PRIMEIRA PARTE
Febre do ouro, febre da prata
2. Retornavam os Deuses com as Armas Secretas
Em sua passagem por Tenerife, durante sua primeira viagem, Colombo presenciara uma erupção vulcânica. Foi como um presságio de tudo o que viria depois nas imensas terras novas que iam interromper a rota ocidental para a Ásia. A América estava ali, adivinhada desde suas costas infinitas: a conquista se estendeu em vagalhões, qual maré furiosa. Os chefes militares substituíam os almirantes, e as tripulações se transformavam em hostes invasoras. As bulas do Papa tinham feito apostólica concessão da África para a coroa de Portugal, outorgando à coroa de Castela as terras “desconhecidas como aquelas até aqui descobertas por vossos enviados e aqueloutras que se descobrirão no futuro (...)”: a América tinha sido doada à rainha Isabel. Em 1508, uma nova bula concedeu à coroa espanhola, perpetuamente, todos os dízimos arrecadados na América: o cobiçado patronato universal sobre a Igreja do Novo Mundo incluía o direito real de auferir todos os benefícios eclesiásticos. [1]
O Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494, permitiu a
Portugal a ocupação de territórios americanos além da linha
divisória traçada pelo Papa, e em 1530 Martim Afonso de
Souza fundou as primeiras povoações portuguesas no
Brasil, expulsando os franceses. Já então os espanhóis,
cruzando selvas infernais e desertos infinitos, tinham
avançado bastante no processo da exploração e da
conquista. Em 1513, o Pacífico resplandecia aos olhos de
Vasco Nunes de Balboa; no outono de 1522, retornavam à
Espanha os sobreviventes da expedição de Fernão de
Magalhães, que uniram pela primeira vez os dois oceanos e,
ao dar uma volta completa no mundo, constataram que ele
era redondo; três anos antes tinham partido da ilha de
Cuba, na direção do México, as dez naus de Hernán Cortez,
e em 1523 Pedro de Alvarado lançou-se à conquista da
América Central; Francisco Pizarro entrou triunfalmente em
Cuzco em 1533, apoderando-se do coração do império dos
incas; em 1540, Pedro de Valdivia atravessava o deserto de
Atacama e fundava Santiago do Chile. Os conquistadores
penetravam no Chaco e revelavam o Novo Mundo desde o
Peru até a foz do rio mais caudaloso do planeta.
Havia de tudo entre os indígenas da América:
astrônomos e canibais, engenheiros e selvagens da Idade
da Pedra. Mas nenhuma das culturas nativas conhecia o
ferro e o arado, o vidro e a pólvora, e tampouco empregava
a roda. A civilização que se abateu sobre estas terras,
vindas do outro lado do mar, vivia a explosão criadora do
Renascimento: a América surgia como uma invenção a
mais, incorporada junto com a pólvora, a imprensa, o papel
e a bússola ao agitado nascimento da Idade Moderna. O
desnível de desenvolvimento dos dois mundos explica em
grande parte a relativa facilidade com que sucumbiram as
civilizações nativas. Hernán Cortez desembarcou em
Veracruz acompanhado de não mais de 100 marinheiros e
508 soldados; trazia 16 cavalos, 32 bestas, dez canhões de
bronze e alguns arcabuzes, mosquetes e pistolas. No
entanto, a capital dos astecas, Tenochtitlán, era então cinco
vezes maior do que Madri e dobrava a população de
Sevilha, a maior das cidades espanholas. Francisco Pizarro
entrou em Cajamarca com 180 soldados e 37 cavalos.
Os indígenas, no começo, foram derrotados pelo
assombro. O imperador Montezuma, em seu palácio,
recebeu as primeiras notícias: uma montanha andava a
movimentar-se no mar. Depois chegaram outros
mensageiros: “(...) muito espanto lhe causou ouvir o tiro do
canhão, como retumba seu estrépito e leva as pessoas a
desmaiarem, com os ouvidos atordoados. Quando acontece
o tiro, uma bola de pedra salta de suas entranhas: sai
chovendo fogo (...)”. Os estrangeiros traziam “veados” para
montar e, montados, ficavam “tão no alto como os tetos”.
Traziam o corpo coberto, “aparecem só as caras. São
brancas, como se fossem de cal. Têm o cabelo amarelo,
embora alguns o tenham preto. A barba deles é grande
(...)”
[2]. Montezuma acreditou que era o deus Quetzalcóatl
que voltava. Pouco antes, oito presságios tinham anunciado
esse retorno. Os caçadores lhe haviam trazido uma ave que
possuía na cabeça um diadema redondo, com a forma de
um espelho, que refletia o céu com o sol já no poente.
Nesse espelho Montezuma viu marchar sobre o México os
esquadrões de guerreiros. O deus Quetzalcóatl viera pelo
leste, e pelo leste tinha ido embora: era branco e barbado.
Também branco e barbado era Viracocha, o deus bissexual
dos incas. E o leste era o berço dos antepassados heroicos
dos maias.
[3]
Os deuses vingativos que agora regressavam para
acertar contas com seus povos traziam armaduras e cotas
de malha, reluzentes escudos que devolviam os dardos e as
pedras; suas armas expediam raios mortíferos e
obscureciam a atmosfera com fumaças irrespiráveis. Os
conquistadores praticavam também, com habilidade
política, a técnica da traição e da intriga. Souberam
explorar, por exemplo, o rancor dos povos submetidos ao
domínio imperial dos astecas e as divisões que
fragmentavam o poder dos incas. Os tlaxcaltecas foram
aliados de Cortez, e Pizarro usou em seu proveito a guerra
entre os herdeiros do império incaico, os irmãos inimigos
Huáscar e Atahualpa. Os conquistadores granjearam
cúmplices entre as classes dominantes intermediárias,
sacerdotes, funcionários, militares, uma vez abatidas,
criminosamente, as chefias indígenas mais altas. Mas
também usaram outras armas ou, se preferirmos, outros
fatores trabalharam objetivamente para a vitória dos
invasores. Os cavalos e as bactérias, por exemplo.
Os cavalos, como os camelos, eram originários da
América
[4], mas se extinguiram nestas terras. Introduzidos
na Europa pelos cavaleiros árabes, tiveram no Velho Mundo
imensa serventia militar e econômica. Ao reaparecerem na
América, através da conquista, colaboraram para a
atribuição de forças mágicas aos invasores ante os olhos
atônitos dos indígenas. Segundo uma versão, o inca
Atahualpa caiu de costas quando viu chegar os primeiros
soldados espanhóis, montados em briosos cavalos ornados
de guizos e penachos que corriam desencadeando tropéis e
polvadeira
[5]. O cacique Tecum, à frente dos herdeiros dos
maias, decapitou o cavalo de Pedro de Alvarado, convencido
de que fazia parte do conquistador: Alvarado se ergueu e o
matou
[6]. Escassos cavalos, cobertos de arreios de guerra,
dispersaram as massas indígenas e semearam o terror e a
morte. “Os padres e os missionários espalharam na fantasia
vernácula”, durante o processo colonizador, “que os cavalos
eram de origem sagrada, já que Santiago, o padroeiro da
Espanha, montando um potro branco, vencera importantes
batalhas contra mouros e judeus, com a ajuda da Divina
Providência”.
[7]
Bactérias e vírus foram os aliados mais eficazes. Os
europeus traziam, como pragas bíblicas, a varíola e o
tétano, várias enfermidades pulmonares, intestinais e
venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as
cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a
aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela
epidemia desconhecida e repugnante que provocava a febre
e descompunha a carne? “Lá foram se meter em Tlaxcala”,
narra um testemunho indígena, “então se espalhou a
epidemia: tosse, grãos ardentes, que queimam”. E outro: “A
muitos deu morte a pegajosa, pesada, dura doença dos
grãos”
[8].
organismos
Os índios morriam como moscas; seus
não
opunham resistência às novas
enfermidades, e os que sobreviviam ficavam debilitados e
inúteis. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro estima que
mais de metade da população aborígine da América,
Austrália e ilhas oceânicas morreu contaminada logo ao
primeiro contato com os homens brancos
[9].
continua na página...36
____________________
____________________
Primeira Parte: Retornavam os Deuses com as Armas Secretas[2]
____________________
[1] VÁZQUEZ FRANCO, Guillermo. La conquista justificada. Montevideo, 1968, e
ELLIOTT, op. cit.
[2] Segundo os informantes indígenas de frei Bernardino de Sahagún, no Códice
Florentino. LEÓN-PORTILLA, Miguel. Visión de los vencidos. México, 1967.
[3] Essas assombrosas coincidências estimulam a hipótese de que, na verdade,
os deuses das religiões indígenas tinham sido europeus chegados a essas terras
muito antes de Colombo. PINEDA YÁÑEZ, Rafael. La isla y Colón. Buenos Aires,
1955.
[4] HAWKES, Jacquetta. Prehistoria. In: Historia de la humanidad. Buenos Aires:
UNESCO, 1966.
[5] LEÓN-PORTILLA, Miguel. El reverso de la conquista. Relaciones aztecas,
mayas e incas. México, 1964.
[6] LEÓN-PORTILLA, op.cit.
[7] OTERO, Gustavo Adolfo. Vida social en el coloniaje. La Paz, 1958.
[8] “Autores anônimos de Tlatelolco e informantes de Sahagún”, em LEÓN
PORTILLA, op. cit.
[9] RIBEIRO, Darcy. Las Américas y la civilización, tomo I: La civilización occidental y nosotros. Los pueblos testimonio. Buenos Aires, 1969.
Nenhum comentário:
Postar um comentário