quinta-feira, 16 de maio de 2019

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: L - Os Bons Cães e o Epílogo

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa




L

OS BONS CÃES 


Nunca me envergonhei, mesmo diante dos jovens escritores do meu século, da minha admiração por Buffon (49). Hoje, porém, não é a alma desse pintor da natureza maravilhosa que eu chamarei em meu auxílio. Não. 

Preferiria dirigir-me a Sterne (50) e dizer-lhe: — Desce do céu, ou sobe dos Campos Elíseos (51) até a mim, para inspirar-me, em favor dos bons cães, dos pobres cães, um canto digno de ti, oh humorista sentimental, oh incomparável humorista! Volta montado no famoso burrico que te acompanha para sempre na memória da posteridade! E não se esqueça esse burrico de trazer, delicadamente pendurado nos lábios, o biscoito imortal! Abaixo a musa acadêmica! Nada posso fazer com essa velha labrega. Invoco a musa familiar, civilizada, viva, para que me ajude a louvar os bons cães, os pobres cães, os cães enlameados, que todos evitam, como pestíferos e piolhentos, exceto o pobre, do qual são sócios, e o poeta, que os olha fraternalmente.

Fora o cachorro faceiro, o enfatuado quadrúpede, dinamarquês, king-charles, carlino ou gredino, tão cheio de si que se lança indiscretamente nas pernas ou nos joelhos do visitante, como se estivesse certo de agradar, turbulento como um garoto, fútil como uma sirigaita e, às vezes, grosseiro e insolente como um criado! Fora com essas serpentes de quatro patas, travessas e vadias, que se chamam lebreiras e que nem ao menos têm no pontudo focinho o faro bastante para seguir a pista de um amigo, nem na cabeça achatada bastante inteligência para jogar o dominó! Corrente para esses importunos parasitas! Voltem todos para a casinhola macia e forrada de crina! Eu canto o cão enlameado, o cão pobre, o cão sem domicílio, o cão vagabundo, o cão saltimbanco, o cão cujo instinto, como o do pobre, de histrião e de boêmio, é maravilhosamente aguçado pela necessidade, essa mãe bondosa, verdadeira patrona das inteligências! Eu canto os cães calamitosos, quer os que erram, solitários, nas ravinas sinuosas das imensas cidades, quer os que disseram ao homem abandonado, piscando os olhos espirituais: — Leva-me contigo, e das nossas misérias talvez façamos uma espécie de felicidade! Aonde vão os cães? – Indagava outrora Nestor Roqueplan (52) num imortal folhetim que ele sem dúvida esqueceu e do qual somente eu e talvez Sainte-Beuve (53) ainda nos lembremos.

Perguntais aonde vão os cães, oh homens pouco observadores? Vão cuidar dos seus afazeres. 

Questões de negócio, questões de amor. Através a bruma, a neve e o barro, sob a canícula causticante ou a chuva a escorrer, vão, voltam, disparam, passam debaixo dos veículos, excitados pelas pulgas, a paixão, a necessidade ou o dever. Como nós, levantam-se muito cedo e vão cuidar da vida ou entregar-se aos seus prazeres. 

Há os que se deitam diariamente numa ruína do subúrbio e, sempre à mesma hora, vão reclamar sua esmola à porta de uma cozinha do Palais-Royal (54); e há os que acorrem, aos bandos, de mais de cinco léguas, para partilhar a refeição que lhes prepara a caridade de certas donzelas sexagenárias, cujo coração desocupado se dedica aos animais, porque os homens imbecis o desprezam. 

Há outros que, como negros fugidos, loucos de amor, deixam de vez em quando o seu bairro para virem à cidade saracotear durante uma hora ao redor de uma bonita cadela, um pouco descuidada na toilette, mas orgulhosa e reconhecida.

São todos muito pontuais, sem precisarem de notas ou apontamentos.

Vós, que conheceis a preguiçosa Bélgica, já admirastes como eu esses cães vigorosos atrelados à carrocinha do carniceiro, da leiteira ou do padeiro, e que, com latidos de triunfo, testemunham o orgulhoso prazer que experimentam ao rivalizar com os cavalos? Aqui estão dois que pertencem a uma ordem ainda mais civilizada! Permita-me que vos introduza no quarto do saltimbanco ausente. Uma cama de madeira pintada, sem cortinados, cobertas em desordem e manchadas de percevejo, duas cadeiras de palha, uma panela de ferro, um ou dois instrumentos de música desafinados. Triste mobiliário! Mas, peço-lhe olhar para esses dois personagens inteligentes, de roupa ao mesmo tempo puída e suntuosa, cobertos como trovadores ou militares, a vigiar, com atenção de feiticeiros, a obra sem nome que requenta na panela ao fogo, com uma comprida colher plantada no meio, como um mastro a indicar que a construção está acabada. 

Não é justo que tão zelosos comediantes não se ponham a caminho sem ter forrado o estômago com uma sopa forte e substanciosa? E não perdoareis um pouco de sensualidade a esses pobres-diabos que, todos os dias, se veem obrigados a afrontar a indiferença do público e as injustiças de um diretor que fica com a melhor parte, comendo sozinho mais sopa do que quatro comediantes? Quantas vezes contemplei, a sorrir enternecido, todos esses filósofos de quatro patas, escravos complacentes, submissos e devotados, que o dicionário republicano tão bem poderia qualificar de serviçais, se a república, muito preocupada com a felicidade dos homens, tivesse tempo para cuidar da honra dos cães! E quantas vezes pensei que talvez houvesse um retiro (quem sabe, afinal?) para recompensar tanta coragem, tanta paciência e labor, um paraíso especial para os bons cães, os pobres cães, os cães enlameados e desolados. Afirma Swedenborg (55) que há um para os turcos e um para os holandeses! Os pastores de Virgílio (56) e de Teócrito (57) esperavam, como paga dos seus cantos modulados, um bom queijo, uma flauta do melhor fabricante, ou uma cabra de tetas bem cheias. O poeta que cantou os pobres cães recebeu como recompensa um bonito colete de uma só cor, ao mesmo tempo rica e desbotada, que faz pensar nos sóis de outono, na beleza das mulheres maduras e no verão de Saint-Martin (58)

Nenhum dos que estiveram na taberna da rua Villa Hermosa esquecerá a petulância com que o pintor tirou o colete para dá-lo ao poeta, compreendendo quanto era bom e honesto cantar os pobres cães.

Tal um magnífico tirano italiano, dos bons tempos, que oferecia ao divino Aretino (59) uma adaga cravejada de pedras preciosas, ou uma capa de couro, em troca de um precioso soneto ou de um curioso poema satírico. 

E toda vez que o poeta veste o colete do pintor, é constrangido a pensar nos bons cães, nos cães filósofos, no verão de Saint-Martin e na beleza das mulheres maduras.



LI

EPÍLOGO


Eu subi à montanha e pus-me a contemplar 
A cidade maldita, em sua vastidão: 
Hospital, purgatório, inferno, lupanar, 
Tudo, tudo a florir, como a flor em botão. 
Bem sabes, Satanás, patrono da desgraça, 
Que eu não iria lá para chorar em vão: 
Como o amante senil de uma velha devassa, 
Desejei me fartar da enorme barregã, 
Cujo canto infernal me remoça e me enlaça. 
Quer te veja a dormir nos lençóis da manhã, 
Fria, pesada, obscura, e quer te possa ver, 
Com teu véu de ouro e treva, enfeitada e louçã, 
Eu te amo, oh capital, como tu deves ser: 
Bandidos, cortesãs, a prodigar prazeres 
Que o profano vulgar não pode compreender.




fim...

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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.


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Leia também:


(49) Georges-Louis Leclerc de BUFFON (1707-1778), naturalista e escritor francês, autor da História Natural que apareceu de 1749 a 1789. Sábio dos mais eminentes, previu em sua obra, em vários importantes, as descobertas contemporâneas. 
(50) Laurence Sterne (1713-1768), escritor inglês, autor de Tristram Shandey e da Viagem Sentimental. Estilo cheio de humor e de emoção. 
(51) Na mitologia greco-romana, nome que se dá à mansão das almas dos que foram virtuosos durante a vida. 
(52) Nestor ROQUEPLAN (1804-1870), literato francês e diretor de teatros. 
(53) Charles-Augustin de SAINTE-BEUVE (1804-1869), célebre crítico francês, autor de numerosas obras: Odes, Vida, Poesia e Pensamentos de Joseph Delorme, Volúpia, Retratos Literários, Port-Royal, Palestras de Segunda-Feira, etc. 
(54) Célebre monumento de Paris, que Lemercier construiu em 1629 pra Richelieu (de onde o nome primitivo de Palais-Cardinal). Esse edifício, que se tornou propriedade nacional, passou por importantes reformas e foi durante muito tempo a residência dos príncipes de Orléans. 
(55) Emmanuel SWEDENBORG (1688-1772), filósofo místico sueco. 
(56) VIRGÍLIO (70-19 a.c.), o mais célebre dos poetas latinos, autor da Eneida, das Geórgicas e das Bucólicas. 
(57) Poeta grego, autor dos Idílios e dos Epigramas. Foi o criador do gênero bucólico e pastoril, mais tarde imitado por Virgílio. 
(58) Uma das pequenas Antilhas, dois terços da qual pertencem à França (capital Le Marigot). 
(59) Pedro ARETINO (1492-1557), famoso satírico italiano, nascido em Arezzo. Considerado licencioso e mau, mas admirado por seu estilo cheio de espírito. Autor dos Diálogos.


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