sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (3.3 - O caráter imperialista)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

3. Raça e Burocracia
     3.3 - O caráter imperialista
          Dos dois principais mecanismos políticos do domínio imperialista, a raça foi descoberta na África do Sul e a burocracia na Argélia, Egito e índia; a primeira foi inicialmente a reação quase inconsciente diante de tribos cuja humanidade atemorizava e envergonhava o homem europeu, enquanto a segunda resultou da aplicação de princípios administrativos através dos quais os europeus haviam tentado dominar povos estrangeiros considerados inferiores e carentes de sua proteção especial. Em outras palavras, a raça foi a fuga para a irresponsabilidade desprovida de qualquer aspecto humano, e a burocracia foi a consequência da tentativa de assumir uma responsabilidade que, na verdade, nenhum homem pode assumir por outro homem e nenhum povo por outro povo.
     O exagerado senso de responsabilidade dos administradores britânicos da índia, que sucederam os "trangressores da lei" de Burke, resultava do fato de que o Império Britânico havia sido adquirido "num momento de descuido". Assim, aqueles que se defrontavam com o fato consumado e com a tarefa de conservar aquilo que haviam herdado acidentalmente tinham de encontrar uma interpretação que transformasse o acaso em ato consciente. Desde os tempos antigos, as lendas servem para alterar fatos históricos dessa natureza: e as lendas fabricadas pelos intelectuais britânicos tiveram um papel decisivo na formação do burocrata e do agente secreto dos serviços ingleses.
     As lendas sempre influenciaram fortemente a feitura da história. O homem, que não tem o poder de modificar o passado, que herda as ações alheias sem consulta prévia e sente o peso da responsabilidade resultante de uma série infinita de acasos e não de atos conscientes, exige uma explicação e uma interpretação do passado, onde parece esconder-se a misteriosa chave do seu destino futuro. As lendas foram o alicerce espiritual dos povos antigos, uma promessa de guia seguro para a vastidão do amanhã. Sem jamais relatar fielmente os fatos, mas expressando sempre o seu verdadeiro significado, oferecem uma verdade que transcende a realidade, uma lembrança além da memória.
     As explicações lendárias da história sempre serviram como tardias correções de fatos e eventos reais, necessárias precisamente porque a própria história iria responsabilizar o homem por atos que ele não havia cometido e por consequências que não tinha previsto. A veracidade das lendas antigas — aquilo que lhes empresta uma fascinante atualidade muitos séculos após a destruição das cidades, impérios e povos a que serviram — estava na forma a que eram reduzidos os fatos passados, para ajustá-los à condição humana em geral e a determinadas aspirações políticas em particular. Somente através das narrativas francamente inventadas o homem consentia em assumir a responsabilidade pelos acontecimentos e em considerar os eventos passados como o seu passado. As lendas davam-lhe o domínio sobre o que não fora obra sua, e a capacidade de lidar com o que não podia desfazer. Nesse sentido, as lendas não são apenas as primeiras lembranças da humanidade, mas também o verdadeiro começo da história humana. 
     O florescimento das lendas históricas e políticas terminou de modo bastante abrupto após o nascimento do cristianismo. A interpretação cristã da história, desde os tempos de Adão até o Juízo Final, como uma estrada única para a redenção e a salvação ofereceu a mais poderosa e completa explicação lendária do destino humano. Somente depois que a unidade espiritual dos povos cristãos cedeu à pluralidade das nações, quando a estrada da salvação tornou-se um artigo incerto da fé individual e não mais a teoria universal aplicável a todos os casos, é que surgiram novos tipos de explicações históricas. O século XIX ofereceu-nos o curioso espetáculo do nascimento quase simultâneo das mais diversas e contraditórias ideologias, cada uma das quais pretendia conhecer a verdade a respeito de fatos que, de outra forma, seriam incompreensíveis. As lendas, porém, não são ideologias; não visam a explicações universais: interessam-se por fatos concretos. Parece-nos bastante significativo que o surgimento de estruturas nacionais não tenha, em parte alguma, sido reforçado por lendas que legitimassem a sua fundação e que, somente quando era óbvio o declínio da entidade nacional e quando o imperialismo parecia substituir o nacionalismo antiquado, surgisse a lenda do imperialismo.
     O autor da lenda imperialista é Rudyard Kipling, seu tema é o Império Britânico, seu resultado é o homem imperialista (o imperialismo foi a única escola formadora de caráter na política moderna). E, embora a lenda do Império Britânico tenha pouco a ver com as realidades do imperialismo inglês, conseguiu levar para os serviços do Império, por força ou por ilusão, os melhores filhos da Inglaterra. Pois as lendas atraem a elite como as ideologias atraem os homens comuns, e como as descrições de "terríveis" forças ocultas atraem a ralé e a escória. Nenhuma estrutura política é mais evocativa de lendas e justificações que o Império Britânico ou o povo inglês, que passava de consciente fundador de colônias a dominador de povos estrangeiros em todo o mundo.
     A lenda da fundação, contada por Kipling, começa com a realidade fundamental do povo das Ilhas Britânicas.[61] Cercados pelo mar, necessitam do auxílio dos três elementos — Água, Vento e Sol — e o obtêm com a invenção do Navio. O navio tornou possível a sempre perigosa aliança com os elementos e fez do inglês o senhor do mundo. "Conquistarás o mundo", diz Kipling, "sem que ninguém se importe como; conservarás o mundo em teu poder sem que ninguém saiba como; e levarás o mundo em tuas costas sem que ninguém se aperceba como. Mas nem tu nem teus filhos ganharão coisa alguma por esse pequeno feito, a não ser os Quatro Dons — um do Mar, um do Vento, um do Sol e um do Navio que te leva. (...) Pois conquistando o mundo e conservando o mundo, e levando o mundo às tuas costas —na terra, no mar ou no ar —, os teus filhos terão sempre Quatro Dons. Serão intelectualmente astutos, macios no falar e terão a mão pesada — terrivelmente pesada —; e estarão sempre um pouco a barlavento do inimigo, para que possam salvaguardar os que cruzam os mares para fins lícitos."
     O que torna essa pequena história de "The first sailor" tão próxima das antigas lendas de fundação é o fato de apresentar o povo britânico como o único politicamente amadurecido e preocupado com a lei e encarregado do bem-estar do mundo, em meio aos bárbaros que não sabem nem querem saber o que faz o mundo girar. Infelizmente, da história de Kipling não emana a verdade inata das lendas antigas; o mundo se importava, e sabia, e viu como eles fizeram tudo, e nenhuma lenda podia jamais convencer a ninguém que os ingleses "não haviam ganho coisa alguma com aquele pequeno feito". Existia, contudo, uma certa realidade na própria Inglaterra que correspondia à lenda de Kipling e que a tornara possível: a existência de virtudes como cavalheirismo, nobreza, bravura, embora completamente deslocadas numa realidade política dominada por Cecil Rhodes ou por lorde Curzon — símbolos de um mundo e de um tipo de domínio.
     O racismo e a hipocrisia escondida na definição do "fardo do homem branco" não impediram que alguns dos melhores homens da Inglaterra a aceitassem seriamente, transformando-se em trágicos e quixotescos bobos do imperialismo. Existe na Inglaterra outra tradição, menos óbvia do que a tradição da hipocrisia, que poderíamos chamar de tradição de "matadores-de-dragões". São os que partem entusiasmados para países distantes e exóticos, ao encontro de povos estranhos e ingênuos, para matar os numerosos dragões que os atormentam há séculos. Há uma boa dose de verdade na outra história de Kipling, "The tomb of his ancestors",[62] na qual a família Chinn "serve a índia, geração após geração, como uma fileira de golfinhos a cruzar o mar aberto". Matam o cervo que devora a plantação do pobre, a quem ensinam os mistérios de métodos agrícolas melhores, livrando-o de algumas superstições em que crê; trucidam leões e tigres; e sua única recompensa é um "túmulo de ancestrais" e uma lenda familiar, aceita por toda a tribo indiana, segundo a qual "o respeitado ancestral (...) tem o seu próprio tigre — um tigre de sela que ele monta para andar pelo mato sempre que tem vontade". Infelizmente, esses passeios são "sinal certo de guerra ou peste ou ... ou de algo", que no caso do conto revela-se ser sinal de vacina. De modo que Chinn, o Moço, subalterno sem importância na hierarquia do Exército, mas de suma importância para os indianos, tem de matar a montaria do seu ancestral para que o povo possa ser vacinado sem medo de "guerras ou peste ou algo".
     Se levarmos em conta a vida moderna, os Chinn são realmente "mais afortunados que a maioria". Têm a sorte de nascer para uma carreira que, suave e naturalmente, os leva a realizar os melhores sonhos da juventude. Quando outros jovens têm de esquecer seus "nobres sonhos", eles se encontram na idade certa para transformá-los em ação. E, quando se aposentam após trinta anos de serviço, seu navio cruza com "o carregamento de tropas que parte, levando para o Oriente o filho que vai cumprir o dever da família", de modo que o vigor da existência do velho Chinn, como matador-de-dragão eleito pelo governo e pago pelo Exército, pode ser transmitido à próxima geração. E certo que o governo britânico recompensa-lhes os serviços, mas não se sabe ao certo a quem terminam servindo. É muito provável que sirvam realmente a essa tribo indiana, geração após geração, e é sem dúvida um consolo o fato de que pelo menos a própria tribo pensa assim. Se os serviços superiores nada sabem dos estranhos deveres e aventuras do pequeno tenente Chinn e ignoram que ele é a reencarnação vitoriosa do seu avô, isso dá à sua dupla vida onírica uma tranquila base de realidade. Ele simplesmente se sente à vontade nos dois mundos separados por muralhas à prova d'água e à prova de mexericos. Nascido "no coração da floresta mirrada e feroz" e educado entre o seu próprio povo na Inglaterra pacata, equilibrada e mal informada, está pronto a viver permanentemente com dois povos, e é bem entrosado e versado na tradição, língua, superstição e preconceitos de ambos. De um momento para outro, pode mudar de obediente e subalterno soldado de Sua Majestade para a excitante e nobre figura do mundo nativo, protetor bem-amado dos fracos e matador-de-dragões das velhas histórias.
     Mas esses curiosos e quixotescos protetores dos fracos, que desempenhavam seu papel por trás dos bastidores do domínio oficial britânico, não eram tanto o produto da ingênua imaginação de um povo primitivo quanto de sonhos que encerravam as melhores tradições europeias e cristãs, mesmo quando estas já se haviam deteriorado na futilidade de ideais de infância. Nenhum soldado de Sua Majestade, nenhum oficial superior britânico podia ensinar aos nativos algo da grandeza do mundo ocidental; só aqueles que nunca tinham podido desfazer-se de seus ideais de infância e que, portanto, haviam se alistado nos serviços coloniais estavam à altura da tarefa. O imperialismo era para eles somente uma oportunidade acidental de fugirem de uma sociedade na qual, para crescer, o homem tinha de esquecer sua mocidade. Para a sociedade inglesa era um alívio vê-los partirem para países distantes, circunstância que permitia que se tolerassem e até se estimulassem os ideais de infância no sistema de public schools [internatos particulares]; os serviços coloniais levavam-nos para longe da Inglaterra e evitavam que transformassem seus ideais infantis nas ideias maduras de um homem. As terras estranhas e curiosas atraíram os melhores jovens da Inglaterra desde o fim do século XIX, privaram sua sociedade dos elementos mais honestos e mais perigosos, e garantiram uma certa conservação, ou talvez petrificação, da nobreza dos jovens que preservou e infantilizou os padrões morais do Ocidente. Lorde Cromer, secretário do vice-rei e membro financeiro do governo pré-imperialista da Índia, pertencia ainda à categoria dos matadores-de-dragões ingleses. Guiado apenas pelo "senso de sacrifício" em relação às populações atrasadas e pelo "senso de dever"[63] para com a glória da Grã-Bretanha que "fez surgir uma classe de funcionários com o desejo e a capacidade de governar",[64] declinou em 1894 do posto de vice-rei e recusou dez anos mais tarde o lugar de secretário de Estado dos Negócios Exteriores. Em lugar de tais honrarias, que teriam satisfeito a um homem de menor calibre, tornou-se o pouco conhecido mas todo-poderoso cônsul-geral britânico no Egito de 1883 a 1907. Lá, veio a ser o primeiro administrador imperialista, certamente "não inferior a nenhum dos que glorificaram a raça inglesa com os seus serviços"[65] e talvez o último a morrer com tranqüilo orgulho: Let these sufficefor Britain 's Meed — / No nobler price was ever won, / The blessings of a people freed, / The cons-ciousness ofduty done.[66]
     Cromer foi para o Egito porque compreendia que "o inglês que se esforça em conservar sua amada índia [tem de] ter um pé firme nas margens do Nilo".[67] O Egito, para ele, não passava de um meio para atingir um fim, uma expansão necessária em prol da segurança da índia. Sucedeu que quase ao mesmo tempo outro inglês assentou o pé no continente africano, embora no extremo oposto e por motivos opostos: Cecil Rhodes foi para a África do Sul e salvou a colônia do Cabo quando esta havia perdido toda a importância para a "amada índia" dos ingleses. As ideias expansionistas de Rhodes eram muito mais avançadas que as do seu colega mais respeitável do norte; para ele, a expansão não precisava ser justificada por motivos sensatos como a necessidade de preservar o que já se possuía. "A expansão é tudo", dizia, e nesse sentido a índia, a África do Sul e o Egito eram igualmente importantes ou desimportantes como degraus numa expansão a que só o tamanho da terra impunha limites. Havia por certo um abismo entre Rhodes, o vulgar megalômano, e Cromer, o culto homem do dever e do sacrifício; contudo, alcançaram resultados mais ou menos idênticos e foram igualmente responsáveis pelo "Grande Jogo" do segredo, que não foi menos insano nem menos nocivo para a política do que o mundo fantasma das raças.
     A principal semelhança entre o governo de Rhodes na África do Sul e o domino de Cromer no Egito era esta: ambos olhavam os seus países não como fins, mas simplesmente como meios para uma finalidade supostamente mais elevada. Igualavam-se, portanto, em sua indiferença e alheamento, em sua genuína falta de interesse pelos súditos, atitude tão distinta da crueldade e arbitrariedade dos déspotas nativos da Ásia como da incúria exploradora dos conquistadores ou da anárquica e louca opressão de uma tribo por outra. Assim que Cromer começou a governar o Egito por amor à índia, perdeu o seu papel de protetor de "povos atrasados" e já não podia crer sinceramente que "a defesa do interesse pelas raças subjugadas é o principal fundamento de toda a estrutura imperial".[68]
     O alheamento passou a ser a atitude de todos os membros da administração britânica, numa forma de governo mais perigosa que o despotismo e a arbitrariedade, porque nem ao menos tolerava aquele último elo de ligação entre o déspota e seus súditos, que eram o suborno e os presentes. A própria integridade da administração britânica tornou seu governo mais desumano e mais inacessível aos seus súditos que o de qualquer dominador ou conquistador.[69] A integridade e o alheamento simbolizavam uma absoluta separação de interesses, a ponto de nem poderem entrar em conflito. Comparada a eles, a exploração, a corrupção ou a opressão parece salvaguardar a dignidade humana, porque o explorador e o explorado, o opressor e o oprimido, o corruptor e o corrupto ainda vivem no mesmo mundo, ainda têm objetivos comuns, ainda se batem pela posse das mesmas coisas; e era isso que o alheamento destruía. E o pior era que o administrador alheado mal percebia ter inventado uma nova forma de governo: acreditava realmente que a sua atitude era condicionada pelo "contato forçado com pessoas que viviam num plano inferior". Assim, em vez de crer na sua superioridade individual, com algum rastro de vaidade inofensiva, sentia-se como membro de "uma nação que havia atingido um nível relativamente alto de civilização"[70] e, portanto, podia manter a sua posição por direito de nascimento, independentemente de realizações pessoais.
     A carreira de lorde Cromer é fascinante porque personifica o ponto de transição entre os antigos serviços coloniais e os serviços imperialistas. Sua primeira reação às funções que desempenharia no Egito foi certa inquietude e preocupação com um estado de coisas que, sem ser "anexação", era "uma forma híbrida de governo à qual não se pode dar nome e para a qual não há precedente".[71] Em 1885, depois de dois anos de serviço, ainda alimentava sérias dúvidas a respeito de um sistema no qual ele era, normalmente, o cônsul-geral inglês e, na prática, o governante do Egito, e escreveu que um "mecanismo altamente delicado, [cujo] funcionamento eficaz depende muito do julgamento e da habilidade de alguns indivíduos (...), pode (...) ser justificado [somente] se pudermos ter sempre em vista a possibilidade de evacuação. (...) Se essa possibilidade se tornar tão remota a ponto de ser quase inexistente (...) ser-nos-á preferível (...) acertar (...) com as outras potências que assumiremos o governo do país, garantindo sua dívida etc.".[72] Não há dúvida de que Cromer tinha razão, e que tanto a ocupação como a evacuação teriam normalizado aquele estado de coisas. Mas aquela "forma híbrida de governo" sem precedentes iria marcar todo o empreendimento imperialista de tal modo que, algumas décadas depois, ninguém se lembrava da sensata opinião de Cromer quanto a formas possíveis e impossíveis de governo, da mesma maneira como foi esquecido o que lorde Selbourne percebera havia muito tempo quando disse que uma sociedade racista como modo de vida era um fenômeno sem precedentes. Nada caracteriza melhor o estágio inicial do imperialismo do que a combinação dessas duas opiniões sobre as condições existentes na África: um modo de vida sem precedentes no sul e um governo sem precedentes no norte.
     Nos anos que se seguiram, Cromer reconciliou-se com a "forma híbrida de governo"; começou a justificá-la em suas cartas e expôs a necessidade de um governo sem denominação e sem precedentes. No fim da vida, traçou (em seu ensaio sobre "O governo de raças dominadas") as linhas mestras do que se pode chamar a filosofia do burocrata.
     De início Cromer reconhecia que a "influência pessoal" sem qualquer tratado político escrito podia bastar para uma "supervisão suficientemente eficaz dos negócios públicos"[73] nos países estrangeiros. Esse tipo de influência informal era preferível a uma política bem definida, porque podia ser alterada de um momento para outro e não envolvia necessariamente o governo inglês em caso de dificuldade. Exigia um corpo de assistentes altamente treinados e dignos de confiança, cuja lealdade e patriotismo não estivessem ligados à ambição e à vaidade pessoal, e que teriam de renunciar até mesmo à aspiração tão humana de verem o nome que portavam associado às suas façanhas. Sua maior paixão teria de ser o sigilo ("quanto menos se falar dos funcionários britânicos, melhor") [74]e uma função por trás dos bastidores; seu maior desprezo seria pela publicidade e por aqueles que a apreciavam.
     O próprio Cromer caracterizava-se em alto grau por todas estas qualidades; nunca ficou mais furioso do que quando o "tiraram do esconderijo", quando "a realidade que antes só uns poucos conheciam [tornou se] patente aos olhos de todos".[75] Seu orgulho era realmente "permanecer mais ou menos oculto [e] puxar os cordões".[76] Em contrapartida, e para que possa executar o seu trabalho, o burocrata tem de se sentir a salvo de controles — tanto de louvor como de reprovação — de todas as instituições públicas, seja o Parlamento, os "Departamentos Ingleses" ou a imprensa. Cada avanço da democracia, ou mesmo o simples funcionamento das instituições democráticas existentes, só pode tornar-se uma ameaça, pois é impossível governar "um povo por intermédio de outro povo — o povo da índia através do povo da Inglaterra".[77] A burocracia é sempre um governo de peritos, de uma "minoria experiente", basicamente formado por uma maioria inexperiente e, portanto, não se lhe pode confiar um assunto tão altamente especializado como política e negócios públicos. Além disso, os burocratas não devem absolutamente ter ideias gerais a respeito de assuntos políticos; seu patriotismo não deve desorientá-los a ponto de acreditarem na virtude intrínseca dos princípios políticos do seu próprio país; isto apenas resultaria numa vulgar aplicação "imitativa" desses princípios "ao governo das populações atrasadas", o que, na opinião de Cromer, era o principal defeito do sistema francês.[78]
     Ninguém jamais dirá que Cecil Rhodes sofria de falta de vaidade. Segundo Jameson, ele esperava ser lembrado durante pelo menos 4 mil anos. No entanto, a despeito de todo o seu apetite de autoglorificação, teve a mesma idéia de governo sigiloso que o supermodesto lorde Cromer. Extremamente dado a redigir testamentos, Rhodes insistiu em todos eles (no decorrer de duas décadas de vida pública) em que o seu dinheiro deveria ser usado para fundar "uma sociedade secreta (...) que realizasse os seus planos", sociedade que devia ser organizada "como a de Loyola, com o apoio da riqueza acumulada daqueles cuja aspiração é o desejo de fazer algo", de sorte que, eventualmente, existiriam "de 2 a 3 mil homens na flor da vida espalhados pelo mundo, cada um dos quais levaria gravado na alma, desde os anos mais tenros, o sonho do fundador e, além disso, teriam sido especialmente — matematicamente — escolhidos para a finalidade prevista pelo Fundador".[79] Possuidor de visão mais larga que a de Cromer, Rhodes abriu desde logo a sociedade a todos os membros da "raça nórdica",[80] de sorte que o seu objetivo não era tanto a expansão ou a glória da Grã-Bretanha — e a ocupação por ela de "todo o continente africano, da Terra Santa, do vale do Eufrates, das ilhas de Chipre e Creta, de toda a América do Sul, das ilhas do Pacífico, (...) de todo o arquipélago malaio, dos litorais da China e do Japão [e] a recuperação final dos Estados Unidos"[81] — quanto a expansão da "raça nórdica", a qual, unida em sociedade secreta, fundaria um governo burocrático para dominar todos os povos da terra.
     O que venceu a monstruosa vaidade inata de Rhodes e o fez descobrir os atrativos do sigilo foi o mesmo que venceu o senso do dever inato de Cromer: a descoberta de uma expansão que não era motivada pelo apetite específico por um país específico, mas sim concebida como processo infindável no qual cada país serviria de degrau para expansões futuras. Diante de tal conceito, o desejo de glória já não era saciado pelo glorioso triunfo sobre determinado povo, nem o senso do dever era apaziguado pela consciência de determinados serviços ou pelo cumprimento de determinadas tarefas. Não importam as qualidades ou defeitos individuais que um homem possa ter: uma vez mergulhado no turbilhão de um processo expansionista sem limites, cessa, por assim dizer, de ser o que era e obedece às leis do processo, identifica-se com as forças anônimas a que deve servir para manter o processo em andamento; concebe a si próprio como mera função e chega a ver nessa função, nessa encarnação da tendência dinâmica, a sua mais alta realização. A essa altura, como o próprio Rhodes foi suficientemente louco para dizer, não pode realmente "fazer nada errado", e assim tudo o que fizer "passa a ser certo. Era seu dever fazer o que quisesse. Sentia-se como um deus — nem mais nem menos".[82] Mas lorde Cromer apontou, com sensatez, o mesmo fenômeno — homens que baixavam voluntariamente à condição de meros instrumentos ou meras funções — quando chamou os burocratas de "instrumentos de incomparável valor na execução da política do imperialismo".[83]
     É óbvio que esses agentes secretos ou anônimos da força expansionista não tinham o menor senso de obediência às leis humanas. A única "lei" que seguiam era a "lei" da expansão, e a única prova de sua "legalidade" era o sucesso. Tinham de estar perfeitamente dispostos a desaparecer no completo esquecimento em caso de fracasso, sumir, se por algum motivo deixassem de ser "instrumentos de incomparável valor". Enquanto alcançavam o sucesso, a sensação de forças incorporadoras, maiores do que eles próprios, tornava relativamente fácil dispensar e mesmo desprezar o aplauso e a glorificação. Eram monstros de presunção no sucesso e monstros de modéstia no fracasso.
     Essa superstição de uma possível identificação mágica do homem com as forças da história está na base da burocracia como forma de governo e da definitiva substituição da lei por decretos provisórios e mutáveis. Para tal estrutura política, o ideal será sempre o homem que puxa os cordões da história por trás da cortina. Cromer finalmente chegou a evitar todo "instrumento escrito ou qualquer coisa tangível"[84] em suas relações com o Egito — até mesmo uma proclamação de anexação — para ter a liberdade de obedecer somente à lei da expansão, sem se sujeitar a tratados redigidos por homens. Do mesmo modo, o burocrata evita toda lei geral e trata cada caso separadamente, por meio de decreto, porque a estabilidade da lei gera a ameaça de formar uma comunidade na qual ninguém pode vir a ser um deus, porque todos têm de obedecê-la.
     As duas figuras centrais desse sistema, cuja própria essência é o processo sem fim, são, de um lado, o burocrata e, do outro, o agente secreto. Enquanto serviam apenas o imperialismo britânico, nem um nem outro chegaram a negar que descendessem de matadores-de-dragões e protetores dos fracos e, portanto, nunca levaram os regimes burocráticos aos seus naturais extremos. Quase vinte anos depois da morte de Cromer, um burocrata inglês sabia que os "massacres administrativos" podiam forçar a índia a permanecer parte do Império Britânico, mas sabia também como era utópico tentar obter o apoio da administração em Londres para esse tipo de planos, embora fossem bastante realistas.[85] Lorde Curzon, o vice-rei da índia, não mostrou nada da nobreza de Cromer e era produto bem típico de uma sociedade cada vez mais tendente a aceitar os padrões raciais da ralé, se estes lhe fossem oferecidos sob a forma de esnobismo elegante.[86] Mas o esnobismo é incompatível com o fanatismo e, portanto, nunca é realmente eficaz.
     O mesmo se aplica aos membros do Serviço Secreto Britânico. Sua origem também é ilustre — o que o matador-de-dragões era para o burocrata, o aventureiro é para o agente secreto —, e também eles tinham o direito de reclamar sua lenda fundamental, a lenda do Grande Jogo como é narrada em Kim por Rudyard Kipling.
     Todo aventureiro sabe, naturalmente, o que Kipling queria dizer quando louvava Kim porque "ele amava o jogo pelo próprio jogo". Toda pessoa ainda capaz de admirar-se ante "este grande e maravilhoso mundo" sabe que não é nenhum argumento contra o jogo o fato de que "missionários e secretários de beneficências não podiam compreender a sua beleza". E aqueles que julgam "um pecado beijar a boca de uma branca e uma virtude beijar o sapato de um negro"[87] têm ainda menos razão de falar. Uma vez que a própria vida, afinal, tem de ser vivida e amada pelo que é, a aventura e o amor ao jogo pelo próprio jogo facilmente parecem simbolizar a vida de um modo intensamente humano. É esse apaixonado senso de humanidade em Kim que faz dele o único romance da era imperialista no qual uma genuína fraternidade une as "estirpes superiores e inferiores", e Kim, um "sahib e filho de um sahib", pode legitimamente dizer "nós" quando fala de "escravos encadeados", "todos puxados por uma corda só". Esse "nós" — expressão estranha na boca de um adepto do imperialismo — tem mais conteúdo que o completo anonimato dos que se orgulham de "não ter um nome, mas apenas um número e uma letra", mais que o orgulho comum de ter "um preço sobre a cabeça". O que os torna camaradas — no perigo, no medo, na constante surpresa, na completa ausência de tradição e na constante disposição de trocar de identidade — é a experiência comum de serem símbolos da própria vida, símbolos do que acontecia por toda a índia, onde participavam de toda aquela vida no momento mesmo em que ela ocorria "passando como um comboio que atravessa o Hind de ponta a ponta"; portanto, não se sentiam "sozinhos, pessoas isoladas no meio de tudo aquilo", enclausurados na limitação de sua própria individualidade e nacionalidade. Jogando o Grande Jogo, o homem pode sentir que vive a única vida que vale a pena, porque se despe de tudo o que ainda pode ser considerado acessório. A própria vida parece ficar para trás, numa pureza fantasticamente intensa, quando ele se liberta de todos os laços sociais comuns — família, ocupação regular, objetivo definido, ambições e o lugar numa comunidade à qual pertence por nascimento. "Só quando todos estão mortos é que o Grande Jogo acaba. Não antes." Só quando se morre é que a vida acaba e não antes, não quando se vem a conseguir tudo o que se desejou. O que faz o jogo tão perigosamente semelhante à própria vida é o fato de não ter um objetivo final. 
     A ausência de objetivos é exatamente o encanto da existência de Kim. Não foi pela Inglaterra que ele aceitou os seus estranhos encargos, nem pela índia, nem por qualquer outra causa digna ou indigna. Noções imperialistas como a expansão por amor à expansão, ou o poder por amor ao poder, poderiam tê-lo contentado, mas eram fórmulas que não o atraíam muito, e ele certamente não as teria inventado. Adotou o seu peculiar modo de vida de "não perguntar a razão, mas apenas agir ou morrer", sem ao menos ter feito a primeira pergunta. Foi tentado apenas pela interminabilidade do jogo e pelo segredo em si. E o segredo também parece simbolizar o mistério básico da vida.
     De certa forma, não foi culpa dos aventureiros natos, daqueles que por sua própria natureza viviam fora da sociedade e de todas as estruturas políticas, terem encontrado no imperialismo um jogo político que era interminável por definição; como iriam saber que, na política, jogos intermináveis só podem terminar em catástrofe, e que o segredo político raramente termina em algo melhor que a vulgar duplicidade do espião? O logro desses jogadores do Grande Jogo é que os seus patrões sabiam o que eles buscavam, e usavam o seu amor pelo anonimato para fins de mera espionagem. No entanto, esse triunfo dos investidores famintos de lucro foi temporário: foram logrados, a seu turno, quando, algumas décadas depois, enfrentaram os que jogavam o jogo do totalitarismo, um jogo sem motivos ulteriores como o lucro e, portanto, jogado com eficiência tão mortal que devorou até mesmo aqueles que o financiaram. Antes, porém, que isso acontecesse, os imperialistas haviam destruído o melhor homem que, em todos os tempos, passou de aventureiro (com uma forte dose de matador-de-dragões) a agente secreto: Lawrence da Arábia. Nunca mais a experiência da política secreta foi levada a cabo de maneira mais pura por um homem mais decente. Lawrence fez, sem medo, a experiência em si próprio, para depois retornar e acreditar que pertencia à "geração perdida". Julgou que isso aconteceu porque "os velhos se ergueram de novo e nos roubaram a vitória" para "refazer [o mundo] à semelhança do mundo antigo que conheciam".[88] Na realidade, os velhos foram bem ineficazes até nisso, e entregaram sua vitória, juntamente com o poder, a outros homens da mesma "geração perdida", nem mais velhos que Lawrence nem muito diferentes dele. A única diferença era que Lawrence ainda se apegava firmemente a uma moralidade que, no entanto, já havia perdido toda a sua base objetiva e não passava de cavalheirismo quixotesco.
     Lawrence foi levado a tornar-se agente secreto na Arábia pelo forte desejo de abandonar o mundo da respeitabilidade insípida, cuja continuidade tornara-se simplesmente sem sentido, e por seu desgosto com o mundo e consigo mesmo. O que mais o atraiu na civilização árabe foi o seu "evangelho da pobreza (...) [que] também parece incluir uma espécie de pobreza moral", que "se limpou completamente de seus deuses domésticos".[89] Depois que voltou para a civilização inglesa, o que ele mais evitou foi viver uma vida própria, de sorte que terminou alistando-se, de maneira aparentemente incompreensível, como soldado raso do Exército britânico, obviamente a única instituição onde a honra de um homem podia identificar-se com a perda de sua personalidade individual.
     Quando a deflagração da Primeira Guerra Mundial levou T. E. Lawrence ao Oriente Próximo, com o encargo de fazer com que os árabes se rebelassem contra os dominadores turcos e lutassem ao lado dos ingleses, ele se viu engolfado pelo Grande Jogo. Só podia atingir o seu objetivo se um movimento nacional irrompesse entre as tribos árabes, um movimento nacional destinado a servir ao imperialismo inglês. Lawrence tinha de fingir que aquele movimento nacional árabe era o seu principal interesse, e o fez tão bem que terminou acreditando nele. Mas novamente se sentia deslocado: não podia, afinal de contas, "pensar como eles" e "assumir o seu caráter".[90] Fingindo ser árabe, podia apenas perder sua "natureza inglesa"[91] e o que o fascinou foi o completo segredo da anulação de si mesmo, não se deixando enganar pela óbvia justificativa de um governo benevolente sobre um povo atrasado, que lorde Cromer teria preferido. Apenas uma geração mais velho e mais triste do que Cromer, Lawrence encontrou profunda satisfação num papel que exigia um recondicionamento de toda a sua personalidade até que se adaptasse ao Grande Jogo, até que se tornasse a encarnação da força do movimento nacional árabe, até que perdesse toda vaidade natural em sua misteriosa aliança com forças necessariamente superiores a ele próprio, por maior que ele fosse, até que adquirisse um mortal "desprezo não pelos outros homens, mas por tudo o que eles fazem" por iniciativa própria e não em concerto com as forças da história.
     Quando, ao fim da guerra, Lawrence teve de abandonar a falsa aparência do agente secreto e recuperar de algum modo a sua "natureza inglesa"[92] viu com outros olhos "o Ocidente e as suas convenções: destruíram tudo para mim".[93] Do Grande Jogo de incalculável grandeza, que nenhuma publicidade havia glorificado ou limitado, e que o havia erigido, em sua mocidade, acima de reis e de primeiros-ministros, porque ele "os fizera ou se divertira com eles",[94] Lawrence voltou para casa com um desejo obsessivo de anonimato e com a profunda convicção de que jamais o satisfaria o que ainda pudesse fazer em sua vida. Essa conclusão advinha de sua perfeita consciência de que a grandeza não tinha sido sua, mas apenas do papel que havia eficientemente assumido, que a sua grandeza havia sido o resultado do Jogo e não produto de si próprio. Agora "já não queria ser grande" e, decidido a não "ser respeitável de novo", curou se de vez de "qualquer desejo de fazer algo por si mesmo".[95] Havia sido o fantasma de uma força, e tornou-se um fantasma entre os vivos quando lhe tiraram a força e a função. O que ele buscava desesperadamente era outro papel a desempenhar — e isso, por sinal, era a essência do "jogo" a respeito do qual George Bernard Shaw indagou, com tanta bondade mas com tanta incompreensão, como se a sua indagação viesse de outro século, sem compreender por que um homem de tão grandes realizações não se mantinha à altura delas.[96] Somente outro papel, outra função, seria capaz de evitar que ele próprio e todo o mundo o identificasse com o que havia feito na Arábia, que substituísse sua antiga natureza por uma nova personalidade. Não queria tornar-se "Lawrence da Arábia", uma vez que, basicamente, não queria retomar uma nova natureza após haver perdido a anterior. Sua grandeza reside no fato de ter sido suficientemente arrebatado para recusar concessões baratas e saídas fáceis para a realidade e a respeitabilidade, e de nunca haver perdido a consciência de que havia sido apenas uma função, representado um papel, e que, portanto, "não devia beneficiar-se de forma alguma pelo que havia feito na Arábia. Recusou as honrarias que havia ganho. Rejeitou os empregos oferecidos em virtude de sua reputação e recusou-se a explorar seus sucessos escrevendo uma única contribuição jornalística remunerada sob o nome de Lawrence".[97]
     A história de T. E. Lawrence, em toda a sua comovente amargura e grandeza, não foi apenas a história de um funcionário pago ou espião assalariado, mas precisamente a história de um autêntico agente ou funcionário, de alguém que realmente acreditava haver penetrado — ou ter sido atirado — na correnteza da necessidade histórica e que se tornou funcionário ou agente das forças secretas que governam o mundo. "Eu havia empurrado o meu barco ao sabor da corrente eterna, de modo que ele ia mais rápido que os que tentavam cortá-la ou ir contra ela. No fim, eu já não acreditava no movimento árabe, mas achava-o necessário em seu tempo e lugar."[98] Do mesmo modo como Cromer havia governado o Egito por causa da índia e Rhodes a África do Sul pela necessidade de expansão, Lawrence havia agido para algum fim ulterior e imprevisível. A única satisfação que podia derivar disso, na falta da consciência tranquila por alguma realização limitada, advinha do próprio senso de haver funcionado, de ter sido abraçado e dirigido por algum movimento grandioso. De regresso a Londres, desesperado, procurava encontrar algum substituto para esse tipo de "satisfação própria", e "só o achava na velocidade de uma motocicleta".[99] Embora Lawrence não houvesse ainda sucumbido ao fanatismo de uma ideologia de movimento, provavelmente por ser demasiado educado para as superstições do seu tempo, já havia experimentado aquele fascínio, baseado no desespero de toda responsabilidade humana possível, exercido pela corrente eterna e por seu eterno movimento. Afogou-se nessa corrente, e dele nada restou senão certa decência inexplicável e o orgulho de se haver "esforçado na direção certa". "Ainda não sei quanto valor tem o indivíduo: muito, acho eu, se se esforçar na direção certa."[100] Eis, portanto, o fim do verdadeiro orgulho do homem ocidental que já não tem valor como um fim em si próprio, que já não faz "nada de si próprio nem tem a decência de ser ele mesmo"[101] dotando o mundo de leis, e que só tem chance se "se esforçar na direção certa", em uníssono com as forças secretas da História e da necessidade — das quais é mera função.
     Quando a ralé europeia descobriu a "linda virtude" que a pele branca podia ser na África,[102] quando o conquistador inglês da índia se tornou um administrador que já não acreditava na validez universal da lei mas em sua própria capacidade inata de governar e dominar, quando os matadores-de-dragões se transformaram em "homens brancos" de "raças superiores" ou em burocratas e espiões, jogando o Grande Jogo de infindáveis motivos ulteriores num movimento sem fim; quando os Serviços de Informações Britânicos (especialmente depois da Primeira Guerra Mundial) começaram a atrair os melhores filhos da Inglaterra, que preferiam servir a forças misteriosas no mundo inteiro a servir o bem comum de seu país, o cenário parecia estar pronto para todos os horrores possíveis. Sob o nariz de todos estavam muitos dos elementos que, reunidos, podiam criar um governo totalitário à base do racismo. Burocratas indianos propunham "massacres administrativos", enquanto funcionários africanos declaravam que "nenhuma consideração ética, tal como os Direitos do Homem, poderá se opor" ao domínio do homem branco.
     Afortunadamente, embora o governo imperialista britânico descesse a certo nível de vulgaridade, a crueldade teve um papel secundário entre uma Grande Guerra e outra, e sempre se preservou um mínimo de direitos humanos. Foi essa moderação em meio à pura loucura que preparou o caminho para o que Churchill chamou de "liquidação do Império de Sua Majestade" e que pode vir a transformar a nação inglesa numa Comunidade de povos ingleses.

Parte II Imperialismo (3.3 - O caráter imperialista)
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[61] Rudyard Kipling, "The first sailor", em Humorous tales, 1891.
[62] Em The day'swork, 1898.
[63] LawrenceJ. Zetland, Lord Crommer, 1932, p. 16.
[64] Lorde Cromer, "The government of subject races", em Edinburgh Review, janeiro de 1908.
[65] Lorde Curzon, na inauguração da placa em memória de Cromer. Ver Zetland, op. cit., p. 362.
[66] "Que a Inglaterra se contente com este prêmio, —/ jamais outro mais nobre foi conseguido / as bênçãos de um povo libertado, / a consciência do dever cumprido." Citado de um longo poema de Cromer. Ver Zetland, op. cit., pp. 17-8.
[67] De uma carta escrita por lorde Cromer em 1882. Ibid., p. 87.
[68] Lorde Cromer, op. cit.
[69] O suborno "era talvez a instituição mais humana na trama de arame farpado da ordem russa". Olgin, ThesouloftheRussianrevolution,tio\aYorí, 1917.
[70] Zetland, op. cit., p. 89.
[71] De uma carta de lorde Cromer de 1884. Ibid., p. 117.
[72] Numa carta a lorde Granville, membro do Partido Liberal, em 1885. Ibid., p. 219.
[73] De uma carta a lorde Rosebery em 1886. Ibid., p. 134.
[74] Ibid., p. 352.
[75] De uma carta a Lord Rosebery em 1893. Ibid., pp. 204-5.
[76] Ibid., p. 192.
[77] De um discurso de Cromer no Parlamento após 1904. Ibid., p. 311
[78] No decorrer das negociações e considerações das normas administrativas para a anexação do Sudão, Cromer insistiu em que o assunto fosse mantido fora da esfera de influência francesa: fez isso porque sentia "a mais completa falta de confiança no sistema administrativo [francês] aplicado às raças dominadas" (de uma carta a Salisbury em 1899. Ibid., p. 248).
[79] Rhodes escreveu seis testamentos (o primeiro foi redigido em 1877), todos os quais mencionam a "sociedade secreta". Para maiores detalhes, ver Basil Williams, Cecil Rhodes, Londres, 1921, e Millin, op. cit., pp. 128 e 331. As citações são feitas por W. T. Stead.
[80] A "sociedade secreta" de Rhodes terminou sendo a mui respeitável Rhodes Scholarship Association, à qual ainda hoje são admitidos só os ingleses e membros das demais "raças nórdicas", como alemães, escandinavos e norte americanos.
[81] Basil Williams, op. cit., p. 51.
[82] Mfflin.op. cit., p. 92.
[83] Cromer, op. cit.
[84] De uma carta de lorde Cromer a lorde Rosebery em 1886. Zetland, op. cit., p. 134.
[85] "O sistema indiano de governo por meio de relatórios era (...) suspeito [na Inglaterra]. Na Índia, não havia julgamento por júri, e todos os juízes eram servidores pagos da Coroa, muitos dos quais podiam ser removidos à vontade. (...) Certos legisladores formais não viam com muito bons olhos o sucesso da experiência indiana. 'Se', diziam eles, 'o despotismo e a burocracia funcionam tão bem na índia, não virá isso a ser usado como argumento para a introdução do mesmo sistema aqui?'" De qualquer modo, o governo da índia "sabia muito bem que teria de justificar a sua política perante a opinião pública da Inglaterra, e também sabia que a opinião pública jamais toleraria a opressão" (A. Carthill, op. cit., pp. 70 e 41-2).
[86] Harold Nicolson, em seu Curzon: the last phase, 1919-1925, Boston-Nova York, 1934, conta a seguinte história: "Por trás das linhas de combate em Flandres havia uma grande cervejaria, em cujos toneis os soldados se banhavam ao regressar das trincheiras. Levaram Curzon para assistir a essa dantesca exibição. Ele olhou, interessado, aquela centena de corpos nus saracoteando nas nuvens de vapor .'Ora esta!', exclamou, 'não tinha a menor ideia que a gente das classes inferiores tivesse pele tão branca.' Curzon negava a autenticidade dessa história, mas, não obstante, gostava dela" (pp. 47-8).
[87] Carthill, op. cit., p. 88.
[88] T. E. Lawrence, Seven pillars ofwisdom, introdução (primeira edição, 1926) que foi omitida por conselho de George Bernard Shaw da edição posterior. Ver T. E. Lawrence, Letters, editado por David Garnett, Nova York, 1939, pp. 262 ss.
[89] De uma carta escrita em 1918, Letters, p. 224.
[90] T. E. Lawrence, Seven pillars ofwisdom, Garden City, 1938, cap. i. 
[91] Ibid.  
[92] Como esse processo deve ter sido ambíguo e difícil é exemplificado pela seguinte ocorrência: "Lawrence havia aceito um convite para jantar no Claridge e, depois, para uma festa em casa da sra. Harry Lindsay. Deixou de ir ao jantar, mas foi à festa vestido de árabe". Isso aconteceu em 1919, Letters, p. 272, nota 1.
[93] Lawrence, op. cit., cap. I.
[94] Lawrence escreveu em 1929: "Quem tivesse subido tão rápido como eu e tivesse visto como é por dentro o topo do mundo, poderia muito bem perder suas aspirações e cansar-se dos motivos comuns da ação, que o impeliram até que alcançasse o topo. Eu não era rei nem primeiro-ministro, mas eu os fizera, ou brincara com eles; depois disso, que mais poderia eu fazer?" {Letters, p. 653).
[95] Ibid., pp. 244, 447, 450. Compare-se especialmente a carta de 1918 (p. 244) com as duas cartas a George Bernard Shaw de 1923 (p. 447) e 1928 (p. 616).
[96] George Bernard Shaw, ao perguntar a Lawrence em 1928 "O que é que você pretende realmente?", sugeriu que não eram autênticos nem o seu papel no Exército, nem o fato de ele estar procurando emprego como vigia noturno (para o que podia "conseguir boas referências").
[97] Garnett, op. cit., p. 264.
[98] Letters, em 1930, p. 693.
[99]  /èid.,eml924,p.456.
[100] Ibid., p. 693.
[101]  Lawrence, op. cit., p. 15.
[102] Millin,op. cit., p. 15.

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