que alcançasse o topo. Eu
não era rei nem primeiro-ministro, mas eu os fizera, ou brincara com eles; depois disso, que mais poderia eu fazer?" {Letters, p.
653).
[95] Ibid., pp. 244, 447, 450. Compare-se especialmente a carta de 1918 (p. 244) com as duas cartas a George Bernard Shaw de
1923 (p. 447) e 1928 (p. 616).
[96] George Bernard Shaw, ao perguntar a Lawrence em 1928 "O que é que você pretende realmente?", sugeriu que não eram
autênticos nem o seu papel no Exército, nem o fato de ele estar procurando emprego como vigia noturno (para o que podia
"conseguir boas referências").
[97] Garnett, op. cit., p. 264.
[98] Letters, em 1930, p. 693.
[99] /èid.,eml924,p.456.
[100] Ibid., p. 693.
[101] Lawrence, op. cit., p. 15.
[102] Millin,op. cit., p. 15.
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