segunda-feira, 20 de maio de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (2)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




II – DA MESMA PARA A MESMA



25 de novembro


No dia seguinte encontrei meu apartamento em ordem e arranjado pelo velho Filipe, que pusera flores nos vasos. Instalei-me, por fim. Apenas ninguém se lembrara de que uma pensionista das carmelitas tem fome cedo, e Rosa teve mil dificuldades para me trazer a primeira refeição. 

— A senhorita deitou-se à hora em que se serviu o jantar e se levanta no momento em que o senhor acaba de chegar — disse-me ela. 

Pus-me a escrever. Pela uma hora, meu pai bateu à porta do meu pequeno salão e me perguntou se eu o podia receber; abri-lhe a porta, ele entrou e encontrou-me a escrever. 

— Minha querida, terá, aqui, de que vestir-se e preparar-se; nesta bolsa encontrará doze mil francos. É a renda de um ano que lhe concedo para sua manutenção. Combinará com sua mãe a escolha de uma governanta que lhe convenha, no caso de miss Griffith não lhe agradar; pois a senhora de Chaulieu não terá tempo para acompanhá-la pela manhã. Terá um carro e um lacaio às suas ordens. 

— Deixe-me Filipe — pedi. 

— Seja — respondeu ele. — Mas não se preocupe, sua fortuna é suficientemente grande para que não nos pese, nem à sua mãe, nem a mim.

— Será indiscrição perguntar-lhe a quanto monta a minha fortuna? 

— De modo nenhum, minha filha — disse ele —, sua avó deixou-lhe quinhentos mil francos que constituíam as suas economias, pois não quis subtrair à família uma única jeira de terra. Essa quantia foi inscrita no Grande-Livro. [101] O acúmulo de juros produz hoje cerca de quarenta mil francos de renda. Eu queria empregar essa importância para constituir a fortuna de seu segundo irmão, de modo que você veio atrapalhar muito os meus projetos; mas daqui a algum tempo talvez que você concorra para eles; tudo esperarei de você mesma. Parece-me mais razoável do que eu pensava. Não tenho necessidade de dizer-lhe como procede uma srta. de Chaulieu; a altivez estampada em sua fisionomia é para mim uma garantia segura. Em nossa casa, as precauções tomadas pela gentinha em relação às filhas seriam injuriosas. Qualquer murmúrio maldoso a seu respeito poderia custar a vida daquele que tal se permitisse ou a de um de seus irmãos, se o céu fosse injusto. Nada mais lhe direi sobre esse capítulo. Adeus, querida filha. 

Beijou-me na fronte e se foi. Depois de uma perseverança de nove anos não explico o abandono desse plano. Meu pai foi de uma clareza que me agrada. Não há em suas palavras nenhuma ambiguidade. Minha fortuna deve pertencer ao seu filho marquês. Quem foi pois que teve entranhas? Minha mãe? Meu pai? Meu irmão? 

Fiquei sentada no sofá de minha avó, com os olhos postos na bolsa que meu pai deixara em cima da lareira, contente e descontente, ao mesmo tempo, com aquela atenção que mantinha meu pensamento preso ao dinheiro. É certo que não me tenho mais de me preocupar com isso: minhas dúvidas estão esclarecidas, e há qualquer coisa de digno em me evitarem qualquer sofrimento de orgulho a esse respeito. Filipe andou o dia inteiro a correr à casa dos vários fornecedores e obreiros que vão ser encarregados da minha metamorfose. Uma costureira célebre, uma tal Victorine, [102] veio e também uma costureira de roupa branca e um sapateiro. Estou impaciente como uma criança, por saber como vou ficar quando tiver deixado o saco em que nos envolvia o uniforme do convento; mas todos esses obreiros exigem muito tempo: o cortador de espartilho reclama oito dias se eu não quiser estragar meu busto. Isso se vai tornando grave; quer dizer que tenho um busto? Janssen,[103] o sapateiro da Ópera, afirmou-me positivamente que eu tinha o pé de minha mãe. 

Passei toda a manhã nessas sérias ocupações. Veio até um luveiro que tomou medida de minhas mãos. A costureira de roupa branca recebeu minhas ordens. À hora do meu jantar, que resultou ser a do almoço, minha mãe me disse que iríamos juntas às modistas, para ver chapéus, a fim de me educar o gosto e pôr-me em condições de eu mesma encomendar os meus. Estou tonta com esse começo de independência como um cego que recuperasse a vista. Estou em condições de julgar a distância que vai de uma carmelita a uma moça da alta sociedade: a diferença é tão grande que nós jamais a poderíamos ter concebido. Durante esse almoço, meu pai esteve abstraído, e nós o deixamos com os seus pensamentos; ele está muito a par dos segredos do rei. Esquecia-me completamente, e se lembrará de mim quando eu lhe for necessária, percebi isso. Meu pai é um homem encantador, apesar dos seus cinquenta anos; tem um porte juvenil, é bem-feito de corpo, é louro, tem uma figura e encantos deliciosos; tem a fisionomia ao mesmo tempo expressiva e muda dos diplomatas; seu nariz é fino e comprido, seus olhos, castanhos. Que lindo par! Quantos pensamentos singulares não me assaltaram ao ver claramente que esses dois seres, igualmente nobres, ricos, superiores, não vivem juntos, nada têm de comum a não ser o nome, e se mantêm unidos aos olhos da sociedade. A elite da corte e da diplomacia estava ontem aqui. Dentro de poucos dias irei a um baile em casa da duquesa de Maufrigneuse e serei apresentada a essa sociedade que tanto desejava conhecer. Todas as manhãs terei a visita de um professor de dança; dentro de um mês terei de saber dançar, sob pena de não ir ao baile. Antes do jantar, minha mãe veio ver-me a propósito da governanta. Fiquei com miss Griffith, que lhe foi dada pelo embaixador da Inglaterra. Essa miss é filha de um pastor protestante e muito bem-educada; a mãe dela era nobre, ela tem trinta e seis anos, vai ensinar-me inglês. Minha Griffith é bastante bonita para ter pretensões; é nobre e altiva; é escocesa, será meu cérebro, dormirá no quarto de Rosa. Rosa ficará às ordens de miss Griffith. Vi imediatamente que governaria minha governanta. Nestes seis dias que estamos juntas, ela compreendeu perfeitamente que só eu me poderei interessar por ela; eu, apesar de sua atitude de estátua, compreendi perfeitamente que ela será complacente para comigo. Parece-me uma boa criatura, porém discreta. Nada pude saber do que foi dito entre ela e minha mãe. 

Outra notícia que me parece insignificante! Esta manhã meu pai recusou o ministério que lhe foi proposto! Daí sua preocupação de ontem. Prefere uma embaixada, disse ele, aos incômodos das discussões públicas. A Espanha lhe sorri. Soube dessas novidades ao almoço, único momento do dia em que meu pai, minha mãe e meu irmão se veem numa espécie de intimidade. Os criados, nesse momento, só vêm quando chamados. No resto do tempo meu irmão está ausente, da mesma forma que meu pai. Minha mãe veste-se, nunca é visível das duas horas às quatro: às quatro sai para um passeio de uma hora; recebe das seis às sete, quando não janta fora; depois a noite é preenchida pelos divertimentos, espetáculos, bailes, concertos, visitas. Enfim, sua vida é tão cheia de ocupações que julgo não ter ela um quarto de hora seu. Deve passar um tempo considerável na sua toilette matinal, pois está divina ao almoço, que se realiza entre onze horas e meio-dia. Começo a explicar-me os ruídos que se ouvem nos seus aposentos; ela toma antes de mais nada um banho quase frio, e uma xícara de café frio com creme, depois veste-se; nunca se acorda antes das nove horas, salvo em casos excepcionais; no verão há passeios matinais, a cavalo. Às duas horas ela recebe um jovem que ainda não pude ver. Eis aí nossa vida de família. Reunimo-nos para almoçar e jantar, mas com frequência vejo-me só com minha mãe, nessa refeição. 

Prevejo que mais vezes ainda jantarei sozinha nos meus aposentos, com miss Griffith, como fazia minha avó. Minha mãe janta seguidamente fora. Não me admiro mais do pouco cuidado de minha família comigo. Minha querida, em Paris há heroísmo em querer às pessoas que vivem junto de nós, pois que com frequência nem mesmo estamos com nós mesmas. Como os ausentes são esquecidos nesta cidade! E, entretanto, ainda não pus o pé fora de casa, não conheço nada, estou à espera de ser desasnada, de que minha toilette e o meu ar estejam em harmonia com essa sociedade, cuja agitação me assombra, embora não lhe ouça o rumor, senão de longe. Não saí mais do que para ir ao jardim. No Théâtre des Italiens, dentro de poucos dias começarão a cantar. Minha mãe tem um camarote. Estou louca de desejos por ouvir a música italiana e ver uma ópera francesa. Estou começando a abandonar os hábitos do convento para adquirir os da vida mundana. Escrevo-te à noite, até a hora de me deitar, que agora é protelada para as dez, hora em que minha mãe sai, quando não vai ao teatro. Há doze teatros em Paris. Sou de uma ignorância crassa e leio muito, mas leio sem seleção. Um livro leva-me a outro. Vejo os títulos de várias obras na capa do que estou lendo; mas ninguém me guia de modo que encontro alguns bem aborrecidos. O que li da literatura moderna gira em torno do amor, o assunto que tanto nos interessava, pois que o nosso destino é feito pelo homem e para o homem; mas quanto esses autores estão abaixo de duas meninazinhas chamadas a corça branca e a mimosa, Renata e Luísa! Ah! Querido anjo, que pobres acontecimentos, que singularidade e como é mesquinha a expressão desse sentimento! Dois livros, entretanto, agradaram-me estranhamente, um é Corina [104] e o outro Adolfo [105]. A propósito disso, perguntei a meu pai se eu poderia ver Madame de Staël. Minha mãe, meu pai e Afonso puseram-se a rir. Afonso disse: 

— De onde vem esta? 

Meu pai respondeu: 

— Somos muito tolos, ela vem das carmelitas. 

— Minha filha, Madame de Staël [106] já morreu — disse a duquesa com brandura. 

Em outra ocasião, ao terminar Adolfo, perguntei a miss Griffith: 

— Como pode uma mulher ser enganada? 

— Quando ela ama — respondeu-me miss Griffith. 

Dize-me, Renata, será que um homem nos poderá enganar?... Miss Griffith acabou por entrever que eu não sou tola de todo, que tenho uma educação ignorada, aquela que nos demos uma à outra com as nossas argumentações exaustivas. Ela compreendeu que minha ignorância é somente relativa às coisas exteriores. A pobre criatura revelou-se-me. Aquela resposta lacônica, posta num dos pratos da balança contra todas as desgraças imagináveis, causou-me um leve arrepio. Griffith repetiu-me que não me deixasse deslumbrar por nada na sociedade e que desconfiasse de tudo, principalmente do que mais me agradasse. Ela não sabe e nada mais me pode dizer. Esse sermão é demasiado monótono. Nisso ela se aproxima da natureza dos pássaros que só têm um grito.




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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[101]Grande-Livro: chamava-se assim a lista que continha os nomes de todos os credores do Estado e todos os elementos da dívida pública. 
[102]Victorine: pessoa real, costureira da alta sociedade. 
[103]Janssen: pessoa real, sapateiro da alta roda, estabelecido na rue Saint-Honoré. 
[104]Corina (1807): romance de Madame de Staël. 
[105]Adolfo (1816): romance de Benjamin Constant. 
[106]Madame de Staël morreu em 1817; a ação do romance desenvolve-se entre 1825 e 1833.


Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (3)

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