terça-feira, 16 de setembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (3.2 - Ouro e Raça)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

3. Raça e Burocracia
     3.2 - Ouro e Raça
          As jazidas de diamantes de Kimberley e as minas de ouro do Witwaters-rand estavam por acaso localizadas nesse fantasmagórico mundo. Aquela terra, a cujo largo passaram indiferentes centenas de navios de emigrantes com destino à Nova Zelândia e à Austrália, "via agora um turbilhão de recém-chegados, que partiam apressados terra a dentro em direção às minas. A maioria vinha da Inglaterra, mas entre eles havia gente de Riga e Kiev, Hamburgo e Frankfurt, Rotterdam e San Francisco".[31] Todos pertenciam a "um tipo de pessoas que prefere a aventura e a especulação à indústria organizada e não se dá bem com as limitações da vida comum. (...) [Havia] escavadores da América e da Austrália, especuladores alemães, comerciantes, taberneiros, jogadores profissionais, advogados (...), ex-oficiais do Exército e da Marinha, rapazotes filhos de boas famílias (...), um maravilhoso conjunto heterogêneo, onde o dinheiro corria como água graças à espantosa produtividade das minas". A essa gente uniam-se milhares de nativos que a princípio vinham para "roubar diamantes e gastar seus lucros em rifles e pólvora",[32] mas que logo começaram a trabalhar por um salário e se transformaram em fonte de mão-de-obra barata, aparentemente inesgotável, quando a "mais estagnada das regiões explodiu subitamente em atividade".[33]
     A abundância de nativos, ou seja, da mão-de-obra barata, foi a primeira e talvez a mais importante diferença entre esta corrida do ouro e as outras. Logo tornou-se claro que a ralé dos quatro cantos da terra não teria nem de cavar; de qualquer forma, a atração permanente da África do Sul, o recurso que seduziu os aventureiros a ali ficarem permanentemente, não foi o ouro, mas sim essa matéria-prima humana que prenunciava uma vida para sempre livre de trabalho.[34] Os europeus serviam apenas como supervisores, e nem ao menos tentaram produzir engenheiros e operários qualificados, que tinham de ser constantemente importados da Europa.
     Essa corrida do ouro não se processava ao acaso. Através da riqueza supérflua acumulada e com o auxílio de financistas, principalmente judeus, a corrida era financiada, organizada e ligada à economia europeia. Desde o início, "os mercadores judeus, quase uma centena, reunidos como águias sobre a presa",[35] agiram como intermediários entre o capital europeu investido e as indústrias de mineração de ouro e diamantes.
     A única parte da população da África do Sul que não compartilhava nem queria compartilhar as atividades do país em súbita explosão econômica eram os próprios bôeres. Detestavam todos aqueles uitlanders (forasteiros), que não pretendiam tornar-se cidadãos, mas que necessitavam da proteção britânica e a obtinham, desse modo fortalecendo a influência do governo britânico no Cabo. Os bôeres reagiram como sempre haviam reagido: venderam as suas terras abarrotadas de diamantes em Kimberley e as suas fazendas cheias de minas de ouro perto de Johannesburgo, e novamente se foram de carro de boi pelo sertão adentro. Não compreenderam que aquela nova invasão era diferente do influxo de missionários britânicos, funcionários do governo ou colonos comuns, e somente quando era tarde demais, e quando já haviam perdido o seu quinhão de lucros na corrida de ouro, perceberam que o novo ídolo do ouro não era de forma alguma irreconciliável com o seu ídolo de sangue; que o novo populacho era tão refratário ao trabalho e tão incapaz de criar uma civilização quanto eles próprios; e que, portanto, seriam poupados da aborrecida insistência dos ingleses no que se referia à lei, e do conceito irritante dos missionários cristãos no que se referia à igualdade humana.
     Os bôeres temiam o que de fato nunca aconteceu, ou seja, a industrialização do país. E estavam certos, no sentido de que a civilização e a produção normal teriam realmente destruído, de modo automático, a maneira de vida de uma sociedade racial. Um mercado normal para mercadorias e trabalho teria acabado com os privilégios raciais. Mas o ouro e os diamantes, que cedo passaram a ser o sustento de metade da população sul-africana, não eram mercadorias no mesmo sentido e não eram produzidos do mesmo modo como a lã na Austrália, a carne na Nova Zelândia ou o trigo no Canadá. O papel irracional e não-funcional do ouro na economia tornava-o independente de métodos racionais de produção que, naturalmente, jamais poderiam tolerar as fantásticas disparidades entre os salários de brancos e pretos. O ouro, objeto de especulação, tornou-se o "sangue" da Áfricja do Sul,[36] mas não podia constituir — nem constituiu — a base da nova ordem econômica.
     Os bôeres temiam também a simples presença dos uitlanders porque os tomavam por colonos britânicos. Contudo, os uitlanders haviam vindo apenas para ficar ricos depressa, e só permaneceram aqueles que não obtiveram sucesso ou que, como os judeus, não tinham país para onde voltar. Nem uns nem outros estavam muito propensos a fundar uma comunidade segundo o modelo dos países europeus, como os colonos britânicos haviam feito na Austrália, no Canadá e na Nova Zelândia. De fato, o "governo do Transvaal não se parecia com nenhum outro governo do mundo. Na verdade, não se tratava absolutamente de governo, mas de uma companhia ilimitada de cerca de 120 mil acionistas".[37] Uma série de mal-entendidos levou finalmente os bôeres à guerra contra os ingleses, a qual eles erradamente julgaram ser "o ponto culminante da longa campanha do governo britânico em prol de uma África do Sul unida", quando na verdade o que a provocou foi o interesse no dinheiro investido.[38] Quando os bôeres perderam a guerra, e com ela o que já haviam abandonado deliberadamente, isto é, o seu quinhão nos lucros, ganharam definitivamente o consentimento de todos os outros elementos europeus, inclusive do governo britânico, para a instauração de uma sociedade racial regida pela falta de direito.[39] Hoje, todas as camadas da população sul-africana branca — ingleses e africânderes, trabalhadores organizados e capitalistas — concordam quanto à questão racial.[40] E, se a ascensão de uma Alemanha nazista e sua tentativa de transformar o povo alemão numa raça fortaleceram consideravelmente a posição política dos bôeres, a derrota alemã em 1945 não a enfraqueceu.
     Mais do que aos outros estrangeiros, os bôeres odiavam e temiam os financistas. De certo modo, compreendiam que o financista era uma figura-chave na combinação da riqueza supérflua com homens supérfluos, e que a sua função era transformar a corrida do ouro, essencialmente transitória, num negócio muito mais amplo e permanente.[41] Além disso, a guerra contra os ingleses demonstrou ter sido provocada por investidores que exigiam, como se isto lhes fosse devido, que o governo protegesse seus tremendos lucros obtidos nos países distantes — como se os exércitos que lutavam contra povos estrangeiros não passassem de forças policiais em luta contra criminosos nativos. Aos financistas que introduziam esse tipo de violência nos escusos negócios da produção do ouro e diamantes, os bôeres preferiam os que, de um modo ou de outro, haviam saído da própria ralé e que, como Cecil Rhodes, não acreditavam tanto nos lucros como na expansão por amor à expansão.[42] Os financistas, na maioria judeus, representantes apenas, e não donos, do capital supérfluo, não tinham nem a necessária influência política nem o poder econômico suficiente para introduzir alvos políticos e o uso de violência no que era especulação e jogo.
     É fora de dúvida que os financistas, embora não constituíssem o fator decisivo do imperialismo, foram no início os seus notáveis representantes.[43] Haviam tirado proveito da superprodução de capital e da completa reversão de valores econômicos e morais que a acompanhou. As transações de bens e os lucros da produção foram substituídos pelas transações de capital em escala sem precedentes. Isso teria sido suficiente para lhes dar uma posição importante; acresce que os lucros do investimento em países estrangeiros aumentavam muito mais rapidamente que os lucros do comércio, de sorte que os comerciantes e mercadores cederam sua primazia ao financista.[44] A principal característica econômica do financista está em que ele não recebe o seu lucro nem da produção nem da exploração, nem da troca de mercadorias nem da operação bancária comum, mas apenas da comissão. Isso é importante em nosso contexto, porque lhe dá aquele caráter de irrealidade, de existência fantasma, de futilidade que é essencial mesmo numa economia normal, e que são fatores típicos de tantos fatos que ocorreram na África do Sul. Os financistas certamente não exploravam ninguém, e o que menos controlavam era o desenrolar dos seus negócios, viessem estes a ser simples falcatruas ou sólidos investimentos tardiamente confirmados.
     É significativo, também, que foi precisamente o elemento mais baixo do povo judeu que virou financista. É verdade que a descoberta do ouro na África do Sul coincidira com os primeiros pogroms na Rússia, de modo que algumas levas de judeus começaram a emigrar da Rússia para a África do Sul. Sua importância, porém, entre as hordas internacionais de desesperados e de caçadores de fortuna, teria sido quase nula, se um punhado de financistas judeus não houvesse chegado lá antes, interessando-se por aqueles correligionários recém-chegados na medida em que pudessem representá-los entre a população.
     Os financistas judeus vieram de quase todos os países da Europa, onde eram, em termos de classe, tão supérfluos quanto os outros imigrantes sul-africanos. Eram muito diferentes das poucas famílias estabelecidas de notáveis judeus, cuja influência havia decrescido rapidamente depois de 1820, e em cujo meio não poderiam mais ser assimilados. Pertenciam àquela nova casta de financistas judeus que, a partir da década dos 70 do século XIX, encontramos em todas as capitais europeias, aonde tinham ido, geralmente após deixar seus países de origem, para tentar a sorte no jogo das bolsas de valores internacionais. Foi o que fizeram em toda parte, para a consternação das tradicionais famílias judias, cuja influência não era suficiente para pôr paradeiro à falta de escrúpulo dos recém-chegados. Assim, esses judeus tradicionais, principalmente banqueiros, se davam por felizes quando os recém-chegados transferiam para o ultramar o seu campo de atividades. Em outras palavras, os financistas judeus haviam se tornado tão supérfluos na atividade bancária judaica normal quanto a riqueza que representavam era supérflua no empreendimento industrial legítimo, e como eram supérfluos os caçadores de fortuna no mundo da mão-de-obra legítima. Na própria África do Sul, onde o comerciante logo perderia a sua posição na economia do país para o financista, os recém-chegados — os Barnatos, os Beits, os Sammy Marks — alijaram os colonos judeus mais antigos muito mais facilmente que na Europa.[45] Na África do Sul, embora em nenhum outro país, eles foram o terceiro fator da aliança inicial entre o capital e a ralé; em grande parte, foram responsáveis pela dinamização dessa aliança, dirigiram o influxo de capital e o seu investimento em minas de ouro e diamantes, e logo se tornaram mais conspícuos do que todos os outros.
     A origem judaica acrescentava uma qualidade indefinível ao papel dos financistas — uma ausência de pátria e de raízes que introduzia um elemento de mistério e simbolizava o que estava acontecendo. Além disso, as conexões internacionais estimulavam as ilusões populares relativas ao poder político dos judeus no mundo. É fácil compreender que as fantásticas noções de um secreto poder judeu internacional — noções que resultaram originalmente da intimidade entre o capital bancário judeu e a esfera de negócios do Estado — tenham se tornado mais virulentas na África do Sul do que no continente europeu. Aqui, pela primeira vez, os judeus se viam em meio a uma sociedade racial e foram quase automaticamente escolhidos pelos bôeres, entre todos os demais brancos, para objeto de ódio especial, como "raça" diferente a encarnar um princípio diabólico introduzido no mundo normal de "pretos" e "brancos". A violência desse ódio era em parte devida à suspeita de que os judeus, com a sua pretensão messiânica mais antiga e mais autêntica, dificilmente aceitariam a ideia de serem os bôeres um povo eleito por Deus. O cristianismo simplesmente rejeitava essa ideia, mas o judaísmo surgia como uma ameaça ideológica e um rival direto na área messiânica. Muito antes que os nazistas promovessem conscientemente um movimento antissemita na África do Sul, a questão racial já tomara conta do conflito entre os estrangeiros e os bôeres sob a forma do anti-semitismo,[46]  apesar de a importância dos judeus na economia aurífera e diamantífera sul-africana não ter sobrevivido ao fim do século XIX
     Logo que as indústrias de ouro e diamantes atingiram o estágio de desenvolvimento imperialista em que os acionistas exigem a proteção política de seus governos, verificou-se que os judeus não podiam conservar a sua importante posição econômica. Não tinham governo nacional a que apelar e a sua posição na sociedade sul-africana era tão insegura que, para eles, estava em jogo muito mais que a simples perda de influência. Só podiam garantir a segurança econômica e a fixação permanente na África do Sul (da qual necessitavam mais que qualquer outro grupo de uitlanders) se galgassem alguma posição na sociedade — o que, no caso, significava admissão aos exclusivos clubes ingleses. Foram forçados a trocar a sua influência pela posição de cavalheiros, como disse Cecil Rhodes ao comprar sua admissão ao Barnato Diamond Trust depois de haver fundido sua De Beers Company com a companhia de Alfred Beist.[47] Mas esses judeus tinham mais a oferecer que o simples poder econômico; foi graças a eles que Cecil Rhodes, tão recém-chegado e tão aventureiro quanto eles, foi finalmente aceito no respeitável mundo bancário da Inglaterra, com o qual, afinal de contas, os judeus mantinham relações melhores do que ninguém.[48] "Nenhum dos bancos ingleses teria emprestado um único xelim pela segurança das ações do ouro. Foi a confiança ilimitada dos homens do diamante de Kimberley que operou como um magneto sobre seus correligionários em casa."[49]
     A corrida do ouro só se tornou empresa capitalista completa depois que Cecil Rhodes desapossou os judeus, transferiu a política de investimentos das mãos da Inglaterra para as suas próprias e se tornou a principal figura do Cabo. Setenta e cinco por cento dos dividendos pagos aos acionistas iam para o exterior, em sua maioria para a Grã-Bretanha. Rhodes conseguiu que o governo britânico se interessasse por seus negócios pessoais, persuadiu-o de que a expansão e a exportação dos instrumentos de violência eram necessárias para proteger os investimentos e de que tal política era um dever sagrado de qualquer governo nacional. Por outro lado, introduziu no próprio Cabo aquela política econômica tipicamente imperialista de desprezo a qualquer empreendimento industrial que não pertencesse a acionistas ausentes, de modo que, ao final, não apenas as companhias de mineração mas o próprio governo desencorajavam a exploração de abundantes jazidas de metais não-preciosos e a produção de bens de consumo.[50] Dando início a essa política, Rhodes introduziu o fato mais poderoso para a eventual pacificação dos bôeres: desprezar toda empresa industrial autêntica era a mais forte garantia de evitar a normal evolução capitalista e, portanto, a morte natural de uma sociedade racista.
     Os bôeres levaram várias décadas para entender que não precisavam temer o imperialismo, porquanto este nem desenvolveria o país, como a Austrália e o Canadá haviam sido desenvolvidos, nem tiraria proveito do país como um todo, contentando-se apenas com um alto rodízio de investimentos num campo específico. Assim, o imperialismo estava disposto a abandonar as chamadas leis da produção capitalista e suas tendências igualitárias, contanto que fossem assegurados os lucros de investimentos específicos. Isso levou, por fim, à abolição da lei da simples rentabilidade, e a África do Sul tornou-se o primeiro exemplo do fenômeno que ocorre quando a ralé passa a ser o fator dominante na aliança que mantém com o capital. Num plano particular — o mais importante de todos — os bôeres permaneceram donos incontestes do país: sempre que as normas racionais do trabalho e da produção entravam em conflito com os interesses raciais, estes últimos saíam vitoriosos. Os lucros eram constantemente sacrificados às exigências da sociedade racista, muitas vezes a um preço enorme. A rentabilidade das estradas de ferro foi destruída da noite para o dia quando o governo despediu 17 mil empregados bantus para pagar aos brancos salários que eram 200% mais altos;[51] as despesas do governo municipal tornaram-se proibitivas quando os empregados municipais nativos foram substituídos por brancos; e finalmente a Lei da Barreira de Cor excluiu das tarefas mecânicas todo trabalhador negro, levando a empresa industrial a um tremendo aumento em seus custos de produção. O mundo racista dos bôeres não tinha mais a quem temer, e menos ainda os trabalhadores brancos, cujos sindicatos queixavam-se amargamente de que a Lei da Barreira de Cor não tinha ido suficientemente longe.[52]
     Ã primeira vista, é surpreendente que um violento antissemitismo tenha sobrevivido aos financistas judeus e à bem-sucedida doutrinação racista de toda a população europeia, já que os próprios judeus certamente ajustaram-se ao racismo tão bem quanto quaisquer outros, e a sua conduta em relação aos negros era irrepreensível em termos da África do Sul.[53] Não obstante, sem o pressentir, os judeus tinham quebrado uma das mais fortes tradições do país. O primeiro sintoma de sua conduta "anormal" surgiu logo depois que os financistas judeus perderam sua posição nas indústrias do ouro e do diamante. Em vez de deixarem o país, instalaram-se permanentemente,[54] o que constituía uma atitude nova para um grupo branco, já que não faziam parte nem da aristocracia branca da África nem do "pobre lixo branco". Em lugar disso, passaram quase imediatamente a fundar indústrias e ingressar em profissões que, de acordo com a opinião sul-africana, eram "secundárias", porque não se relacionavam com o ouro.[55] Os judeus se tornaram fabricantes de móveis e de roupas, lojistas e profissionais liberais, médicos, advogados e jornalistas. Em outras palavras, por mais que julgassem haver-se adaptado às condições da ralé do país e à sua atitude racial, os judeus acabaram violando a sua norma mais importante ao introduzirem na economia sul-africana um fator de normalidade e produtividade, com o resultado de que, quando o sr. Malan apresentou ao Parlamento um projeto de lei para expulsar todos os judeus da União, teve o apoio entusiástico de todos os brancos pobres e de toda a população africânder.[56]
     Essa mudança de função econômica dos judeus sul-africanos, e a sua transformação de nebulosas personagens do sombrio mundo do ouro e da raça na única parte produtiva da população, veio como tardia confirmação dos antigos receios do bôeres. Eles odiavam os judeus não tanto como intermediários da riqueza supérflua ou representantes do mundo do ouro; haviam-nos odiado e desprezado como a própria imagem dos uitlanders, que procurariam transformar o país em mais uma área produtiva da civilização ocidental, e cuja motivação de lucro ameaçaria mortalmente o mundo fantasma da raça. E, quando os judeus foram finalmente afastados do negócio do ouro e não puderam deixar o país como o teriam feito quaisquer outros estrangeiros nas mesmas condições, mas se dedicaram a indústrias "secundárias", ficou patente que os bôeres tinham razão. Os judeus, inteiramente sozinhos e sem constituírem reflexo de ninguém ou de coisa alguma, haviam se tornado verdadeira ameaça à sociedade racista. Assim, os judeus concentraram contra si as hostilidades de todos os que acreditam em raça e em ouro — ou seja, de quase toda a população europeia da África do Sul. Contudo, não podem e não querem unir a sua causa à do único outro grupo que, lenta e gradualmente, está se libertando da sociedade racial: os trabalhadores negros, que se tornam cada vez mais conscientes de sua humanidade, exatamente sob o impacto do trabalho industrial e da vida urbana. Embora esses negros, em contraste com os "brancos", tenham uma origem racial genuína, não fizeram da raça um fetiche, e a abolição da sociedade racista significa somente a promessa de sua libertação. Em contraste com os nazistas, para os quais o racismo e o antissemitismo foram armas políticas importantes para a destruição da civilização e para o estabelecimento de uma nova estrutura, o racismo e o antissemitismo da África do Sul são consequências naturais do status quo. Não precisaram do nazismo para nascer, e só indiretamente influenciaram o nazismo.
     Não obstante, a sociedade racista da África do Sul teve efeitos de bumerangue sobre a conduta dos povos europeus: em consequência da importação da barata mão-de-obra indiana e chinesa pela África do Sul, verificou-se uma mudança de atitude também em relação aos nativos na Ásia, quando pela primeira vez as pessoas de cor passaram a ser tratadas quase do mesmo modo como os assustados europeus tratavam os selvagens africanos.[57] Mas dessa vez não havia desculpas ou razões logicamente compreensíveis para que tratassem indianos e chineses como se não fossem seres humanos. De certo modo, o verdadeiro crime nasceu nesse momento, pois agora o homem branco não tinha motivos para ignorar o que estava fazendo. É certo que, na Ásia, a noção de raça foi ligeiramente modificada: "estirpes superiores e inferiores" ainda indicavam uma diferença de grau e uma possibilidade de evolução, ideia que, de certa forma, escapava ao conceito de duas espécies animais inteiramente diferentes. Por outro lado, como o princípio racial suplantava a noção de povos estrangeiros e exóticos na Ásia, tornou-se uma arma que, com relação a eles, foi aplicada muito mais conscientemente para o domínio e para a exploração do que na África.
     De significado menos imediato mas de maior importância para os governos totalitários foi outra experiência da sociedade racista da África: a motivação do lucro não é algo sagrado e pode ser suplantada, as sociedades podem funcionar segundo princípios não-econômicos, e tais circunstâncias podem favorecer aqueles que, nas condições de produção racional e de sistema capitalista, seriam subprivilegiados. A sociedade racista da África do Sul ensinou à ralé a grande lição da qual sempre tivera uma noção confusa — de que, por meio de mera violência, um grupo subprivilegiado podia criar uma classe ainda inferior a si próprio; que para isso não era necessária uma revolução, mas bastava que ele se unisse aos grupos das classes dominantes; e que os povos estrangeiros ou atrasados ofereciam as melhores oportunidades para o emprego dessas táticas.
     Os primeiros a perceber todo o impacto da experiência africana foram os líderes da ralé como Carl Peters, que se julgavam legitimamente pertencentes à raça de senhores. As possessões coloniais africanas tornaram-se o solo mais fértil para que florescesse o grupo que viria a ser mais tarde a elite nazista. Viram ali como era possível transformar povos em raças e como, pelo simples fato de tomarem a iniciativa desse processo, podiam elevar o seu próprio povo à posição de raça dominante. A África serviu para curá-los da ilusão de que o processo histórico é necessariamente "progressista", pois se o destino dos antigos colonos era a marcha em alguma direção, os "holandeses na África do Sul fugiam de toda direção — e não deixaram de conquistar a hegemonia";[58] e, se "a história econômica havia ensinado que o homem progredira gradualmente do estágio da caça à condição de pastores e finalmente à vida sedentária e agrícola", a história dos bôeres demonstrava claramente que também era possível vir "de uma terra que fora a pioneira da agricultura próspera e intensiva (...) [e] gradualmente voltar a ser pastor e caçador".[59] Esses líderes compreendiam muito bem que, precisamente por terem descido ao nível das tribos selvagens, os bôeres eram agora seus senhores absolutos. Conscientes disso, estavam perfeitamente dispostos a pagar o preço necessário, a retroceder ao nível de uma organização racista, desde que com isso pudessem conseguir o domínio de outras "raças". E sabiam, pelo contato com indivíduos dos quatro cantos do mundo que acorreram à África do Sul, que toda a ralé do mundo ocidental civilizado estaria com eles.[60]
 
Parte II Imperialismo (3.2 - Ouro e Raça)
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[31] Kiewiet, op. cit.,p. 119.
[32] Froude, op. cit., p. 400.
[33] Kiewiet,op.cit.,p. 119.
[34] "O que a abundância de chuva e relva era para os carneiros da Nova Zelândia, o que a fartura de pasto era para a lã da Austrália, o que os hectares de campinas férteis eram para o trigo canadense, a mão-de-obra barata dos nativos era para a mineração e indústrias da África do Sul" (op. cit., p. 96).
[35] J. A. Froude, ibid.
[36]  "As minas de ouro são o sangue da União. (...) Metade da população vivia direta ou indiretamente da indústria da mineração, e (...) metade das finanças do governo vinha direta ou indiretamente da mineração do ouro" (Kiewiet, op. cit., p. 155).
[37] Ver Paul H. Emden, Jews of Britain, a series of biographies, Londres, 1944, capítulo "From Cairo to the Cape".
[38]  Kiewiet (op. cit., pp. 138-9) menciona, contudo, mais um "conjunto de circunstâncias": "Qualquer tentativa por parte do governo inglês e obter concessões ou reformas do governo do Transvaal tornava-o, inevitavelmente, agente dos magnatas da mineração. (...) A Grã-Bretanha deu o seu apoio aos investimentos de capitais e de mineração, com ou sem o claro consentimento de Do wning Street".
[39] "Muito da conduta evasiva e hesitante dos estadistas britânicos antes da Guerra dos Bôeres pode ser atribuído à indecisão do governo britânico entre a sua obrigação para com os nativos e sua obrigação em relação às comunidades brancas. (...) Agora, contudo, a Guerra dos Bôeres obrigava a uma decisão quanto à política em relação aos nativos. Nos tempos de paz, o governo inglês prometeu que não seria feita qualquer tentativa de alterar o status político dos nativos antes que fosse concedido governo autônomo às ex-repúblicas brancas. Assim, o governo inglês recuava de sua posição humanitária, permitindo que os bôeres obtivessem uma importante vitória nas negociações de paz que se seguiram à sua derrota militar. A Grã-Bretanha abandonou o seu esforço de exercer controle sobre as relações entre o branco e o negro, e Downing Street havia-se rendido à lei da selva" (Kiewiet, op. cit., pp. 143-4).
[40] "Há(...) uma noção completamente errada de que os africânderes [de língua holandesa] e os sul-africanos de língua inglesa discordam quanto ao tratamento que deve ser dado aos nativos. Pelo contrário, esta é uma das poucas coisas em que eles concordam" (James, op. cit., p. 47).
[41] Isso se deveu em grande parte aos métodos de Alfred Beit, que havia chegado em 1875 para comprar diamantes para uma firma de Hamburgo. "Até então, somente especuladores haviam sido acionistas das companhias de mineração. (...) O método de Beit atraiu também o investidor genuíno" (Emden, op. cit.).
[42] A esse respeito, é muito típica a atitude de Barnato no caso da fusão de seu negócio com o grupo de Rhodes. "Para Barnato, a fusão nada mais era que uma transação financeira para ganhar dinheiro. Queria, portanto, que a companhia nada tivesse a ver com a política. Mas Rhodes não era um simples homem de negócios" (ibid.).
[43] Ver capítulo 5, notas 34 e 35.
[44] O aumento dos lucros dos investimentos estrangeiros e um relativo declínio dos lucros com o comércio exterior caracterizam o lado econômico do imperialismo. Em 1899, estimava-se que todo o comércio exterior e colonial da Grã Bretanha lhe havia proporcionado uma renda de 18 milhões de libras, enquanto no mesmo ano os lucros provenientes dos investimentos estrangeiros foram de 90 a 100 milhões de libras. Ver J. A. Hobson, Imperialism, Londres, 1938, pp. 53 ss. É óbvio que o investimento exigia uma política de longo alcance muito mais consciente do que o simples comércio.
[45] Os primeiros colonos judeus da África do Sul no século XVIII e na primeira metade do século XIX eram aventureiros; negociantes e mercadores seguiram-nos na segunda metade, entre os quais os mais proeminentes dedicaram-se a indústrias como a pesca e a caça de focas e baleias (os irmãos De Pass) e criação de avestruzes (a família Mosenthal). Mais tarde, foram praticamente forçados a entrarem nas indústrias de diamantes de Kimberley, onde, contudo, nunca atingiram a proeminência dos Barnato e Beit.  
[46] Ernst Schultze, "Die Judenfrage in Süd-Afrika" [A questão judaica na África do Sul], em Der Weltkampf, outubro de 1938, vol. XV, n? 178.
[47] Barnato vendeu suas ações a Rhodes para ser apresentado ao Kimberley Club. "Não se trata de mera transação financeira", Rhodes teria dito a Barnato, "pretendo fazer de você um cavalheiro." Barnato desfrutou sua vida de cavalheiro durante oito anos; depois, suicidou-se. Ver Millin, op. cit., pp. 14,85.
[48] "A passagem de um judeu [no caso, Alfreid Beit, de Hamburgo] para outro era fácil. Rhodes foi à Inglaterra para ver lorde Rothschild, e lorde Rothschild o aprovou" (ibid.). 
[49] Emden, op. cit.
[50] "A África do Sul concentrava na produção do ouro quase toda a sua energia industrial dos tempos de paz. O investidor médio empregava o seu dinheiro no ouro porque este lhe proporcionava lucros maiores e mais rápidos. Mas a África do Sul tem também tremendos depósitos de minério de ferro, cobre, asbestos, manganês, estanho, chumbo, platina, cromo, mica e grafite. Essas indústrias, juntamente com as minas de carvão e a meia dúzia de fábricas que produziam artigos de consumo, eram chamadas de indústrias 'secundárias'. O público investidor tinha por elas um interesse limitado. E o desenvolvimento dessas indústrias secundárias era desencorajado pelas companhias de mineração de ouro e, em grande parte, pelo governo (James, op. cit., p. 333).
[51] James, op. cit., pp. 111-2. "O governo achou que esse era um bom exemplo para os empregadores privados (...) e a opinião pública logo forçou mudanças nas políticas de contratação de muitos empregadores."
[52] James, op. cit., p. 108.
[53] Aqui, mais uma vez, uma diferença nítida entre os primeiros imigrantes e os financistas pode ser identificada até o fim do século XIX. Saul Salomon, por exemplo, um amigo dos negros e membro do Parlamento do Cabo, descendia de uma família que se estabelecera na África do Sul no início do século XIX. Emden, op. cit.
[54] Entre 1924 e 1930, 12.319 judeus imigraram para a África do Sul, enquanto apenas 491 deixaram o país. São algarismos muito surpreendentes, quando se considera que a imigração total, no mesmo período, após a dedução de emigrantes, foi de 14.241 pessoas. (Ver Schultze, op. cit.) Se compararmos estes algarismos com os dados de imigração (nota 6), vê-se que os judeus constituíram perto de um terço de toda a imigração da África do Sul nos anos 20, e que eles, em grande contraste com todas as outras categorias de uitlanders, ficaram lá permanentemente.
[55] "Líderes nacionalistas africânderes deploraram o fato de que existem 102 mil judeus na União; a maioria deles são escriturados, empregados industriais, lojistas ou profissionais livres. Os judeus contribuíram em muito para as indústrias secundárias da África do Sul — isto é, indústrias que não as de mineração de ouro e diamantes —, concentrando-se especialmente na fabricação de roupas e de móveis" (James, op. cit., p. 46).
[56]  /Wd.,pp.67-8.
[57] Mais de 100 mil coolies [trabalhadores não-especializados] indianos foram "importados" no século XIX para as plantações de cana-de-açúcar situadas na província de Natal. Foram seguidos por trabalhadores chineses nas minas, que eram cerca de 55 mil em 1907. Em 1910, o governo britânico ordenou o repatriamento de todos os trabalhadores chineses das minas e, em 1913, proibiu a imigração de indianos e de outros povos da Ásia. Em 1931, 142 mil asiáticos que ainda viviam na União eram tratados como nativos africanos. (Ver também Schultze, op. cit.)
[58] Barnes, op. cit., p. 13.
[59] Kiewiet, op. cit., p. 13.
[60] "Quando os economistas declararam que salários mais altos eram uma forma de subvenção, e que o trabalho protegido era antieconômico, respondeu-se que o sacrifício seria benéfico, se os elementos menos afortunados da população branca finalmente encontrassem um lugar seguro na vida moderna." "Mas não tem sido apenas na África do Sul que a voz do economista convencional não é mais ouvida, desde o fim da Grande Guerra. (...) Numa geração que viu a Inglaterra abandonar o livre comércio, a América deixar o padrão-ouro, o Terceiro Reich abraçar a autarquia, (...) a insistência da África do Sul em que sua vida econômica se organize de forma a assegurar a posição dominante da raça branca não está realmente fora de lugar." (Kiewiet, op. cit., pp. 224 e225.)

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