em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
continuando...
Já que o nome do Sr. de Luxemburgo voltara à baila, a embaixatriz da Turquia contou que o avô da jovem senhora (o que possuía aquela imensa fortuna proveniente das farinhas e das massas), tendo convidado o Sr. de Luxemburgo para almoçar, este recusara o convite mandando escrever no envelope: "Sr. de ***, moleiro", ao que o avô respondera: "Sinto muito que não possa vir, caro amigo, tanto mais que eu poderia desfrutar de sua intimidade, pois estávamos em família e não haveria ao jantar senão o moleiro, seu filho e o senhor." Tal história era não somente odiosa para mim, que sabia da impossibilidade moral que meu caro Sr. de Nassau escrevesse ao avô de sua esposa (do qual, aliás, sabia que seria herdeiro) qualificando-o de "moleiro", mas a estupidez desse relato era evidente mesmo desde as primeiras palavras, pois o apelativo de moleiro era claramente colocado para indicar o título da fábula de La Fontaine [O Moleiro, o Filho e o Burro] Porém existe no faubourg Saint-Germain um pavor tal, quando a malevolência a agrava, que todos acharam que a história era autêntica e que o avô, a quem, sem receio, afirmaram logo tratar-se de pessoa notável, mostrara mais espírito que o marido de sua neta. O duque de Châtellerault quis aproveitar essa história para contar a que eu ouvira no café: "Todo mundo se deitava", mas, logo às primeiras palavras, e quando falou da pretensão do Sr. de Luxemburgo de que, diante de sua mulher, o Sr. de Guermantes se levantasse, a duquesa o fez; protestou:
- Não, ele é muito ridículo, mas de forma alguma a esse ponto! -
Intimamente, eu estava persuadido de que todas as histórias relativas ao Sr. de
Luxemburgo eram igualmente falsas e que, de cada vez que me encontrasse em presença de um
dos atores ou testemunhas, ouviria o mesmo desmentido. Contudo, perguntava a mim mesmo se
o desmentido da de Guermantes se devia à preocupação com a verdade ou ao amor-próprio. Em
todo caso, este último cedeu ante a malevolência, pois ela acrescentou rindo:
- De resto, também tive a minha pequena afronta, pois ele me convidou para o chá,
desejando me fazer conhecer a grã-duquesa de Luxemburgo; é assim que ele tem o bom gosto
de chamar sua esposa, ao escrever à tia. Apresentei-lhe minhas escusas e acrescentei: "Quanto à
grã-duquesa de Luxemburgo', entre aspas, diga-lhe que, se quiser visitar-me, estarei em casa
depois das cinco todas as quintas-feiras." Sofri mesmo uma segunda afronta. Estando em
Luxemburgo, telefonei-lhe para que viesse falar comigo no aparelho. Sua Alteza ia almoçar,
acabava de almoçar, duas horas se passaram sem resultado e então empreguei outro meio:
"Tenha bondade de dizer ao conde de Nassau que venha me falar?" Ferido no fundo da alma, ele
acorreu imediatamente. -
Todos riram do relato da duquesa e de outros análogos, isto é, estou convencido disso, de
mentiras, porque jamais conheci homem tão inteligente, melhor, mais fino; falemos claro, mais
requintado do que esse Luxemburgo-Nassau. Adiante veremos que a razão estava comigo. Devo
reconhecer que, no meio de todas essas perfídias, a Sra. de Guermantes teve, no entanto, uma
frase amável.
- Ele nem sempre foi assim - disse ela. - Antes de perder a razão, de ser, como nos livros,
o homem que se julga transformado em reles, ele não era imbecil e até, nos primeiros tempos de
noivado, referia-se a esta de modo bastante simpático, com uma felicidade inesperada: "É um
verdadeiro conto de fadas, será necessário que eu faça minha entrada em Luxemburgo numa
carruagem de féerie", dizia ele a seu tio d'Ornessan, que lhe respondeu, pois como sabem o
Luxemburgo não é muito grande: "Um carruagem de féerie? Temo que não consigas entrar.
Aconselho-te antes usar carrinho puxado por cabras." Não só isto não aborreceu Nassau, como
foi ele próprio o primeiro a nos contar o caso, rindo.
- Ornessan tem bastante espírito e a quem puxar: sua mãe é uma, Montjeu. Passa bem
mal, o pobre Ornessan.
Este nome teve a virtude de interromper as maldades sem graça que se desenrolariam ao
infinito. De fato, o Sr. de Guermantes explicou que a bisavó do Sr. de d'Ornessan era a irmã de
Marie de Castille Montjeu, mulher de Timoléon de Lorraine e, em consequência, tia de Oriane. De
forma que a conversação retornou às genealogias, ao passo que a imbecil embaixatriz da Turquia
me segredava ao ouvido:
- O senhor parece estar em muito boas relações com o duque de Guermantes, tenha
cuidado. -
E, como eu lhe pedisse explicações:
- Quero dizer, o senhor me compreenderá com meia palavra, que é um homem a quem se
poderia confiar sem perigo a sua filha, mas não o seu filho. -
Ora, pelo contrário, se algum homem amou apaixonada e exclusivamente as mulheres,
esse foi com certeza o duque de Guermantes. Porém o erro, a antífrase ingenuamente acreditada
eram para a embaixatriz como um meio vital, fora do qual não podia movimentar-se.
- Seu irmão Mémé, que aliás para mim, por outros motivos (ele não a saudava), é
profundamente antipático, sente um verdadeiro desgosto pelos costumes do duque. Da mesma
forma a sua tia Villeparisis. Ah! Eu a adoro. Eis uma santa mulher, o verdadeiro tipo das grandes
damas de outrora. Não é apenas a própria virtude, mas a reserva. Ela ainda diz: "Senhor" ao
embaixador Norpois, a quem vê todos os dias e que, entre parênteses, deixou uma excelente
lembrança na Turquia.
Eu nem mesmo respondia à embaixatriz, a fim de ouvir as genealogias. Nem todas eram
importantes. Ocorria até que, no correr da conversa, uma das alianças inesperadas de que soube
por meio do Sr. de Guermantes, era uma aliança desigual, porém não sem charme, pois, unindo,
sob a monarquia de Julho, o duque de Guermantes e o duque de Fezensac às duas
deslumbrantes filhas de um ilustre navegador, dava assim às duas duquesas o picante imprevisto
de uma graça exoticamente burguesa, luisfilipemente indiana. Ou então, sob Luís XIV, um Norpois
se casara com a filha do duque de Mortemart, cujo título ilustre ressaltava, no longínquo dessa
época, o nome de Norpois, que eu achava baço e podia julgar recente, nele cinzelando
profundamente a beleza de uma medalha. E, aliás, nesses casos não era somente o nome menos
conhecido que se beneficiava da aproximação: o outro, tornado banal à força de brilhar, me
impressionava mais sob aquele novo aspecto mais obscuro, como, dentre os quadros de uma
colorista fulgurante, o mais incisivo é por vezes um retrato todo em negro. A nova mobilidade de
que pareciam dotados todos aqueles nomes, vindo colocar-se ao lado de outros de que os
pensaria tão distanciados, não decorria unicamente da minha ignorância; essas contradanças que
executavam no meu espírito, não a tinham eles realizado menos facilmente naquelas épocas em
que um título, estando sempre aderido a uma terra, seguia-a de uma família para outra, de modo
que, por exemplo, na bela construção feudal que é o título de duque de Nemours ou do duque de
Chevreuse, eu podia descobrir sucessivamente abrigados, como na morada hospitaleira de
bernardo-eremita, um Guise, um príncipe da Sabóia, um Orléans, um Luynes. Algumas vezes,
vários permaneciam em competição na disputa de uma mesma concha: para o principado de
Orange, a família real dos Países-Baixos e os Srs. De Mailly-Nesle; para o ducado de Brabante, o
de Charlus e a família real da Bélgica; outros tantos para os títulos do duque de Nápoles, de
duque de Parma, de duque de Reggio. Às vezes, cria-se o contrário: a concha estava há tanto
tempo desabitada pelos próprios mortos desde muito, que eu nunca me dera conta de que
determinar o nome de castelo que pudesse ter sido, numa época enfim bem pouco, a recusa de
um nome de família. Assim, como o Sr. de Guermantes respondesse a pergunta do Sr. de
Monserfeuil:
- Não, minha prima era uma realista, era filha do marquês de Féterne, que teve um certo
destaque na guerra dos Chouans -
Eu, ao ver esse nome de Féterne, que para mim, de temporada em Balbec, era um nome
de castelo, transformar-se naquilo que jamais sonhara, um nome de família, senti o mesmo
espanto que o féerie, em que os torreões e uma escadaria se animam, tornando-se pessimista.
Nesta acepção, pode-se dizer que a História, mesmo simplesmente genealógica, dá vida às
velhas pedras. Na sociedade parisiense houve homens que ali desempenharam um papel tão
considerável, que foram mais citados por sua elegância ou por seu espírito, sendo igualmente de
pensamento ilustre, como o duque de Guermantes ou o duque de La Trémb. Caíram hoje no
esquecimento, porque, como não tiveram descendentes o nome já não é mais ouvido, ressoa
como nome ignorado; quando muito nome de coisa, sob a qual não imaginamos descobrir o nome
de homem que sobrevive em algum castelo, em alguma aldeia distante. Num dia não tão
longínquo, o viajante que, nos confins da Borgonha, parar na aldeia de Charlus para visitar sua
igreja, se não for muito estudioso ou demais apressado para examinar as pedras tumulares, há de
ignorar que aquele nome de Charlus foi o de um homem que se igualava aos Maus. Esta reflexão
lembrou-me que precisava ir embora e que, enquanto escutava o Sr. de Guermantes falar de
genealogia, aproximava-se a hora em que eu tinha um encontro com o seu irmão. Quem sabe,
continue a pensar um dia até Guermantes não parecerá outra coisa senão um nome salvo para os
arqueólogos por acaso detidos em Combray, e que, diante do vitral de Gilberto, o Mau, terão a
paciência de ouvir os discursos do Sr. de Théodore ou de ler o guia do cura. Mas, enquanto um
grande não está extinto, mantém em plena luz aqueles que o usaram; e sem dúvida, por um lado,
o interesse que oferecia a meus olhos a ilustração famílias era que, partindo de hoje, se pode
segui-las, remontando por degrau, até muito além do século XIV e encontrar as Memórias
correspondências de todos os ascendentes do Sr. de Charlus, de Agrigento e da princesa de
Parma, num passado em que a noite impenetrável cobriria as origens de uma família burguesa, e
onde distinguimos, sob a projeção luminosa e retrospectiva de um nome, a origem e a
persistência de certas características nervosas, de certos vícios, de desordens de tais ou quais
Guermantes. Quase patologicamente idênticos aos de hoje, de século em século eles excitam o
interesse alarmado de seus correspondentes, sejam eles anteriores à princesa Palatina e à Sra.
de Motteville, ou posteriores ao príncipe de Ligne.
Aliás, minha curiosidade histórica era frágil em comparação com o prazer estético. Os
nomes citados tinham como efeito desencarnar os convidados da duquesa, que, por mais que se
chamassem príncipe de Agrigento ou de Cystria, sua máscara de carne e de inteligência comum
os transforma em homens quaisquer, de modo que, afinal, eu fora dar comigo no capacho do
vestíbulo, não no limiar, como pensara, mas no termo do mundo encantado dos nomes. O próprio
príncipe de Agrigento, logo que ouvi que sua mãe era uma Damas, neta do duque de Módena, foi
liberado, como de um companheiro químico instável, do rosto e das palavras que o impediam de
ser reconhecido, indo formar, com Damas e Módena, que não passavam de títulos, uma
combinação infinitamente mais sedutora. Todo nome deslocado pela atração de um outro, com o
qual não supunha tivesse qualquer afinidade, deixava o lugar imóvel que ocupava em meu
cérebro, onde o hábito o havia deslustrado e, indo juntar-se aos Mortemarts, aos Stuarts ou aos
Bourbons, desenhava com eles ramos do mais gracioso efeito e de um colorido cambiante. O
próprio nome de Guermantes recebia, de todos os belos nomes extintos e com tanto maior ardor
reacendidos, a que eu apenas acabava de saber que estava ligado, uma determinação bem nova,
puramente poética. No máximo, na extremidade de cada bojo de estirpe altaneira, podia eu vê-la
desabrochar-se em alguma figura de rei sábio ou de princesa ilustre, como o pai de Henrique IV
ou a duquesa de Longueville. Mas, como essas faces, diferentes nisto da dos convivas, não
estavam, para mim, empastadas de nenhum resíduo de experiência material e de mediocridade
mundana, permaneciam, em seu belo desenho e seus reflexos mutáveis, homogêneas a esses
nomes, que, a intervalos regulares, cada qual de cor diversa, se destacavam da árvore
genealógica de Guermantes e não toldavam de nenhuma matéria estranha e opaca os brotos
translúcidos, alternantes e multicores, que, assim como nos antigos vitrais de Jessé os
antepassados de Jesus, floresciam de ambos os lados da árvore de vidro.
Em várias ocasiões eu já quisera retirar-me e, acima de qualquer outro motivo, devido à
insignificância que minha presença impunha àquela reunião, contudo uma daquelas que eu
imaginara tão bonitas durante tanto tempo, e que sem dúvida o teria sido se não tivesse uma
testemunha oportuna. Ao menos a minha partida ia permitir que os convidados, uma que o
profano já não se achasse presente, se constituíssem por firm comitê secreto. Iriam poder
celebrar os mistérios para cuja comemoração se haviam reunido, pois evidentemente não era
para falar de Frans Haia da avareza, e para falar à moda da burguesia. Só diziam ninharias,
dúvidas, porque me achava ali, e eu sentia remorsos, ao ver todas essas mulheres separadas, por
impedi-las, com minha presença, de levar ao mais precioso de seus salões, a vida misteriosa do
faubourg Saint-Germain. Mas essa partida, que a todo instante eu queria efetuar, o Sr. e a Sra
Guermantes, levando o sacrifício a ponto de reter-me, adiavam-na. Curioso ainda, diversas damas
que tinham vindo apressadas, encantadas, cheias de adornos, consteladas de pedrarias, para,
por minha culpa, a ter apenas uma festa que não diferia essencialmente das que se davam no
faubourg Saint-Germain, assim como em Balbec não nos sentimos numa cidade que se diferencie
da que nossos olhos estão acostumados a ver: várias dessas damas se retiraram, não
decepcionadas, como deveriam ter ficado, mas agradecendo efusivamente à Sra. de Guermantes
pelo seu delicioso dia que tinham passado, como se nos outros dias, aqueles em que, não
comparecera, as coisas não se houvessem passado de outro modo. Seria de fato por causa de
jantares como aquele que todas as pessoas se preparavam e recusavam deixar que os burgueses
penetrassem nos seus salões tão fechados? Por jantares como esse? Iguais se eu estivesse
ausente? Suspeitei disso por um momento, mas era absurdo o simples bom senso me permitia
afastar essa hipótese. E depois, se a mim tivesse acolhido, que restaria do nome de Guermantes,
já tão degradado em Combray?
Além disso, aquelas mulheres-flores eram, num grau estranho, de ser contentadas por
outra pessoa, ou desejosas de a contentar, por mais de uma, à qual eu não dirigira durante toda a
noite mais que duas ou três frases cuja estupidez me fizera enrubescer, fez questão de vir me
dizer antes de deixar o salão, e fixando em mim seus belos olhos a acariciar endireitando a
grinalda de orquídeas que contornava seu peito, que intenso prazer tivera em conhecer-me, e me
falar da alusão velada a um convidado para jantar de seu desejo de "arranjar alguma coisa",
depois que tivesse "marcado o dia" com a Sra. de Guermantes. Nenhuma dessas damas partiu
antes da princesa de Parma. A presença desta não se deve antes de uma Alteza era uma das
duas razões, por mim não adivinhadas, pelas quais a duquesa insistira tanto para que eu ficasse.
Quando a Sra. de Parma se ergueu, foi como uma liberação. Todas as senhoras, tinham feito uma
genuflexão diante da princesa, que as soergueu; receberam dela num beijo, e como uma bênção
que tivessem pedido de joelhos, a permissão de pedir sua capa e chamar os criados. De modo
que ocorreu, diante da porta, uma recitação gritada de grandes nomes da História da França. A
princesa de Parma tinha proibido à Sra. de Guermantes que descesse para acompanhá-la até o
vestíbulo, de medo que ela se resfriasse, e o duque acrescentara:
- Vamos, Oriane, já que Sua Alteza o permite, lembre-se do que lhe disse o médico.
- Creio que a princesa de Parma ficou muito contente de jantar com o senhor. -
Eu conhecia a fórmula. O duque atravessara todo o salão para vir pronunciá-la diante de
mim, com ar obsequioso e compenetrado, como se me entregasse um diploma ou oferecesse
salgadinhos. E percebi, no prazer que ele parecia experimentar naquele momento e que lhe dava
ao rosto, por um instante, uma expressão tão doce, que o gênero de cuidados que aquilo
representava para ele era dos que haveria de cumprir até o extremo final da vida, como essas
funções honoríficas e cômodas que, mesmo idoso, a gente ainda conserva. No momento em que
eu ia partir, a dama de honor da princesa voltou ao salão por ter se esquecido de levar os cravos
maravilhosos, vindos de Guermantes, que a duquesa dera à Sra. de Parma. A dama de honor
estava muito vermelha, sentia-se que ela fora repreendida, pois a princesa, tão boa com todos,
não podia sofrer sua impaciência diante da tolice da sua aia. Assim, esta corria com pressa
levando os cravos, mas, para conservar seu aspecto desenvolto e rebelde, falou ao passar por
mim:
- A princesa acha que estou atrasada; queria que fôssemos embora e ainda assim ter os
cravos. Diabo! Não sou um passarinho, não posso estar em vários lugares ao mesmo tempo.
Ai de mim! A razão de não se erguer antes de uma Alteza não era a única. Não pude partir
imediatamente porque havia uma outra: era que aquele famoso luxo, desconhecido dos
Courvoisiers, que os Guermantes, opulentos ou meio arruinados, distinguiam-se em fazer com
que os amigos desfrutassem, não era apenas um luxo material, como eu o experimentara
freqüentes vezes com Robert de Saint-Loup, mas igualmente um luxo de palavras encantadoras,
de atos gentis, toda uma elegância verbal alimentada por uma verdadeira riqueza interior. Mas,
como esta, na ociosidade mundana, permanece desaproveitada, derramava-se às vezes, buscava
um derivativo numa espécie de efusão fugidia, tanto mais ansiosa, e que teria podido, da parte da
Sra. de Guermantes, fazer acreditar em afeição. Aliás, ela a sentia no momento em que a deixava
transbordar, pois achava então, na companhia do amigo ou amiga com quem se encontrava, uma
espécie de embriaguez, de modo algum sensual, análoga à que a música empresta à certas
pessoas; acontecia-lhe desprender uma flor do corpete, ou um medalhão, e dá-lo a alguém com
quem desejaria prolongar o convívio; no entanto, melancolicamente, que tal prolongamento não
levaria a vazias conversações e onde nada iria além do prazer nervoso, a emoção passageira,
semelhantes aos primeiros ardores da primavera impressão que deixam de lassitude e tristeza.
Quanto ao amigo, não iria deixar-se enganar demais pelas promessas, das mais embriagadoras
que já ouvira, proferidas por aquelas mulheres que, por sentirem com tanta intensidade a doçura
de um instante, fazem deste, com uma delicadeza e nobreza ignoradas das criaturas normais,
uma obra-prima comovente graça e de bondade, e nada mais têm a dar de si próprias quando um
outro instante chegar. Seu afeto não sobrevive à exaltação que o dita; e a ternura de espírito que
então as levara a adivinhar todas as coisas que eles faríamos ouvir e ao dizer lhes permitirá afinal,
alguns dias mais perceber nossos ridículos e divertir-se à custa deles com um outro visitante, com
o qual estarão desfrutando um desses "momentos musicais” que são tão breves.
No vestíbulo, onde pedi a um lacaio os meus show-boots, que trouxera por precaução
devido à neve e de que haviam caído alguns flocos, desfeitos em lama, não me apercebendo de
que era pouco elegante, pelo sorriso desdenhoso de todos, uma vergonha que alcançou seu grau
mais elevado quando vi que a Sra. de Parma ainda não se fora e eu estava calçando minhas
galochas americanas.
A princesa veio até mim.
- Oh, que bela ideia! - exclamou - como é prático! Eis um homem inteligente Senhora, é
preciso que compremos isto - disse ela à sua dama de honror, ao passo que a ironia dos lacaios
se transmudava em respeito, e os criados se mostravam solícitos a meu redor, a fim de saber
onde eu pudera encontrar aquelas maravilhas.
- Graças a isto, o senhor nada tem a temer mesmo que volte a nevar e o senhor tiver de ir
para longe; não há estações - disse a princesa.
- Oh, sob este aspecto, Vossa Alteza Real pode ficar tranquila - interrompeu a dama de
honor com ar astuto -; não vai nevar mais.
- Que sabe sobre isto, Senhora? - perguntou com azedume excelente de princesa de
Parma, a quem a patetice da dama de honor só conseguia irritar.
- Posso afirmá-lo a Vossa Alteza Real: não pode mais nevar de novo, é materialmente
impossível.
- E por quê?
- Não pode mais nevar, fizeram o bastante para isso.
A ingênua senhora não percebeu a cólera da princesa nem o divertimento das demais
pessoas, pois, em vez de se calar, disse-me com um sorriso ameno, sem levar em conta minhas
negativas quanto ao almirante Jurien de La Graviere:
- Aliás, que importa? O senhor deve ter sangue frio. Sangue bom não nega.
E, tendo acompanhado a princesa de Parma, o Sr. de Guermantes me disse, pegando o
meu sobretudo:
- Vou ajudá-lo a entrar em sua casaca. -
Já nem sorria ao empregar esta expressão, pois as que são mais comuns, por isso
mesmo, devido à afetação de simplicidade dos Guermantes, tornavam-se mais aristocráticas.
Uma exaltação, que só levava à melancolia, pois era artificial, foi também o que senti, embora
bem diversamente da Sra. de Guermantes, quando enfim saí de sua casa, no carro que ia
transportar-me ao palacete do Sr. de Charlus. Podemos nos entregar, à nossa escolha, a uma ou
outra das duas forças: uma se ergue de nós mesmos, emana de nossas impressões profundas; a
outra nos vem de fora. A primeira traz naturalmente consigo uma alegria, a que provém da vida
das criaturas. A outra corrente, a que busca introduzir em nós o movimento com que se agitam as
pessoas exteriores, não é acompanhada de prazer; porém podemos acrescentar-lhe um, por
repercussão, numa embriaguez tão artificial que se muda rapidamente em tédio e tristeza; daí a
fisionomia melancólica de tantos mundanos e, neles, tantos estados nervosos que podem chegar
até o suicídio. Ora, no carro que me levava ao Sr. de Charlus, eu me sentia atormentado por esta
segunda espécie de exaltação, bem diferente da que nos é dada por uma impressão pessoal,
como a que tivera em outros carros: uma vez em Combray, na carriola do Dr. Percepied, de onde
avistara desenharem-se contra o poente os campanários de Martinville; um dia, em Balbec, na
caleça da Sra. de Villeparisis, procurando desemaranhar a lembrança que me oferecia uma ateia
de árvores.
Porém, nesta terceira viatura, o que eu tinha diante dos olhos do espírito eram aquelas
conversas que me haviam parecido tão tediosas no jantar da Sra. de Guermantes, por exemplo,
as narrativas do príncipe Von sobre o imperador da Alemanha, sobre o general Botha e o exército
inglês. Acabava de fazê-las passar pelo estetoscópio interior, através do qual desde que já não
somos nós mesmos, desde que, dotados de uma alma mundana, só queremos receber nossa vida
por meio dos outros, realçamos o que nos disseram e fizeram. Como um homem ébrio, cheio de
disposições de ternura para com o garçom do café que o serviu, eu me admirava de minha
ventura, é verdade que não sentida por mim no próprio instante, de ter jantado com alguém que
conhecia tão bem a Guilherme II e sobre quem havia contado anedotas palavras bastante
espirituosas. E recordando-me, com o sotaque alemão do príncipe, da história do general Botha,
eu ria bem alto, como se esse riso, semelhante a certos aplausos que aumentam a admiração
interior, fosse necessário àquela narrativa para lhe corroborar a comicidade. Por trás dos vidros de
aumento, até mesmo os juízos da Sra. de Guermantes que me haviam parecido idiotas (por
exemplo, sobre os quadros de Frans Hals, de que seria preciso vê-los de um bonde) ganhavam
uma vida e uma profundidade extraordinárias. E devo dizer que, se tal exaltação decaía logo, não
era absolutamente insensata. Assim como podemos, um belo dia, nos sentir felizes em conhecer
a pessoa que desdenhávamos em extremo, porque se achava ligada a uma moça a qual amamos,
a quem elas podem nos apresentar, oferecendo-nos desse modo utilidade e satisfação, coisas de
que a julgaríamos para sempre destituídas; não há conversas, nem mesmo relações, de que não
se possa estar de que não se tirará alguma coisa um dia. O que me dissera a Sra. de Guermantes
a respeito dos quadros que seria interessante ver, mesmo de um bonde, era falso, mas continha
uma parte de verdade que me foi preciosa depois. Da mesma forma, os versos de Victor Hugo
que ela me havia citado eram, é preciso confessá-lo, de uma época anterior àquela em que ele se
tornou mais que um homem novo, onde fez aparecer na evolução uma espécie literária ainda
desconhecida, dotada de órgãos mais complexos. Naqueles primeiros poemas, Victor Hugo pensa
ainda, em vez de se contentar como a Natureza, em fazer pensar. "Pensamentos", ele os
expressava entrando sob a forma mais direta, quase no sentido em que o duque empregava as
palavra quando, em Guermantes, achando enfadonho e antiquado que os convivas de suas festas
de gala fizessem seguir a sua assinatura, no álbum do castelo, de uma reflexão filosófico-poética,
advertia os recém-chegados; com um tom suplicante:
- O seu nome, meu caro, mas nada de pensamentos! -
Ora, eram estes "pensamentos" de Victor Hugo (quase tão ausentes da Legenda dos
séculos como as "árias" e as "melodias" da segunda maneira de Wagner) que a Sra. de
Guermantes apreciava no primeiro Victor Hugo. Mas não totalmente sem motivo. Tais
pensamentos eram tocantes e já em torno deles, sem que a forma tivesse ainda a profundidade a
que deveria atingir bem mais tarde, o fluxo de palavras numerosas e de serem opulentamente
articuladas fazia-os inassimiláveis àqueles versos que podem descobrir num Corneille, por
exemplo, e onde um romantismo fica emitente contido, e que tanto mais nos emociona, todavia
não penetrou às fontes físicas da vida, nem modificou o organismo inconsciente generalizável em
que se acolhe a ideia. Assim, procedera eu mal em conformar-me até então às últimas coletâneas
de Victor Hugo. Certo, das primeiras era apenas uma parte ínfima que adornava a conversa da
Sra. de Guermantes. Mas justamente, citando desse modo um verso isolado, decuplica-se o seu
valor atrativo.
Os que entraram ou tornaram a entrar em minha memória, no decurso daquele jantar,
magnetizavam por sua vez, chamavam a si com tal força as peças em que habitualmente se
achavam encravados, que minhas mãos, eletrizadas, não puderam resistir mais de quarenta e oito
horas à força que as conduzia ao volume em que estavam encadernados As Orientais e Os
Cantos do Crepúsculo. Amaldiçoei o lacaio de Françoise por ter doado à sua terra natal o meu
exemplar das Folhas de outono, e o mandei comprar outro sem perder um só instante. Reli esses
volumes do princípio ao fim, e não encontrei a paz senão quando percebi de súbito, esperando
me na luz em que ela os havia banhado, os versos que me citara a Sra. de Guermantes. Por
todos esses motivos, as conversas com a duquesa se pareciam a esses conhecimentos
adquiridos na biblioteca de um castelo, antiquada, incompleta, incapaz de formar uma inteligência,
desprovida de quase tudo de que gostamos, oferecendo-nos entretanto, às vezes, alguma
informação curiosa, até mesmo a citação de uma bela página que não conhecíamos, e cujo
conhecimento mais tarde nos sentimos felizes ao lembrar que o devemos a uma magnífica casa
senhorial. Então, por haver encontrado o prefácio de Balzac à Cartuxa de Parma ou cartas
inéditas de Joubert, somos tentados a exagerar o valor da vida que ali passamos e cuja frivolidade
estéril esquecemos por esse ganho de uma noite.
Sob esse ponto de vista, se a alta sociedade não pudera no primeiro momento
corresponder ao que minha imaginação esperava, e, por conseguinte, devia chocar-se a princípio
pelo que tinha em comum com todas as sociedades, em vez de impressionar-se pelo que
possuísse de diferente, revelou-se, no entanto, aos poucos, muito diversa.
Os grãos-senhores são quase as únicas pessoas de quem se pode aprender tanto como
dos camponeses; sua conversação adorna-se de tudo o que concerne à terra, às residências tais
como eram habitadas antigamente, aos costumes de outrora, a tudo aquilo que o mundo do
dinheiro profundamente desconhece. Supondo que o aristocrata mais moderado em suas
aspirações tenha acabado por atingir a época em que vive, sua mãe, seus tios, suas tias-avós o
põem em contato, quando ele se recorda de sua infância, com o que poderia ser uma vida quase
ignorada atualmente. Na câmara mortuária de um falecido de hoje, a Sra. de Guermantes não
teria feito assinalar, mas assinalaria de pronto, todas as infrações feitas aos usos. Sentia-se
chocada ao ver, num enterro, mulheres misturadas aos homens, quando há uma cerimônia
particular que deve ser celebrada pelas mulheres. No caso do manto, cujo emprego Bloch teria
sem dúvida pensado que se limitava aos enterros, por causa dos cordões do manto de que se fala
nas relações de guias, o Sr. de Guermantes podia lembrar-se do tempo em que, ainda vira-o ser
utilizado no casamento do Sr. de Mailly-Nesle. Enquanto Loup vendera sua preciosa "Árvore
genealógica", retratos antigos Bouillon e cartas de Luís XIII para comprar quadros de Carriere e
modernstyle, o Sr. e a Sra. de Guermantes, movidos por um sentimento, que o amor ardente pela
arte talvez desempenhasse um papel menor tornava a eles próprios mais medíocres, tinham
conservado seus maravilhosos móveis de Boulle, que aliás ofereciam um conjunto atraente para
artista. Da mesma forma um literato ficaria encantado com sua coroação, que para ele seria pois
um faminto não precisa de outro faminto; um dicionário vivo de todas essas expressões que a
cada dia mais se acham esquecidas: des cravates à Ia Saint-Joseph, des enfants voués au etc., e
que só se encontram entre os que se fazem amáveis e benévolos conservadores do passado. O
prazer que um escritor sente entre eles, muito mais do que entre outros escritores, esse prazer
não é sem perigo, ele se arrisca a acreditar que as coisas do passado possuem um atrativo por si
mesmas e que deve passá-las tais como são para a sua natimorta nesse caso, exalando um tédio
do qual ele se consola, dizendo a si próprio: "É lindo porque é verdadeiro; é assim que se diz."
Tais conversações aristocráticas, aliás, tinham na casa da Sra. de Guermantes o encanto de
serem mantidas em excelente francês. Por isso, tornavam legítima a parte da duquesa, a sua
hilaridade diante de termos como "vático", "cósmico", "pítico", "supereminente" que Saint-Loup
empregava como ante de seus móveis da casa Bing.
continua na página 245...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - o nome do Sr. de Luxemburgo)
Volume 7
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