domingo, 19 de maio de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(1)

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837




1 — Aventureiros Precoces (1)





O meu nome é Arthur Gordon Pym. Meu pai era um respeitável comerciante de produtos para a marinha, em Nantucket, terra onde nasci. Meu avô materno era advogado e tinha uma boa clientela. Tinha sorte em tudo e ganhou muito dinheiro especulando com ações do Edgarton New Bank, na altura da sua fundação. Por estes meios e outros conseguiu fazer uma fortuna bastante considerável. Julgo que gostava mais de mim do que de qualquer outra pessoa no mundo, e por isso eu esperava vir a herdar a maior parte desta fortuna. Quando tinha seis anos mandou-me para a escola do velho senhor Ricketts, bom homem, que tinha só um braço e maneiras bastante excêntricas. É bem conhecido de quase toda a gente que visitou New Bedford. Estive na sua escola até aos dezasseis anos, deixando-a para ingressar na academia de M. E. Ronald, na montanha. Aí tornei-me íntimo do filho do senhor Barnard, capitão da marinha, que habitualmente viajava por conta da casa Lloyd e Vredenburg. Também o senhor Barnard é muito conhecido em New Bedford e tenho a certeza que tem alguns parentes em Edgarton. O filho chamava-se Augusto e era mais velho do que eu uns dois anos. Tinha acompanhado o pai numa viagem no baleeiro John Donaldson e falava-me muitas vezes das suas aventuras no Pacífico Sul. Ia frequentemente com ele a casa da família e lá passava o dia e por vezes toda a noite. Dormíamos na mesma cama e ele conseguia manter-me acordado até de madrugada, contando-me histórias fantásticas sobre os habitantes da ilha de Tinian e sobre outros locais que tinha visitado nas suas viagens. Acabei por ter grande interesse em tudo o que ele me dizia e por sentir o mais violento desejo de ir para o mar. Tinha um pequeno veleiro a que chamava Ariel, que talvez valesse setenta e cinco dólares, com o tombadilho cortado, cozinha na ré, e armado como as corvetas. Já não me lembro qual era a sua tonelagem, mas podia transportar facilmente dez pessoas. Era com este barco que costumávamos fazer as maiores loucuras, e hoje, quando penso nisso, sinto que é um milagre ainda estar vivo.

Vou contar uma dessas aventuras, à maneira de introdução a uma narrativa mais longa e importante. Uma noite em que os Barnard tinham visitas, eu e Augusto, no fim da festa, já estávamos um pouco bebidos. Como costumava fazer em casos semelhantes, em vez de regressar a minha casa, preferi partilhar a cama. Augusto adormeceu tranquilamente, pelo menos assim o julguei (era cerca de uma hora da manhã quando a festa acabou), e sem falar do seu assunto favorito. Teria passado meia hora desde que tínhamos ido para a cama e estava quase a adormecer, quando ele acordou de repente e jurou dizendo um terrível palavrão, por todos os Arthur Pym da cristandade, que não ficaria a dormir enquanto soprava uma excelente brisa do sudoeste. Fiquei completamente admirado, não percebendo o que ele queria dizer e pensando que os vinhos e licores que ele tinha ingerido o haviam transtornado. Porém, pôs-se a conversar tranquilamente, dizendo que sabia bem que eu o julgava embriagado, mas que, ao contrário, nunca se tinha sentido tão calmo. Só que estava farto, acrescentou, de estar na cama como um cão numa noite tão bonita, e estava resolvido a levantar-se, a vestir-se e a ir dar um passeio de barco. Não sei descrever o que se passou comigo, mas assim que ouvi estas palavras senti um frémito de excitação e achei que aquela ideia louca era uma das coisas mais deliciosas e razoáveis do mundo. A brisa que soprava era uma tempestade e estava muito frio, pois já estávamos quase no fim de outubro. Apesar disso, saltei da cama, numa espécie de demência, e disse-lhe que era tão corajoso como ele, que também estava farto de estar na cama como um cão e que também estava pronto a correr mundo com todos os Augustos Barnard de Nantucket. 

Vestimo-nos apressadamente e corremos para o veleiro, que estava amarrado ao velho cais arruinado do estaleiro de Pankey & C.ª, batendo com força contra as traves toscas. Augusto entrou no barco e pôs-se a esvaziá-lo, pois estava cheio de água até meio. Feito isto, içamos o cutelo e a vela grande e, audaciosamente, largamos a todo o pano para o largo. 

O vento, como já disse, soprava de sudoeste. A noite estava fria. Augusto tomou conta do leme e eu instalei-me perto do mastro sobre a coberta da cabine. Seguimos em frente a grande velocidade e nenhum de nós tinha pronunciado uma única palavra desde a saída do cais. Perguntei então ao meu companheiro qual era a rota que ele pretendia seguir e quando é que ele pensava que regressaríamos a terra. Assobiou durante alguns minutos e depois disse num tom irritado: 

— Eu vou para o mar, mas você pode ir para casa se assim o desejar!

Olhando para ele, apercebi-me imediatamente que, apesar da sua pretensa indiferença, estava dominado por uma grande agitação. Via-o perfeitamente à luz da lua: o rosto pálido como o mármore e a mão tremia-lhe tanto que mal podia segurar o leme. Percebi que tinha acontecido algo de muito grave e comecei a ficar inquieto. Naquela altura os meus conhecimentos náuticos eram fracos e, por isso, estava completamente à mercê da ciência náutica do meu amigo. O vento tinha-se tornado muito mais frio, porque nos tínhamos afastado bastante da costa. No entanto, tinha vergonha de deixar transparecer o menor sinal de receio e, durante cerca de uma hora, mantive-me em absoluto silêncio. Mas não pude suportar por mais tempo aquela situação e fadei a Augusto da necessidade de voltar a terra. Como acontecera antes manteve-se calado cerca de um minuto, não dando atenção ao meu conselho. 

— Já vamos — disse por fim — ...temos tempo... em nossa casa... já vamos. 

Esperava uma resposta deste gênero, mas havia qualquer coisa na entoação das suas palavras que me provocou uma indescritível sensação de medo. Observei-o de novo atentamente. Tinha os lábios completamente lívidos e os joelhos tremiam-lhe tanto que mal se tinha de pé. 

— Por amor de Deus, Augusto! — gritei eu, já completamente assustado. — Que tem? Que aconteceu? Que quer fazer? 

— Que aconteceu? — balbuciou Augusto como que surpreendido, ao mesmo tempo que abandonava o leme e se deixava cair para a frente no fundo do barco. — Que aconteceu? Mas nada... absolutamente nada... para casa... vamos para casa, que diabo!... Não vês? 

Então compreendi tudo. Corri para ele e levantei-o. Estava embriagado, completamente embriagado; já não conseguia manter-se de pé, falar ou ver. Os olhos estavam vítreos. No meio do meu grande desespero, larguei-o e ele rolou como um tronco na água do fundo do barco donde eu o tinha tirado. Era evidente que, durante a noite, tinha bebido muito mais do que eu suspeitava e que a sua conduta na cama fora o resultado de uma dessas bebedeiras fortes, que, como a loucura, dão por vezes à vítima a faculdade de imitar o comportamento das pessoas na plena posse dos seus sentidos. A atmosfera fria da noite em breve tinha produzido o seu efeito habitual; a energia mental tinha cedido à sua influência e a percepção confusa que ele, sem dúvida, tinha tido da nossa perigosa situação, apenas tinha servido para apressar a catástrofe. Agora, estava completamente inerte e não havia hipótese de o seu estado se modificar antes de algumas horas. 

É impossível imaginar toda a extensão do meu terror. Os vapores do vinho tinham-se dissipado deixando-me duplamente tímido e irresoluto. Sabia que era incapaz de manobrar o barco, e o vento furioso e a ondulação forte lançavam-nos para a morte. Era visível a formação de uma tempestade por detrás de nós; não tínhamos nem bússola nem mantimentos, e era evidente que, se mantivéssemos aquela rota, perderíamos a terra de vista antes do amanhecer. Estes pensamentos e outros igualmente terríveis atravessaram-me o espírito com uma rapidez extraordinária e, durante alguns instantes, paralisaram-me, a ponto de não fazer o menor gesto. O barco voava, fustigado pelo vento. Picava na água e arriava com enorme velocidade, sem rizes no cutelo e na vela grande, mergulhando a proa na espuma. Era um milagre dos milagres ainda não termos sido destruídos, uma vez que, como já disse, Augusto largara o leme e eu estava demasiado agitado para pensar em segurá-lo. Mas, por sorte, o barco manteve-se a favor do vento e, pouco a pouco recuperei a minha presença de espírito. O vento continuava a aumentar furiosamente e, quando o barco subia, depois de ter mergulhado de proa, as ondas caíam esmagadoras sobre a ré, inundando a embarcação. Além disso, eu estava tão gelado que quase não sentia as pernas. Por fim, invocando todas as forças do desespero, precipitei-me para a vela grande e dei-lhe todo o pano. Como era de prever, deslizou sobre a proa e, submersa pela água, arrastou o mastro borda fora. Foi este último acidente que me salvou de uma destruição iminente. Apenas com o cutelo podia agora deslizar a favor do vento, embora, de vez em quando, entrassem grandes bátegas de água pela ré, mas aliviado do terror de uma morte imediata. Agarrei-me ao leme e respirei um pouco mais à vontade, vendo que ainda nos restava uma última esperança de salvação. Augusto continuava inerte no fundo do barco, mas como corria perigo de se afogar (a água atingia quase um pé de altura no sítio onde ele tinha caído), tentei elevá-lo um pouco, e, para o manter na posição de sentado, passei-lhe à volta do peito uma corda que prendi a uma argola na coberta da cabine. Depois de ter arranjado tudo o melhor que podia, gelado e agitado como estava, encomendei-me a Deus e resolvi-me a suportar tudo o que pudesse acontecer com toda a coragem de que fosse capaz.


continua...




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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (02)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (03)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (04)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (05)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (06)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (fim)
Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(2)


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