domingo, 19 de maio de 2019

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo

Simone de Beauvoir



43. Fatos e Mitos


Terceira Parte
Os Mitos


CAPITULO II



PARA confirmar esta análise do mito feminino, tal qual se apresenta coletivamente, vamos considerar o aspecto singular e sincrético que assume em certos escritores. A atitude de Montherlant, D. H. Lawrence, Claudel, Breton, Stendhal, em relação à mulher, pareceu-nos típica entre muitas outras.




I




MONTHERLANT OU O PÃO DO NOJO




Montherlant inscreve-se dentro da longa tradição dos homens que retomaram, por sua conta, o maniqueísmo orgulhoso de Pitágoras. Ele estima, depois de Nietzsche, que somente as épocas de fraqueza exaltaram o Eterno Feminino e que o herói deve insurgir-se contra a Magna Mater. Especialista do heroísmo, empenha-se em destroná-la. A mulher é a noite, a desordem, a imanência. "Essas trevas convulsivas não são senão o feminino em seu estado puro", escreve, em Sur les Femmes, a propósito de Mme Tolstoi. Foi a seu ver a tolice, a baixeza dos homens de hoje que emprestaram uma forma positiva às deficiências femininas: fala-se do instinto das mulheres, de sua intuição, de sua adivinhação, quando fora preciso denunciar-lhe a ausência de lógica, a ignorância obstinada, sua incapacidade em apreender o real; elas não são efetivamente nem observadoras nem psicólogas; elas não sabem nem ver as coisas nem compreender os seres; seu mistério é uma ilusão, seus insondáveis tesouros têm a profundidade do nada; elas nada têm a dar ao homem e não podem senão ser-lhes nocivas. Para Montherlant a mãe é que é primeiramente a grande inimiga; em uma peça de moridade, L'Exil, ele focaliza uma mãe que impede o filho de se engajar; em Les Olympiques o adolescente que gostaria de se dedicar aos esportes é "barrado" pelo egoísmo medroso da mãe; em Les Célibataires e em Les jeunes Filles a mãe é descrita de maneira odiosa. Seu crime é querer conservar o filho encerrado para sempre nas trevas do ventre; ela o mutila a fim de poder açambarcá-lo e encher assim o vazio estéril de seu ser; é a mais lamentável das educadoras; corta as asas ao filho, retém-nos longe das alturas a que ele aspira, imbeciliza-o e avilta-o. Tais críticas não são sem fundamento. Mas, através das censuras explícitas que Montherlant dirige à mulher-mãe, é claro que o que detesta nela é seu próprio nascimento. Ele se crê deus, ele se quer deus: porque é homem, porque é "homem superior", porque é Montherlant. Um deus nunca foi engendrado; seu corpo, se é que tem um, é uma vontade encerrada em músculos duros e obedientes, não uma carne surdamente habitada pela vida e pela morte; a responsabilidade dessa carne perecível, contingente, vulnerável e que êle renega cabe à mãe. "O único lugar do corpo que era vulnerável em Aquiles era aquele pelo qual a mãe o segurara" (Sur les Femmes). Montherlant nunca quis assumir a condição humana; o que chama seu orgulho é desde o início uma fuga amedrontada ante os riscos que comporta uma liberdade empenhada no mundo através da carne; ele pretende afirmar a liberdade, mas recusar o compromisso; sem ligações, sem raízes, ele se acredita uma subjetividade soberanamente voltada sobre si mesma; a lembrança de sua origem carnal perturba esse sonho e ele recorre a um processo que lhe é habitual: em vez de superá-la, ele a repudia.

Aos olhos de Montherlant, a amante é tão nefasta quanto a mãe; ela impede o homem de ressuscitar o deus dentro de si; a parte da mulher, declara, é a vida no que tem de imediato; ela se nutre de sensações, ela chafurda na imanência, ela tem a mania da felicidade: quer encerrar o homem nisso, não sente o impulso da transcendência, não tem o sentido da grandeza; ama o amante em sua fraqueza e não em sua força, nas suas penas e não na sua alegria; ela o deseja desarmado, infeliz a ponto de querer, contra toda evidência, convencê-lo de sua miséria. Ele a ultrapassa e assim lhe escapa: ela aspira a reduzi-lo a sua própria medida a fim de se apossar dele. Porque ela precisa dele, não se basta, é um ser parasitário. Pelos olhos de Dominique, Montherlant mostra as passantes do Ranelagh "penduradas aos braços dos amantes como seres sem vértebras, semelhantes a grandes lesmas fantasiadas" (Le Songe). As mulheres são a seu ver, com exceção das esportistas, seres incompletos, destinados à escravidão; moles e sem músculos, não podem dominar o mundo, por isso mesmo trabalham com afinco para anexar-se um amante, ou melhor um marido. O mito do louva-a-deus não é, ao que eu saiba, utilizado por Montherlant, mas ele redescobre-lhe o conteúdo: amar, para a mulher, é devorar; pretendendo dar-se toma. Ele cita a exclamação de Mme Tolstoi: "Vivo por ele, para ele, exijo o mesmo para mim", e denuncia os perigos de uma tal fúria de amor. Encontra uma terrível verdade nas palavras do Eclesiastes: "Um homem que vos quer mal vale mais do que uma mulher que nos quer bem". Invoca a experiência de Lyautey: "Um de meus homens que se casa é um homem reduzido à metade". É principalmente para o "homem superior" que ele julga nefasto o casamento; é um aburguesamento ridículo. Seria possível dizer: Mme Ésquilo, ou vou jantar em casa dos Dante? O prestígio de um grande homem é enfraquecido pelo casamento, mas este principalmente quebra a solidão magnífica do herói, o qual "precisa não se distrair de si mesmo" (Sur les Femmes). Já disse que Montherlant escolheu uma liberdade sem objeto, isto é, que ele prefere uma ilusão de autonomia à autêntica liberdade que se empenha no mundo; é essa disponibilidade que ele pensa defender contra a mulher: ela incomoda, pesa. "Era um triste símbolo que um homem não pudesse andar direito porque a mulher que amava o segurava pelo braço." "Eu ardia, ela me apaga. Eu andava sobre as águas, ela pendura-se a meu braço e me afunda" (Les Jeunes Filles). Como pode ela ter tamanho poder se é apenas carência, pobreza, negatividade e sua magia, ilusória? Montherlant não o explica. Diz tão-somente com soberbia que "o leão teme com razão o mosquito" (Les Jeunes Filies). Mas a resposta é evidente: é fácil acreditar-se soberano quando se está só, acreditar-se forte quando se recusa cuidadosamente a carregar qualquer fardo. Montherlant escolheu a facilidade; ele pretende ter o culto dos valores difíceis, mas procura alcançá-los facilmente. "As coroas que damos a nós mesmos são as únicas que merecem ser usadas", diz o rei de Pasiphaé. Princípio cômodo. Montherlant sobrecarrega a fronte, veste-se de púrpura, mas bastaria um olhar alheio para revelar que seus diademas são de papel pintado e que, como o rei de Andersen, está inteiramente nu. Andar em sonho sobre as águas é muito menos cansativo do que marchar de verdade pelos caminhos da terra. Eis por que o leão Montherlant evita com terror o mosquito feminino: receia a prova do real (1)


(1) Este processo é o que Adler considera como a origem clássica das psicoses. O indivíduo dividido entre a "vontade de poder" e um "complexo de inferioridade" estabelece entre si e a sociedade a maior distância possível a fim de não ter que enfrentar a prova do real. Sabe que minaria as pretensões que só pode manter à sombra da má-fé. 


Se Montherlant tivesse verdadeiramente esvaziado de seu conteúdo o mito do eterno feminino, seria preciso felicitá-lo, É negando a Mulher que se pode ajudar as mulheres a se considerarem seres humanos. Mas viu-se que ele não pulveriza o ídolo: converte-o em monstro. Crê, também ele, nesta obscura e irredutível essência: a feminilidade. Considera, após Aristóteles e Sto. Tomás, que ela se define negativamente; a mulher é mulher por falta de virilidade; é o destino que todo indivíduo do sexo feminino deve suportar sem poder modificá-lo. Quem pretende escapar a esse destino situa-se no mais baixo degrau da escala humana; não consegue tornar-se homem e renuncia a ser mulher; não passa de uma caricatura irrisória, urna aparência; o fato de ser um corpo e uma consciência não lhe confere nenhuma realidade. Platônico em certos momentos, Montherlant parece considerar que só as Idéias de feminilidade e virilidade possuem o ser; o indivíduo que não participa nem de uma nem de outra tem apenas uma aparência de existência. Ele condena inapelavelmente essas "estriges" que têm a ousadia de se pôr como sujeitos autônomos, de pensar, de agir. Retratando Andrée Hacquebaut, pretende provar que toda mulher que se esforça por fazer de si uma pessoa, transforma-se em um títere escarninho. Naturalmente, Andrée é feia, desgraciosa, mal vestida, suja mesmo, com unhas e braços duvidosos; o pouco de cultura que lhe é atribuído bastou para matar toda sua feminilidade; Costals assegura-nos que ela é inteligente, mas, em todas as páginas que lhe consagra, Montherlant convence-nos da sua estupidez. Costals pretende ter simpatia por ela, Montherlant no-la torna odiosa. Com esse equívoco esperto, prova-se a tolice da inteligência feminina, estabelece-se que uma desgraça original perverteu na mulher todas as qualidades viris para as quais ela tende.

Montherlant concorda em admitir uma exceção para as desportistas; pelo exercício autônomo do corpo, podem elas conquistar um espírito, uma alma; ainda assim seria fácil fazê-las descer de tais alturas. Da vencedora dos mil metros a quem dedica um hino entusiasta, Montherlant afasta-se delicadamente: não duvida de que a seduziria com facilidade e quer poupar-lhe essa decadência. Dominique, de Le Songe, não se manteve nos cimos a que a chamava Alban; apaixona-se por ele: "A que era toda espírito, toda alma, suava, desprendia perfumes e, perdendo o fôlego, tossia repetidamente". Indignado, Alban expulsa-a. Pode-se apreciar uma mulher que pela disciplina do esporte matou em si a carne; mas é um escândalo odioso uma existência autônoma encerrada numa carne de mulher; a carne feminina é detestável a partir do momento em que uma consciência a habita. O que convém à mulher é ser puramente carne; Montherlant aprova a atitude oriental: como objeto de gozo o sexo frágil tem um lugar na terra, humilde sem dúvida, mas válido; ele encontra uma justificação no prazer que o macho extrai desse objeto, mas somente no prazer. A mulher ideal é perfeitamente estúpida e submissa; está sempre preparada para acolher o homem e nunca lhe pede nada. Assim é Douce, que Alban aprecia em certos momentos. "Douce, admiravelmente tola e tanto mais desejada quanto mais tola. . . inútil fora do amor e que ele evita então com uma doçura decidida" (Le Songe). Assim é Radídja, a pequena árabe de La Petite Infante de Castille, tranqüilo animal de amor que aceita documente prazer e dinheiro. Assim se pode imaginar o "animal feminino" encontrado em um trem espanhol: "Tinha um ar tão estúpido que me pus a desejá-la". O autor explica: "O que há de irritante nas mulheres é a pretensão à razão; quando exageram a animalidade, esboçam o sobre-humano"



continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe

O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia

O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...

O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)



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