quarta-feira, 22 de maio de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda II — A prudência aconselha a sabedoria

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Segundo - A Queda



II — A prudência aconselha a sabedoria 





Nessa mesma noite, o bispo de Digne, depois do seu passeio pela cidade, recolhera-se e conservara-se fechado no seu quarto até muito tarde, ocupado com um grande estudo sobre os Deveres, que, infelizmente, ficou incompleto. Neste trabalho estudava ele quanto os santos padres e os doutores da igreja têm dito sobre tão importante matéria. O seu livro dividia-se em duas partes: a primeira tratava dos deveres de todos, a segunda dos deveres de cada um, segundo a classe a que pertence. Os deveres de todos são os principais. Há quatro que são os indicados por S. Mateus: deveres para com Deus (Mt VI), deveres para consigo próprio (Mt V, 29-30), deveres para com o próximo (Mt VII, 12), deveres para com as criaturas (Mt VI, 20-25). Quanto aos outros deveres, achara-os o bispo indicados e prescritos em diversas partes; aos soberanos e aos súbditos, na Epístola aos Romanos; aos magistrados, às esposas, às mães e aos mancebos, em S. Pedro; aos maridos, aos pais, aos filhos e aos criados, na Epístola aos Efésios; aos fiéis, na Epístola aos Hebreus; às virgens, na Epístola aos Coríntios. De todas estas prescrições formavam, à força de trabalho, um todo harmônico, que tencionava oferecer às almas. 

Às oito horas estava ainda a trabalhar, escrevendo incomodamente em quartos de papel, com um volumoso livro aberto sobre os joelhos, quando Magloire entrou, segundo o costume, para tirar a prata do armário junto do leito. 

Um momento depois, calculando que a mesa estaria posta e que talvez a irmã estivesse à espera dele, fechou o livro, levantou-se e encaminhou-se para a sala de jantar. 

A sala de jantar era uma sala oblonga, com fogão, uma porta para a rua, como já dissemos, e uma janela para o jardim. 

Efetivamente, Magloire acabava de pôr a mesa. Ao mesmo tempo que andava neste serviço, conversava com Baptistina. 

Sobre a mesa que ficava próxima do fogão estava colocado um candeeiro. No fogão crepitava uma boa fogueira. 

Facilmente se pode imaginar o aspecto daquelas duas mulheres, ambas com mais de sessenta anos. Magloire, baixa, gorda e ágil; Baptistina, magra, débil, meiga, um pouco mais alta do que o irmão, trajando um vestido de seda cor de castanha, que era a cor da moda em 1806, o qual ela comprara em Paris nesse ano e que ainda lhe durava. Para nos servirmos de uma dessas locuções vulgares que têm o mérito de exprimir numa só frase uma ideia que mal se desenvolveria numa página, Magloire parecia uma campônia e Baptistina uma fidalga. 

Magloire trazia uma touca branca de rufos na cabeça, um cordãozinho de oiro ao pescoço, único adereço feminino que havia em casa, um lenço preto posto por baixo de um vestido de lã preto, com mangas largas e curtas, um avental de chita de quadrados verdes e vermelhos, atado à cintura por uma fita verde, nos pés, sapatos grossos e meias amarelas, como as mulheres de Marselha. 

O vestido de Baptistina era talhado pelos moldes de 1806: cinta curta, saia de pouca roda, mangas de dragonas com abas e botões. Uma touca especial ocultava-lhe os cabelos brancos. 

Magloire tinha ar de inteligência, bondade e agilidade; os cantos da boca desigualmente contraídos, e o lábio superior mais grosso do que o inferior, davam-lhe uma expressão de orgulhosamente imperial. Enquanto o bispo não exprimia a sua vontade, ela falava resolutamente, com certa liberdade misturada de respeito, mas apenas ele a manifestava, obedecia-lhe tão submissamente como Baptistina. 

Quanto a Baptistina, esta nem sequer abria a boca. Limitava-se a obedecer e a condescender. Ainda mesmo em nova, não fora bonita; tinha olhos grandes e azuis à flor do rosto, nariz comprido acavaletado; mas o seu aspecto indicava inefável bondade, fora predestinada para a mansidão. Mas a fé, a caridade e a esperança, estas três virtudes que reanimam a alma, foram gradualmente elevando essa mansidão a santidade. A natureza fizera-a ovelha, a religião fê-la anjo. Pobre santa! Doce recordação desvanecida! 

Baptistina referiu tantas vezes, no decorrer do tempo, o que naquela noite se passou no paço, que muitas pessoas, que ainda hoje vivem, se recordam de todos os pormenores da narração. 

Na ocasião em que o bispo entrou, Magloire falava com certa vivacidade. Conversava com Baptistina sobre um assunto que lhe era familiar e ao qual o bispo estava acostumado. Tratava-se da porta da rua. 

Parece que, na ocasião em que saíra a fazer compras para a ceia, Magloire ouvira dizer certas coisas em diversos lugares. Falava-se de um homem de má catadura, de um vagabundo suspeito, que nesse dia tinha chegado à cidade, onde decerto ainda permanecia; dizia-se que era provável que nessa noite quem se recolhesse tarde, vesse algum mau encontro. Que a polícia era a culpada. Mas como não havia de ser assim, se o prefeito e o maire, por causa da sua inimizade, do que tratavam era de comprometer-se mutuamente, deixando andar tudo ao Deus dará? Que pertencia à gente prudente incumbir-se da polícia e guardar-se a si mesma, tendo o cuidado de fechar e aferrolhar bem as portas. Magloire acentuou muito estas últimas palavras, mas o bispo que vinha do seu quarto, onde senra frio, sentou-se em frente do fogão a aquecer-se, com o pensamento, ao que parecia, distraído noutras coisas. Por consequência, passava desapercebida para ele a frase que Magloire acentuava de propósito. Repetiu-a. Então, Baptistina, querendo satisfazer Magloire, sem desgostar o irmão, aventurou-se a dizer timidamente: 

— O irmão ouviu o que disse Magloire? 

— Vagamente — respondeu o bispo. 

Depois, voltando um pouco a cadeira, descansou as mãos nos joelhos e, erguendo para a velha criada o rosto cordial e risonho, a que o clarão da fogueira punha um tom insinuante, acrescentou: 

— Então, o que há? Que sucedeu? 

Magloire repetiu a história desde o princípio, exagerando-a até sem dar por isso. Era o caso que, àquela hora, se encontrava na cidade um vagabundo esfarrapado, uma espécie de mendigo, perigoso, o qual se apresentara a pedir pousada em casa de Jacquin Labarre, que não quisera recolhê-lo, e a quem tinham visto no boulevard Gassendi e andar a vaguear pelas ruas próximas ao anoitecer. Era uma espécie de malandrim com uma cara de meter medo. 

— Sim? — disse o bispo. 

A condescendência do prelado em interrogá-la animou Magloire, a quem, no seu entender, esta circunstância indicava que o bispo não estava longe de se assustar; portanto, prosseguiu com ar triunfante: 

— É como lhe digo, Monsenhor. Tenho o pressentimento de que esta noite acontece alguma desgraça na cidade! E ainda para mais, a polícia deixa correr tudo sem tomar providências (repetição inútil). Viver numa terra montanhosa e nem sequer haver à noite lampiões pelas ruas! Se alguém sai, arrisca-se a uma desgraça na escuridão! A menina também é da minha opinião, Monsenhor. 

— Eu? — atalhou Baptistina. — Eu não digo nada. O que o meu irmão fizer é sempre bem feito. 

Magloire continuou, como se não tivesse ouvido o protesto: 

— Dizíamos há pouco que esta casa está muito mal segura e que se Monsenhor o permitisse, eu iria ainda hoje chamar o serralheiro Paulino Musebois para vir pôr os antigos fechos que a porta tinha; estão ali, é um instante. E digo que são precisos os fechos, ainda que não seja senão por esta noite, porque uma porta que para se abrir de fora basta levantar uma aldraba é de fazer a gente andar sempre em sobressalto; e, ainda para mais, Monsenhor tem o costume de mandar logo entrar, e lá pela noite morta nem é preciso pedir licença... 

Neste momento bateram à porta com força. 

— Entre quem é — disse o bispo.


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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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