segunda-feira, 27 de maio de 2019

Gente Pobre - 40. as coisas são como são... não é verdade? - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


40.




27 de setembro




Minha querida Bárbara Alexeievna:



Cumpri escrupulosamente as suas instruções. Madame Chiffon disse que já tinha pensado em fazer as letras em cordão, porque assim é mais distinto e... Não sei se foi exatamente assim que ela disse, porque não compreendi muito bem; mas deve ter sido mais ou menos isto. Também me falou na tal guarnição a que Bárbara se havia referido. O que disse acerca disto, é que já me não lembro. Apenas me recorda que falou muito. Que mulher tagarela! Mas que me disse? Olhe, dir-lho-á ela própria hoje mesmo. Eu, querida Bárbara, ando completamente desnorteado. Hoje de manhã não fui trabalhar, mas não se preocupe, porque não foi nada de grave. Para lhe conseguir pia e sossego, estou disposto a visitar todas as lojas de S. Petersburgo. Diz-me a minha amiga que tem medo de pensar no futuro. Pois hoje, pelas sete horas, tomará conhecimento de tudo, porque madame Chiffon irá pessoalmente visitá-la. Por isso, tenha paciência e espere que tudo corra pelo melhor. O que não me sai da ideia é essa malfadada guarnição; até parece zunir-me nos ouvidos: guarnição, guarnição, guarnição! 

Daqui a bocado irei visitá-la, meu anjo; tenho absoluta necessidade de perder uns momentos à conversa consigo. Já me aproximei hoje da sua porta duas vezes; mas Buikov, quer dizer, o senhor Buikov parece dotado de mau gênio e decerto não gostaria muito... Enfim, as coisas são como são... não é verdade? 

Seu



Makar Dievuchkin








28 de setembro




Meu querido Makar Alexeievitch:



Por amor de Deus, vá a toda a pressa à joalharia e diga ao proprietário que já não quero os brincos de pérolas e esmeraldas. O senhor Buikov diz que são muito caros e que lhe dão um rombo na carteira. Está muito zangado. Queixa-se de que já lhe estou a ficar pelos olhos da cara e de que o estamos a depenar. Disse ontem que se pudesse prever todas estas despesas, não teria feito as coisas assim à pressa, e acrescentou que partiremos logo a seguir à cerimônia do casamento. «Não penses que vai haver convidados para a boda e baile a seguir; não, as festas realizar-se-ão no campo, na minha terra, mas não imagines que podes dançar nesse dia», foram estas as suas palavras! Só Deus sabe o pouco que essas coisas me interessam. Foi o senhor Buikov quem determinou tudo e eu não me atrevo a contradizê-lo. Tem um gênio tão irascível! Que será de mim, meu Deus?



B. D.






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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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