quarta-feira, 29 de maio de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (3)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




III – DA MESMA PARA A MESMA








dezembro


Minha querida, eis-me pronta para entrar na sociedade; por isso tratei de ser bem aloucada antes de me ajustar para ela. Hoje de manhã, após muitos ensaios, vi-me bem e devidamente espartilhada, calçada, apertada, penteada, vestida, enfeitada. Fiz como os duelistas antes do combate: exercitei-me a portas fechadas. Quis ver-me sob as armas, achei em mim, muito indulgentemente, um arzinho vencedor e triunfante, ao qual terão de submeter-se. Examinei-me e julguei-me. Passei minha forças em revista, pondo em prática esta bela máxima da Antiguidade: “Conhece-te a ti mesmo!”. Tive gozos infinitos ao conhecer-me. Somente Griffith partilhou do segredo do meu brinquedo de boneca. Eu era ao mesmo tempo a boneca e a criança. Pensas conhecer-me? Nada disso. 

Eis, Renata, o retrato de tua irmã outrora disfarçada de carmelita e ressuscitada como moça leviana e mundana. Excetuando a Provença, sou uma das mais belas pessoas da França. Isso me parece o verdadeiro sumário deste agradável capítulo. Tenho defeitos: mas se eu fosse homem, gostaria deles. Esses defeitos provêm das esperanças que dou. Quando durante quinze dias a gente admirou o delicioso arredondado do braço da própria mãe e que essa mãe é a duquesa de Chaulieu, minha querida, é uma desgraça ver que se tem braços magros; mas é um consolo verificar que se tem o pulso fino, certa suavidade de linhas, concavidades que um dia uma carne acetinada virá encher, roliçar e modelar. O desenho um tanto seco do braço repete-se nos ombros. Na verdade não tenho espáduas, mas sim duras omoplatas, que formam dois planos que se chocam. Meu busto tem também pouca flexibilidade, e os flancos são rígidos. Uf! Disse tudo. Mas os perfis são finos e firmes, a saúde morde, com sua flama viva e pura, essas linhas nervosas, a vida e o sangue azul correm em ondas sob uma pele transparente. Mas a mais loura das filhas de Eva, a loura, é uma negra comparada comigo! Mas tenho um pé de gazela! Mas todos os contornos são delicados, e possuo os traços corretos de um desenho grego. O tom da pele não é igual, é verdade, senhorita, mas é vivo: sou uma linda fruta verde e tenho dela a graça verde. Enfim, assemelho-me à figura que, no velho missal de minha tia, se ergue de um lírio violáceo. Meus olhos azuis não são tolos, são altivos, cercados de duas orlas de nácar vivo, matizado por lindas fibrilas e sobre os quais meus longos e bastos cílios parecem franjas de seda. Minha fronte fulgura, meus cabelos têm raízes deliciosamente implantadas e apresentam pequenas ondas de ouro pálido, acastanhadas no centro e de onde se escapam alguns fios rebeldes que dizem suficientemente que não sou uma loura sensaborona e sujeita a desmaios, mas sim uma loura meridional e cheia de sangue, uma loura que agride em vez de se deixar atingir. Não é que o cabeleireiro queria me alisar os cabelos em dois bandós e pôs-me na fronte uma pérola segura por uma corrente de ouro, sob pretexto que eu assim ficaria com um ar medieval? 

— Fique sabendo que não sou velha o bastante para estar na meia-idade e para usar um ornato que me rejuvenesça! 

Meu nariz é fino, as narinas são bem recortadas e separadas por um encantador septo róseo; é imperioso, zombeteiro, e sua extremidade é demasiado nervosa para engrossar ou ficar vermelha. Minha querida corça, se não é o caso de aceitar uma rapariga sem dote, então não entendo nada. Minhas orelhas têm dobras graciosas, uma pérola em cada extremidade pareceria amarela. Meu pescoço é longo, tem esse movimento serpentino que dá tanta majestade. Na sombra sua alvura se doura. Ah! Tenho talvez a boca um pouco grande, mas é tão expressiva, os lábios têm tão linda cor, os dentes riem tão prazenteiramente! E além disso, querida, tudo está em harmonia: um andar, uma voz! A gente se lembra dos meneios da saia da avó, que nunca a tocava: enfim, sou bela e graciosa. De acordo com a minha fantasia poderei rir como rimos tantas vezes e serei respeitada: haverá não sei o quê de imponente nas covinhas que o Gracejo com seus dedinhos leves cavará nas minhas alvas faces. Posso baixar os olhos e dar-me um coração de gelo sob minha fronte de neve. Posso ostentar o pescoço melancólico do cisne, tomando uma atitude de madona, e as virgens desenhadas pelos pintores estarão cem furos abaixo de mim; estarei mais alto do que elas no céu. Para me falar, um homem ver-se-á obrigado a musicalizar a voz. 

Estou, pois, armada de ponto em branco e posso percorrer o teclado da faceirice desde as notas mais graves às mais aflautadas. É uma vantagem imensa não ser uniforme. Minha mãe não é nem leviana, nem virginal; é exclusivamente digna, imponente; não pode sair disso senão para tornar-se leonina; quando ela fere, dificilmente cura; eu saberei ferir e curar. Sou ademais completamente diferente de minha mãe, de modo que não há rivalidade possível entre nós, a menos que questionemos sobre a maior ou menor perfeição de nossas extremidades, que são semelhantes. Eu puxei a meu pai, que é delgado e desenvolto. Tenho as maneiras de minha avó e seu encantador timbre de voz, uma voz de cabeça quando forçada, uma melodiosa voz de peito no diálogo comum. Parece-me que foi hoje somente que deixei o convento. Ainda não existo para a sociedade, sou-lhe desconhecida. Que momento delicioso! Ainda me pertenço, como uma flor que não foi vista e que acaba de desabrochar. Pois bem! Meu anjo, depois de passear pelo meu salão, olhando-me, depois que vi as ingênuas vestes da pensionista, senti não sei o quê no coração: saudades do passado, inquietações pelo futuro, temor da sociedade, adeus às nossas pálidas margaridas inocentemente colhidas, despreocupadamente desfolhadas; havia um pouco de tudo; mas também havia dessas ideias fantásticas que recalco para as profundezas de minha alma, onde não ouso descer e de onde elas sobem. 

Minha Renata, tenho um enxoval de noiva! Tudo está perfeitamente arrumado, perfumado, nas gavetas de cedro e de frente laqueada do delicioso gabinete de toilette. Tenho fitas, calçados, luvas, tudo em profusão. Meu pai deu-me graciosamente o que requer uma moça; um nécessaire, uma toilette, uma caçoula, um leque, uma sombrinha, um livro de orações, uma corrente de ouro, um xale de caxemira; prometeu mandar ensinar-me a montar a cavalo. Enfim, sei dançar! Amanhã, sim, amanhã à noite, serei apresentada. Minha toilette é um vestido de musselina branca. Como toucado levarei uma grinalda de rosas brancas, à grega. Tomarei meu ar de madona, quero mostrar-me bem tolinha e ter as mulheres do meu lado. Minha mãe está a mil léguas disso que te estou escrevendo, julga-me incapaz de refletir. Se ela lesse minha carta, ficaria abobada de espanto. Meu irmão honra-me com um profundo desprezo e continua a testemunhar-me as bondades de sua indiferença. É um belo rapaz, mas arreliento e melancólico. Descobri-lhe o segredo: nem o duque nem a duquesa o adivinharam. Embora duque e moço, tem inveja do pai, nada é no Estado, não tem cargo na corte, não pode dizer: “Vou à Câmara”. Em casa, só eu disponho de dezesseis horas para refletir: meu pai está nos negócios públicos e nos seus divertimentos, minha mãe também está ocupada; ninguém em casa se examina a si próprio, estão sempre fora, não há tempo suficiente para a vida. Estou extremamente curiosa por saber que atração invencível tem a sociedade para prender as pessoas todas as noites das nove às duas ou três horas da madrugada, para obrigar a tanto esforço e suportar tanta fadiga. Ao desejar vir para ela, eu não imaginava semelhantes distâncias, semelhantes exaltações: mas, em verdade, esquecia-me que se trata de Paris. Assim, pois, podem viver ao lado uns dos outros, em família, e não se conhecerem? Uma quase freira chega e em quinze dias vê o que um homem de Estado não vê em sua casa. Talvez o veja e haja alguma coisa de paternal na sua cegueira voluntária. Vou sondar esse recanto obscuro.





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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