domingo, 14 de setembro de 2025

crônica - um professor bagunceirinho (4)

um professor bagunceirinho (4)

baitasar

     saio da sala da diretora, a reorganizadora da escola, eleita democraticamente, não invejo sua tarefa nem desejo seu lugar de poder, prefiro ficar quieto no meu cantinho, Minhas memórias são tudo que carrego comigo, e como tantas outras histórias esquecidas, ficarão desconhecidas para sempre, vivemos dias de mais ação e menos silêncio, penso calado, apenas o ruído do lápis marcando o papel, sugerindo no presente o que já foi acontecido, queria ter essa força que Rachel sugere que tenho, continuo escrevendo
    meu coração aperta e voa maluco para longe, Como é possível estar a serviço da construção de um novo homem, uma nova mulher, um outro mundo possível, tantas dúvidas e perguntas, continuo calado, mas pensando mais perguntas, Como ser um outro professor que não esse mesmo de sempre, sei que preciso me reinventar, mas como, mais interrogações, sei por onde começar, dúvidas ainda sem respostas
    caminho pelo corredor com passos frouxos e inseguros, pernas assustadas, entro no pátio, muita correria, gritos alegres, sorrisos, paro na frente do cartaz com a letra E, fico frente à frente com pais e mães, as crianças barulhentas e os adultos mudos, até que a miuçalha para suas correrias e se aproxima, meninos e meninas erguem os olhos

Boa tarde, crianças!

     mudas, continuam me observando, repito me corrigindo, Boa dia, crianças!
     respondem alto e forte: Bom diaaaa!

O meu nome é Marko, sou o professor de vocês. Podem me chamar de “professor” ou “Marko”.

     escuto um murmúrio abafado, O professor Girafales... risos contidos, o silêncio continua, acho que esperavam uma professora, peço que façam uma fila conforme forem sendo chamados, começo a chamar seus nomes, quando termino a chamada estão todos e todas em uma única fila, os murmúrios abafados continuam, a pureza das respostas das crianças, não consigo evitar de dizer, É a vida, crianças, é bonita e tem a escola. Vamos ser felizes aqui também, cantar, dançar, correr, pular, falar, escutar e aprender tudo que na cabeça agita! Sejam todos e todas, bem-vindas!
    alguns pais e muitas mães, lá atrás, misturados e inquietos, peço que se puderem acompanhem as crianças até a sala de aula, no anexo de madeira, Venham com a turma, assim já saberão onde buscá-las, no final da tarde.
    rompem o silêncio, Professor, quando posso buscar o Gustavo?

Mãe, as aulas iniciam às 13h15min e terminam às 17h15min.

Grata.

    um pai ainda quer saber, Posso buscar antes?

Caso precise buscar seu filho antes o senhor deve dirigir-se até a direção. Sair antes do término das aulas somente com autorização.

    o percurso não é longo, as demais turmas já estavam acomodadas em suas salas, vou à frente, caminho de costas, olhos seus rostos, nenhuma parece preocupada ou assustada, apenas muito curiosas
    no meio desse turbilhão de emoções, os vestígios do meu primeiro dia escolar como aluno do primeiro ano, na escola Gonçalves Dias, no Passo d’Areia, vila IAPI  – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, criado no Estado Novo de Getúlio Vargas, em 1936, para gerir a previdência social dos trabalhadores da indústria e financiar projetos de habitação popular para os trabalhadores industriários, o Minha Casa Minha Vida do Getúlio Vargas –, o ano é 1964, então, sim, comecei minha vida escolar junto com o golpe militar e um menino chorando, agarrado na mãe, em minha lembrança, ele só entrou e ficou na sala de aula porque sua mãe ficou na porta, não recordo seu rosto nem seu nome, mas não esqueci sua mãe parada na porta, não tenho recordação quanto tempo durou essa tragédia  – a outra tragédia durou 21 anos
    chegamos
    abro a porta e peço que as crianças entrem, os pais e mães aguardam enquanto acomodo as crianças em seus lugares, Esses lugares são provisórios, crianças. Aos poucos vamos nos conhecendo e seus lugares poderão mudar, certo?
    pronto, estão acomodadas
    saio para conversar com o outro auditório, aguardando fora da sala de aula

Quero me apresentar. Sou o professor Marko. E vou ser o professor das turma até ser nomeada uma professora ou professor para a turma.

Não estou entendendo, diz um pai

    uma mãe ergue a mão, peço que fale, Sim...

Por que isso?

    não sou muito bom com notícias ruins, vou logo esclarecendo, Preciso dizer a vocês que sou professor de educação física, nunca alfabetizei crianças ou adultos, percebo a surpresa e insatisfação, o pior é que não tem um jeito melhor de dizer, está acontecendo comigo, o pior primeiro dia – só não é pior que aquele de 64 –, não tem arrego, não tem uma chavezinha mágica que abre a porta para chegar a nova professora e me tirar desta incumbência
    a confusão começa a se espalhar naquele pequeno auditório ao ar livre, preciso agir rápido, o rastro de pólvora está acesso, Imagino a frustração e preocupação de vocês. Não é justo nem correto o que está acontecendo, olhos de águia me encarando, sem humor, sem sorriso, a minha presença de ficar junto não basta mais, continuo, Mudar essa situação, o mais rápido possível, depende de vocês e da pressão que queiram fazer.

Vamos falar com a diretora!

    os ânimos estão se acirrando, um duelo está para acontecer, é necessária uma mobilização, mas não pode tropeçar confinada na escola, Gente, conversar com a professora Rachel é importante para terem uma estratégia adequada. Vocês precisam ter claro que a direção da escola não tem no quadro de professores essa professora do primeiro ano, a professora que ensina a ler, ajuda escrever. A professora Rachel, sozinha, não tem como resolver rapidamente essa falta de professor.

E quem resolve essa bagunça?

O prefeito, respondo sem hesitar, ele é o organizador de tudo nas escolas municipais, se ele quiser – e nós deixarmos – ele pode tirar até a eleição das diretoras das escolas municipais.

    silêncio, até que uma mãe diz para aquele pequeno auditório, Se vocês querem saber... é pra lá que eu vou!

Para onde, perguntam algumas mães

Pra prefeitura!

    dá para sentir uma vertigem de pensamentos e palavras no burburinho que se forma, descobrem que podem narrar outra história, desfazer essa que se mostra descabida e indevida, não querem esperar por um milagre que faça sentido, repetem que é preciso lutar

Mas antes, vamos falar com a professora Rachel!

Isso, vamos lá.

    saem em pequenos grupos, uma mãe se volta e me chama

Professor...

    me volto, em silêncio, Grata, por avisar.

    estamos desconfortáveis e frustrados

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um professor bagunceirinho (5)

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