quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - o nome do Sr. de Luxemburgo)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

continuando...

     Já que o nome do Sr. de Luxemburgo voltara à baila, a embaixatriz da Turquia contou que o avô da jovem senhora (o que possuía aquela imensa fortuna proveniente das farinhas e das massas), tendo convidado o Sr. de Luxemburgo para almoçar, este recusara o convite mandando escrever no envelope: "Sr. de ***, moleiro", ao que o avô respondera: "Sinto muito que não possa vir, caro amigo, tanto mais que eu poderia desfrutar de sua intimidade, pois estávamos em família e não haveria ao jantar senão o moleiro, seu filho e o senhor." Tal história era não somente odiosa para mim, que sabia da impossibilidade moral que meu caro Sr. de Nassau escrevesse ao avô de sua esposa (do qual, aliás, sabia que seria herdeiro) qualificando-o de "moleiro", mas a estupidez desse relato era evidente mesmo desde as primeiras palavras, pois o apelativo de moleiro era claramente colocado para indicar o título da fábula de La Fontaine [O Moleiro, o Filho e o Burro] Porém existe no faubourg Saint-Germain um pavor tal, quando a malevolência a agrava, que todos acharam que a história era autêntica e que o avô, a quem, sem receio, afirmaram logo tratar-se de pessoa notável, mostrara mais espírito que o marido de sua neta. O duque de Châtellerault quis aproveitar essa história para contar a que eu ouvira no café: "Todo mundo se deitava", mas, logo às primeiras palavras, e quando falou da pretensão do Sr. de Luxemburgo de que, diante de sua mulher, o Sr. de Guermantes se levantasse, a duquesa o fez; protestou: 

- Não, ele é muito ridículo, mas de forma alguma a esse ponto! -

     Intimamente, eu estava persuadido de que todas as histórias relativas ao Sr. de Luxemburgo eram igualmente falsas e que, de cada vez que me encontrasse em presença de um dos atores ou testemunhas, ouviria o mesmo desmentido. Contudo, perguntava a mim mesmo se o desmentido da de Guermantes se devia à preocupação com a verdade ou ao amor-próprio. Em todo caso, este último cedeu ante a malevolência, pois ela acrescentou rindo: 

- De resto, também tive a minha pequena afronta, pois ele me convidou para o chá, desejando me fazer conhecer a grã-duquesa de Luxemburgo; é assim que ele tem o bom gosto de chamar sua esposa, ao escrever à tia. Apresentei-lhe minhas escusas e acrescentei: "Quanto à grã-duquesa de Luxemburgo', entre aspas, diga-lhe que, se quiser visitar-me, estarei em casa depois das cinco todas as quintas-feiras." Sofri mesmo uma segunda afronta. Estando em Luxemburgo, telefonei-lhe para que viesse falar comigo no aparelho. Sua Alteza ia almoçar, acabava de almoçar, duas horas se passaram sem resultado e então empreguei outro meio: "Tenha bondade de dizer ao conde de Nassau que venha me falar?" Ferido no fundo da alma, ele acorreu imediatamente. -

     Todos riram do relato da duquesa e de outros análogos, isto é, estou convencido disso, de mentiras, porque jamais conheci homem tão inteligente, melhor, mais fino; falemos claro, mais requintado do que esse Luxemburgo-Nassau. Adiante veremos que a razão estava comigo. Devo reconhecer que, no meio de todas essas perfídias, a Sra. de Guermantes teve, no entanto, uma frase amável. 

- Ele nem sempre foi assim - disse ela. - Antes de perder a razão, de ser, como nos livros, o homem que se julga transformado em reles, ele não era imbecil e até, nos primeiros tempos de noivado, referia-se a esta de modo bastante simpático, com uma felicidade inesperada: "É um verdadeiro conto de fadas, será necessário que eu faça minha entrada em Luxemburgo numa carruagem de féerie", dizia ele a seu tio d'Ornessan, que lhe respondeu, pois como sabem o Luxemburgo não é muito grande: "Um carruagem de féerie? Temo que não consigas entrar. Aconselho-te antes usar carrinho puxado por cabras." Não só isto não aborreceu Nassau, como foi ele próprio o primeiro a nos contar o caso, rindo. 
- Ornessan tem bastante espírito e a quem puxar: sua mãe é uma, Montjeu. Passa bem mal, o pobre Ornessan.

     Este nome teve a virtude de interromper as maldades sem graça que se desenrolariam ao infinito. De fato, o Sr. de Guermantes explicou que a bisavó do Sr. de d'Ornessan era a irmã de Marie de Castille Montjeu, mulher de Timoléon de Lorraine e, em consequência, tia de Oriane. De forma que a conversação retornou às genealogias, ao passo que a imbecil embaixatriz da Turquia me segredava ao ouvido: 

- O senhor parece estar em muito boas relações com o duque de Guermantes, tenha cuidado. -

     E, como eu lhe pedisse explicações: 

- Quero dizer, o senhor me compreenderá com meia palavra, que é um homem a quem se poderia confiar sem perigo a sua filha, mas não o seu filho. -

     Ora, pelo contrário, se algum homem amou apaixonada e exclusivamente as mulheres, esse foi com certeza o duque de Guermantes. Porém o erro, a antífrase ingenuamente acreditada eram para a embaixatriz como um meio vital, fora do qual não podia movimentar-se. 

- Seu irmão Mémé, que aliás para mim, por outros motivos (ele não a saudava), é profundamente antipático, sente um verdadeiro desgosto pelos costumes do duque. Da mesma forma a sua tia Villeparisis. Ah! Eu a adoro. Eis uma santa mulher, o verdadeiro tipo das grandes damas de outrora. Não é apenas a própria virtude, mas a reserva. Ela ainda diz: "Senhor" ao embaixador Norpois, a quem vê todos os dias e que, entre parênteses, deixou uma excelente lembrança na Turquia.

     Eu nem mesmo respondia à embaixatriz, a fim de ouvir as genealogias. Nem todas eram importantes. Ocorria até que, no correr da conversa, uma das alianças inesperadas de que soube por meio do Sr. de Guermantes, era uma aliança desigual, porém não sem charme, pois, unindo, sob a monarquia de Julho, o duque de Guermantes e o duque de Fezensac às duas deslumbrantes filhas de um ilustre navegador, dava assim às duas duquesas o picante imprevisto de uma graça exoticamente burguesa, luisfilipemente indiana. Ou então, sob Luís XIV, um Norpois se casara com a filha do duque de Mortemart, cujo título ilustre ressaltava, no longínquo dessa época, o nome de Norpois, que eu achava baço e podia julgar recente, nele cinzelando profundamente a beleza de uma medalha. E, aliás, nesses casos não era somente o nome menos conhecido que se beneficiava da aproximação: o outro, tornado banal à força de brilhar, me impressionava mais sob aquele novo aspecto mais obscuro, como, dentre os quadros de uma colorista fulgurante, o mais incisivo é por vezes um retrato todo em negro. A nova mobilidade de que pareciam dotados todos aqueles nomes, vindo colocar-se ao lado de outros de que os pensaria tão distanciados, não decorria unicamente da minha ignorância; essas contradanças que executavam no meu espírito, não a tinham eles realizado menos facilmente naquelas épocas em que um título, estando sempre aderido a uma terra, seguia-a de uma família para outra, de modo que, por exemplo, na bela construção feudal que é o título de duque de Nemours ou do duque de Chevreuse, eu podia descobrir sucessivamente abrigados, como na morada hospitaleira de bernardo-eremita, um Guise, um príncipe da Sabóia, um Orléans, um Luynes. Algumas vezes, vários permaneciam em competição na disputa de uma mesma concha: para o principado de Orange, a família real dos Países-Baixos e os Srs. De Mailly-Nesle; para o ducado de Brabante, o de Charlus e a família real da Bélgica; outros tantos para os títulos do duque de Nápoles, de duque de Parma, de duque de Reggio. Às vezes, cria-se o contrário: a concha estava há tanto tempo desabitada pelos próprios mortos desde muito, que eu nunca me dera conta de que determinar o nome de castelo que pudesse ter sido, numa época enfim bem pouco, a recusa de um nome de família. Assim, como o Sr. de Guermantes respondesse a pergunta do Sr. de Monserfeuil: 

- Não, minha prima era uma realista, era filha do marquês de Féterne, que teve um certo destaque na guerra dos Chouans -

     Eu, ao ver esse nome de Féterne, que para mim, de temporada em Balbec, era um nome de castelo, transformar-se naquilo que jamais sonhara, um nome de família, senti o mesmo espanto que o féerie, em que os torreões e uma escadaria se animam, tornando-se pessimista. Nesta acepção, pode-se dizer que a História, mesmo simplesmente genealógica, dá vida às velhas pedras. Na sociedade parisiense houve homens que ali desempenharam um papel tão considerável, que foram mais citados por sua elegância ou por seu espírito, sendo igualmente de pensamento ilustre, como o duque de Guermantes ou o duque de La Trémb. Caíram hoje no esquecimento, porque, como não tiveram descendentes o nome já não é mais ouvido, ressoa como nome ignorado; quando muito nome de coisa, sob a qual não imaginamos descobrir o nome de homem que sobrevive em algum castelo, em alguma aldeia distante. Num dia não tão longínquo, o viajante que, nos confins da Borgonha, parar na aldeia de Charlus para visitar sua igreja, se não for muito estudioso ou demais apressado para examinar as pedras tumulares, há de ignorar que aquele nome de Charlus foi o de um homem que se igualava aos Maus. Esta reflexão lembrou-me que precisava ir embora e que, enquanto escutava o Sr. de Guermantes falar de genealogia, aproximava-se a hora em que eu tinha um encontro com o seu irmão. Quem sabe, continue a pensar um dia até Guermantes não parecerá outra coisa senão um nome salvo para os arqueólogos por acaso detidos em Combray, e que, diante do vitral de Gilberto, o Mau, terão a paciência de ouvir os discursos do Sr. de Théodore ou de ler o guia do cura. Mas, enquanto um grande não está extinto, mantém em plena luz aqueles que o usaram; e sem dúvida, por um lado, o interesse que oferecia a meus olhos a ilustração famílias era que, partindo de hoje, se pode segui-las, remontando por degrau, até muito além do século XIV e encontrar as Memórias correspondências de todos os ascendentes do Sr. de Charlus, de Agrigento e da princesa de Parma, num passado em que a noite impenetrável cobriria as origens de uma família burguesa, e onde distinguimos, sob a projeção luminosa e retrospectiva de um nome, a origem e a persistência de certas características nervosas, de certos vícios, de desordens de tais ou quais Guermantes. Quase patologicamente idênticos aos de hoje, de século em século eles excitam o interesse alarmado de seus correspondentes, sejam eles anteriores à princesa Palatina e à Sra. de Motteville, ou posteriores ao príncipe de Ligne.
     Aliás, minha curiosidade histórica era frágil em comparação com o prazer estético. Os nomes citados tinham como efeito desencarnar os convidados da duquesa, que, por mais que se chamassem príncipe de Agrigento ou de Cystria, sua máscara de carne e de inteligência comum os transforma em homens quaisquer, de modo que, afinal, eu fora dar comigo no capacho do vestíbulo, não no limiar, como pensara, mas no termo do mundo encantado dos nomes. O próprio príncipe de Agrigento, logo que ouvi que sua mãe era uma Damas, neta do duque de Módena, foi liberado, como de um companheiro químico instável, do rosto e das palavras que o impediam de ser reconhecido, indo formar, com Damas e Módena, que não passavam de títulos, uma combinação infinitamente mais sedutora. Todo nome deslocado pela atração de um outro, com o qual não supunha tivesse qualquer afinidade, deixava o lugar imóvel que ocupava em meu cérebro, onde o hábito o havia deslustrado e, indo juntar-se aos Mortemarts, aos Stuarts ou aos Bourbons, desenhava com eles ramos do mais gracioso efeito e de um colorido cambiante. O próprio nome de Guermantes recebia, de todos os belos nomes extintos e com tanto maior ardor reacendidos, a que eu apenas acabava de saber que estava ligado, uma determinação bem nova, puramente poética. No máximo, na extremidade de cada bojo de estirpe altaneira, podia eu vê-la desabrochar-se em alguma figura de rei sábio ou de princesa ilustre, como o pai de Henrique IV ou a duquesa de Longueville. Mas, como essas faces, diferentes nisto da dos convivas, não estavam, para mim, empastadas de nenhum resíduo de experiência material e de mediocridade mundana, permaneciam, em seu belo desenho e seus reflexos mutáveis, homogêneas a esses nomes, que, a intervalos regulares, cada qual de cor diversa, se destacavam da árvore genealógica de Guermantes e não toldavam de nenhuma matéria estranha e opaca os brotos translúcidos, alternantes e multicores, que, assim como nos antigos vitrais de Jessé os antepassados de Jesus, floresciam de ambos os lados da árvore de vidro.
     Em várias ocasiões eu já quisera retirar-me e, acima de qualquer outro motivo, devido à insignificância que minha presença impunha àquela reunião, contudo uma daquelas que eu imaginara tão bonitas durante tanto tempo, e que sem dúvida o teria sido se não tivesse uma testemunha oportuna. Ao menos a minha partida ia permitir que os convidados, uma que o profano já não se achasse presente, se constituíssem por firm comitê secreto. Iriam poder celebrar os mistérios para cuja comemoração se haviam reunido, pois evidentemente não era para falar de Frans Haia da avareza, e para falar à moda da burguesia. Só diziam ninharias, dúvidas, porque me achava ali, e eu sentia remorsos, ao ver todas essas mulheres separadas, por impedi-las, com minha presença, de levar ao mais precioso de seus salões, a vida misteriosa do faubourg Saint-Germain. Mas essa partida, que a todo instante eu queria efetuar, o Sr. e a Sra Guermantes, levando o sacrifício a ponto de reter-me, adiavam-na. Curioso ainda, diversas damas que tinham vindo apressadas, encantadas, cheias de adornos, consteladas de pedrarias, para, por minha culpa, a ter apenas uma festa que não diferia essencialmente das que se davam no faubourg Saint-Germain, assim como em Balbec não nos sentimos numa cidade que se diferencie da que nossos olhos estão acostumados a ver: várias dessas damas se retiraram, não decepcionadas, como deveriam ter ficado, mas agradecendo efusivamente à Sra. de Guermantes pelo seu delicioso dia que tinham passado, como se nos outros dias, aqueles em que, não comparecera, as coisas não se houvessem passado de outro modo. Seria de fato por causa de jantares como aquele que todas as pessoas se preparavam e recusavam deixar que os burgueses penetrassem nos seus salões tão fechados? Por jantares como esse? Iguais se eu estivesse ausente? Suspeitei disso por um momento, mas era absurdo o simples bom senso me permitia afastar essa hipótese. E depois, se a mim tivesse acolhido, que restaria do nome de Guermantes, já tão degradado em Combray?
     Além disso, aquelas mulheres-flores eram, num grau estranho, de ser contentadas por outra pessoa, ou desejosas de a contentar, por mais de uma, à qual eu não dirigira durante toda a noite mais que duas ou três frases cuja estupidez me fizera enrubescer, fez questão de vir me dizer antes de deixar o salão, e fixando em mim seus belos olhos a acariciar endireitando a grinalda de orquídeas que contornava seu peito, que intenso prazer tivera em conhecer-me, e me falar da alusão velada a um convidado para jantar de seu desejo de "arranjar alguma coisa", depois que tivesse "marcado o dia" com a Sra. de Guermantes. Nenhuma dessas damas partiu antes da princesa de Parma. A presença desta não se deve antes de uma Alteza era uma das duas razões, por mim não adivinhadas, pelas quais a duquesa insistira tanto para que eu ficasse. Quando a Sra. de Parma se ergueu, foi como uma liberação. Todas as senhoras, tinham feito uma genuflexão diante da princesa, que as soergueu; receberam dela num beijo, e como uma bênção que tivessem pedido de joelhos, a permissão de pedir sua capa e chamar os criados. De modo que ocorreu, diante da porta, uma recitação gritada de grandes nomes da História da França. A princesa de Parma tinha proibido à Sra. de Guermantes que descesse para acompanhá-la até o vestíbulo, de medo que ela se resfriasse, e o duque acrescentara:

- Vamos, Oriane, já que Sua Alteza o permite, lembre-se do que lhe disse o médico. 
- Creio que a princesa de Parma ficou muito contente de jantar com o senhor. - 

     Eu conhecia a fórmula. O duque atravessara todo o salão para vir pronunciá-la diante de mim, com ar obsequioso e compenetrado, como se me entregasse um diploma ou oferecesse salgadinhos. E percebi, no prazer que ele parecia experimentar naquele momento e que lhe dava ao rosto, por um instante, uma expressão tão doce, que o gênero de cuidados que aquilo representava para ele era dos que haveria de cumprir até o extremo final da vida, como essas funções honoríficas e cômodas que, mesmo idoso, a gente ainda conserva. No momento em que eu ia partir, a dama de honor da princesa voltou ao salão por ter se esquecido de levar os cravos maravilhosos, vindos de Guermantes, que a duquesa dera à Sra. de Parma. A dama de honor estava muito vermelha, sentia-se que ela fora repreendida, pois a princesa, tão boa com todos, não podia sofrer sua impaciência diante da tolice da sua aia. Assim, esta corria com pressa levando os cravos, mas, para conservar seu aspecto desenvolto e rebelde, falou ao passar por mim: 

- A princesa acha que estou atrasada; queria que fôssemos embora e ainda assim ter os cravos. Diabo! Não sou um passarinho, não posso estar em vários lugares ao mesmo tempo.

     Ai de mim! A razão de não se erguer antes de uma Alteza não era a única. Não pude partir imediatamente porque havia uma outra: era que aquele famoso luxo, desconhecido dos Courvoisiers, que os Guermantes, opulentos ou meio arruinados, distinguiam-se em fazer com que os amigos desfrutassem, não era apenas um luxo material, como eu o experimentara freqüentes vezes com Robert de Saint-Loup, mas igualmente um luxo de palavras encantadoras, de atos gentis, toda uma elegância verbal alimentada por uma verdadeira riqueza interior. Mas, como esta, na ociosidade mundana, permanece desaproveitada, derramava-se às vezes, buscava um derivativo numa espécie de efusão fugidia, tanto mais ansiosa, e que teria podido, da parte da Sra. de Guermantes, fazer acreditar em afeição. Aliás, ela a sentia no momento em que a deixava transbordar, pois achava então, na companhia do amigo ou amiga com quem se encontrava, uma espécie de embriaguez, de modo algum sensual, análoga à que a música empresta à certas pessoas; acontecia-lhe desprender uma flor do corpete, ou um medalhão, e dá-lo a alguém com quem desejaria prolongar o convívio; no entanto, melancolicamente, que tal prolongamento não levaria a vazias conversações e onde nada iria além do prazer nervoso, a emoção passageira, semelhantes aos primeiros ardores da primavera impressão que deixam de lassitude e tristeza. Quanto ao amigo, não iria deixar-se enganar demais pelas promessas, das mais embriagadoras que já ouvira, proferidas por aquelas mulheres que, por sentirem com tanta intensidade a doçura de um instante, fazem deste, com uma delicadeza e nobreza ignoradas das criaturas normais, uma obra-prima comovente graça e de bondade, e nada mais têm a dar de si próprias quando um outro instante chegar. Seu afeto não sobrevive à exaltação que o dita; e a ternura de espírito que então as levara a adivinhar todas as coisas que eles faríamos ouvir e ao dizer lhes permitirá afinal, alguns dias mais perceber nossos ridículos e divertir-se à custa deles com um outro visitante, com o qual estarão desfrutando um desses "momentos musicais” que são tão breves.
     No vestíbulo, onde pedi a um lacaio os meus show-boots, que trouxera por precaução devido à neve e de que haviam caído alguns flocos, desfeitos em lama, não me apercebendo de que era pouco elegante, pelo sorriso desdenhoso de todos, uma vergonha que alcançou seu grau mais elevado quando vi que a Sra. de Parma ainda não se fora e eu estava calçando minhas galochas americanas.
     A princesa veio até mim. 

- Oh, que bela ideia! - exclamou - como é prático! Eis um homem inteligente Senhora, é preciso que compremos isto - disse ela à sua dama de honror, ao passo que a ironia dos lacaios se transmudava em respeito, e os criados se mostravam solícitos a meu redor, a fim de saber onde eu pudera encontrar aquelas maravilhas. 
- Graças a isto, o senhor nada tem a temer mesmo que volte a nevar e o senhor tiver de ir para longe; não há estações - disse a princesa. 
- Oh, sob este aspecto, Vossa Alteza Real pode ficar tranquila - interrompeu a dama de honor com ar astuto -; não vai nevar mais. 
- Que sabe sobre isto, Senhora? - perguntou com azedume excelente de princesa de Parma, a quem a patetice da dama de honor só conseguia irritar. 
- Posso afirmá-lo a Vossa Alteza Real: não pode mais nevar de novo, é materialmente impossível. 
- E por quê? 
- Não pode mais nevar, fizeram o bastante para isso. 

     A ingênua senhora não percebeu a cólera da princesa nem o divertimento das demais pessoas, pois, em vez de se calar, disse-me com um sorriso ameno, sem levar em conta minhas negativas quanto ao almirante Jurien de La Graviere: 

- Aliás, que importa? O senhor deve ter sangue frio. Sangue bom não nega.

     E, tendo acompanhado a princesa de Parma, o Sr. de Guermantes me disse, pegando o meu sobretudo: 

- Vou ajudá-lo a entrar em sua casaca. -

    Já nem sorria ao empregar esta expressão, pois as que são mais comuns, por isso mesmo, devido à afetação de simplicidade dos Guermantes, tornavam-se mais aristocráticas. Uma exaltação, que só levava à melancolia, pois era artificial, foi também o que senti, embora bem diversamente da Sra. de Guermantes, quando enfim saí de sua casa, no carro que ia transportar-me ao palacete do Sr. de Charlus. Podemos nos entregar, à nossa escolha, a uma ou outra das duas forças: uma se ergue de nós mesmos, emana de nossas impressões profundas; a outra nos vem de fora. A primeira traz naturalmente consigo uma alegria, a que provém da vida das criaturas. A outra corrente, a que busca introduzir em nós o movimento com que se agitam as pessoas exteriores, não é acompanhada de prazer; porém podemos acrescentar-lhe um, por repercussão, numa embriaguez tão artificial que se muda rapidamente em tédio e tristeza; daí a fisionomia melancólica de tantos mundanos e, neles, tantos estados nervosos que podem chegar até o suicídio. Ora, no carro que me levava ao Sr. de Charlus, eu me sentia atormentado por esta segunda espécie de exaltação, bem diferente da que nos é dada por uma impressão pessoal, como a que tivera em outros carros: uma vez em Combray, na carriola do Dr. Percepied, de onde avistara desenharem-se contra o poente os campanários de Martinville; um dia, em Balbec, na caleça da Sra. de Villeparisis, procurando desemaranhar a lembrança que me oferecia uma ateia de árvores.
     Porém, nesta terceira viatura, o que eu tinha diante dos olhos do espírito eram aquelas conversas que me haviam parecido tão tediosas no jantar da Sra. de Guermantes, por exemplo, as narrativas do príncipe Von sobre o imperador da Alemanha, sobre o general Botha e o exército inglês. Acabava de fazê-las passar pelo estetoscópio interior, através do qual desde que já não somos nós mesmos, desde que, dotados de uma alma mundana, só queremos receber nossa vida por meio dos outros, realçamos o que nos disseram e fizeram. Como um homem ébrio, cheio de disposições de ternura para com o garçom do café que o serviu, eu me admirava de minha ventura, é verdade que não sentida por mim no próprio instante, de ter jantado com alguém que conhecia tão bem a Guilherme II e sobre quem havia contado anedotas palavras bastante espirituosas. E recordando-me, com o sotaque alemão do príncipe, da história do general Botha, eu ria bem alto, como se esse riso, semelhante a certos aplausos que aumentam a admiração interior, fosse necessário àquela narrativa para lhe corroborar a comicidade. Por trás dos vidros de aumento, até mesmo os juízos da Sra. de Guermantes que me haviam parecido idiotas (por exemplo, sobre os quadros de Frans Hals, de que seria preciso vê-los de um bonde) ganhavam uma vida e uma profundidade extraordinárias. E devo dizer que, se tal exaltação decaía logo, não era absolutamente insensata. Assim como podemos, um belo dia, nos sentir felizes em conhecer a pessoa que desdenhávamos em extremo, porque se achava ligada a uma moça a qual amamos, a quem elas podem nos apresentar, oferecendo-nos desse modo utilidade e satisfação, coisas de que a julgaríamos para sempre destituídas; não há conversas, nem mesmo relações, de que não se possa estar de que não se tirará alguma coisa um dia. O que me dissera a Sra. de Guermantes a respeito dos quadros que seria interessante ver, mesmo de um bonde, era falso, mas continha uma parte de verdade que me foi preciosa depois. Da mesma forma, os versos de Victor Hugo que ela me havia citado eram, é preciso confessá-lo, de uma época anterior àquela em que ele se tornou mais que um homem novo, onde fez aparecer na evolução uma espécie literária ainda desconhecida, dotada de órgãos mais complexos. Naqueles primeiros poemas, Victor Hugo pensa ainda, em vez de se contentar como a Natureza, em fazer pensar. "Pensamentos", ele os expressava entrando sob a forma mais direta, quase no sentido em que o duque empregava as palavra quando, em Guermantes, achando enfadonho e antiquado que os convivas de suas festas de gala fizessem seguir a sua assinatura, no álbum do castelo, de uma reflexão filosófico-poética, advertia os recém-chegados; com um tom suplicante: 

- O seu nome, meu caro, mas nada de pensamentos! -

     Ora, eram estes "pensamentos" de Victor Hugo (quase tão ausentes da Legenda dos séculos como as "árias" e as "melodias" da segunda maneira de Wagner) que a Sra. de Guermantes apreciava no primeiro Victor Hugo. Mas não totalmente sem motivo. Tais pensamentos eram tocantes e já em torno deles, sem que a forma tivesse ainda a profundidade a que deveria atingir bem mais tarde, o fluxo de palavras numerosas e de serem opulentamente articuladas fazia-os inassimiláveis àqueles versos que podem descobrir num Corneille, por exemplo, e onde um romantismo fica emitente contido, e que tanto mais nos emociona, todavia não penetrou às fontes físicas da vida, nem modificou o organismo inconsciente generalizável em que se acolhe a ideia. Assim, procedera eu mal em conformar-me até então às últimas coletâneas de Victor Hugo. Certo, das primeiras era apenas uma parte ínfima que adornava a conversa da Sra. de Guermantes. Mas justamente, citando desse modo um verso isolado, decuplica-se o seu valor atrativo.
     Os que entraram ou tornaram a entrar em minha memória, no decurso daquele jantar, magnetizavam por sua vez, chamavam a si com tal força as peças em que habitualmente se achavam encravados, que minhas mãos, eletrizadas, não puderam resistir mais de quarenta e oito horas à força que as conduzia ao volume em que estavam encadernados As Orientais e Os Cantos do Crepúsculo. Amaldiçoei o lacaio de Françoise por ter doado à sua terra natal o meu exemplar das Folhas de outono, e o mandei comprar outro sem perder um só instante. Reli esses volumes do princípio ao fim, e não encontrei a paz senão quando percebi de súbito, esperando me na luz em que ela os havia banhado, os versos que me citara a Sra. de Guermantes. Por todos esses motivos, as conversas com a duquesa se pareciam a esses conhecimentos adquiridos na biblioteca de um castelo, antiquada, incompleta, incapaz de formar uma inteligência, desprovida de quase tudo de que gostamos, oferecendo-nos entretanto, às vezes, alguma informação curiosa, até mesmo a citação de uma bela página que não conhecíamos, e cujo conhecimento mais tarde nos sentimos felizes ao lembrar que o devemos a uma magnífica casa senhorial. Então, por haver encontrado o prefácio de Balzac à Cartuxa de Parma ou cartas inéditas de Joubert, somos tentados a exagerar o valor da vida que ali passamos e cuja frivolidade estéril esquecemos por esse ganho de uma noite.
     Sob esse ponto de vista, se a alta sociedade não pudera no primeiro momento corresponder ao que minha imaginação esperava, e, por conseguinte, devia chocar-se a princípio pelo que tinha em comum com todas as sociedades, em vez de impressionar-se pelo que possuísse de diferente, revelou-se, no entanto, aos poucos, muito diversa.
     Os grãos-senhores são quase as únicas pessoas de quem se pode aprender tanto como dos camponeses; sua conversação adorna-se de tudo o que concerne à terra, às residências tais como eram habitadas antigamente, aos costumes de outrora, a tudo aquilo que o mundo do dinheiro profundamente desconhece. Supondo que o aristocrata mais moderado em suas aspirações tenha acabado por atingir a época em que vive, sua mãe, seus tios, suas tias-avós o põem em contato, quando ele se recorda de sua infância, com o que poderia ser uma vida quase ignorada atualmente. Na câmara mortuária de um falecido de hoje, a Sra. de Guermantes não teria feito assinalar, mas assinalaria de pronto, todas as infrações feitas aos usos. Sentia-se chocada ao ver, num enterro, mulheres misturadas aos homens, quando há uma cerimônia particular que deve ser celebrada pelas mulheres. No caso do manto, cujo emprego Bloch teria sem dúvida pensado que se limitava aos enterros, por causa dos cordões do manto de que se fala nas relações de guias, o Sr. de Guermantes podia lembrar-se do tempo em que, ainda vira-o ser utilizado no casamento do Sr. de Mailly-Nesle. Enquanto Loup vendera sua preciosa "Árvore genealógica", retratos antigos Bouillon e cartas de Luís XIII para comprar quadros de Carriere e modernstyle, o Sr. e a Sra. de Guermantes, movidos por um sentimento, que o amor ardente pela arte talvez desempenhasse um papel menor tornava a eles próprios mais medíocres, tinham conservado seus maravilhosos móveis de Boulle, que aliás ofereciam um conjunto atraente para artista. Da mesma forma um literato ficaria encantado com sua coroação, que para ele seria pois um faminto não precisa de outro faminto; um dicionário vivo de todas essas expressões que a cada dia mais se acham esquecidas: des cravates à Ia Saint-Joseph, des enfants voués au etc., e que só se encontram entre os que se fazem amáveis e benévolos conservadores do passado. O prazer que um escritor sente entre eles, muito mais do que entre outros escritores, esse prazer não é sem perigo, ele se arrisca a acreditar que as coisas do passado possuem um atrativo por si mesmas e que deve passá-las tais como são para a sua natimorta nesse caso, exalando um tédio do qual ele se consola, dizendo a si próprio: "É lindo porque é verdadeiro; é assim que se diz." Tais conversações aristocráticas, aliás, tinham na casa da Sra. de Guermantes o encanto de serem mantidas em excelente francês. Por isso, tornavam legítima a parte da duquesa, a sua hilaridade diante de termos como "vático", "cósmico", "pítico", "supereminente" que Saint-Loup empregava como ante de seus móveis da casa Bing.

continua na página 245...
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Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - o nome do Sr. de Luxemburgo)
Volume 7

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