segunda-feira, 27 de maio de 2019

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

Simone de Beauvoir



44. Fatos e Mitos




continuando...


I




MONTHERLANT OU O PÃO DO NOJO




Entretanto, Montherlant nada tem de um sultão oriental: falta-lhe primeiramente a sensualidade. Está longe de se deleitar sem segunda intenção com "animais femininos"; são "doentes, malsãs e nunca inteiramente limpas" (Les Jeunes Filies); Costals confia-nos que os cabelos dos jovens têm cheiro mais forte e melhor do que os das mulheres; ele sente, por vezes, nojo diante de Solange, diante "desse odor açucarado, quase enjoativo, desse corpo sem músculos, sem nervo, como uma lesma branca". Ele sonha com posses mais dignas de si, entre iguais, em que a doçura nascesse da força vencida. . . O oriental aprecia voluptuosamente a mulher e assim se estabelece entre amantes uma reciprocidade carnal: é o que manifestam as ardentes invocações do Cântico dos Cânticos, os contos das Mil e Uma Noites e tantas poesias árabes à glória da bem-amada. Por certo, há mulheres más; mas as há também saborosas, e o homem sensual abandona-se confiantemente em seus braços sem se achar humilhado. Ao passo que o herói de Montherlant está sempre na defensiva: "Possuir sem ser possuído, única fórmula aceitável entre o homem superior e a mulher". Ele fala de bom grado do momento do desejo, que se lhe afigura um momento agressivo, viril, mas afasta o do gozo; talvez se arriscasse a descobrir que ele também sua, desprende perfumes. Não: quem lhe ousaria respirar o odor, sentir-lhe o suor? Sua carne desarmada não existe para ninguém, porque não há ninguém diante dele: ele é a única consciência, uma pura presença transparente e soberana; e se o prazer existe para sua consciência, ele não o leva em consideração: seria ceder-lhe. Montherlant fala com complacência do prazer que dá, nunca do que recebe: receber é uma dependência. "O que peço a uma mulher é dar-lhe prazer"; o calor vivo da volúpia seria uma cumplicidade e ele não admite nenhuma; prefere a solidão altiva do domínio. São satisfações cerebrais e não sensuais que ele busca nas mulheres. 

Antes de tudo as de um orgulho que deseja exprimir-se mas sem correr riscos. Diante da mulher "tem-se o mesmo sentimento que diante de um cavalo, de um touro que se vai enfrentar: a mesma incerteza e o mesmo gosto de medir o próprio poder" (La Petite Infante de Castille). Medi-lo com outros homens seria por demais ousado: eles interviriam na prova, imporiam tabelas imprevistas, pronunciariam um veredicto estranho; diante de um touro, de um cavalo, permanece-se seu próprio juiz, o que é infinitamente mais seguro. Perante uma mulher, se bem escolhida, também se fica só: "Não amo na igualdade, porque na mulher é a criança que procuro". Esta lapalissade nada explica: por que procura a criança e não a igual? Montherlant seria mais sincero se dissesse que ele Montherlant, não tem igual; ou, mais exatamente, que não quer ter: seu semelhante amedronta-o. Na época de Les Olympiques admira no esporte o rigor das competições que criam hierarquias com as quais não se pode trapacear; mas ele próprio não entendeu a lição; no resto de suas obras e em sua vida, seus heróis, como êle mesmo, fogem a qualquer confronto; lidam com bichos, paisagens, crianças, mulheres-crianças, nunca com iguais. Antes apaixonado pela dura lucidez do esporte, Montherlant só aceita como amantes mulheres cujo juízo seu orgulho medroso não precisa temer; escolhe-as "passivas e vegetais", infantis, estúpidas, venais. Evitará sistematicamente atribuir-lhes uma consciência. Se lhes descobre algum vestígio, agasta-se e se vai; não se trata de estabelecer qualquer relação intersubjetiva com a mulher; no reino do homem ela deve ser unicamente um objeto animado. Nunca será encarada como sujeito, nunca seu ponto de vista será considerado. O herói de Montherlant tem uma moral que imagina ser arrogante e que é apenas cômoda; só se preocupa com suas relações consigo mesmo. Apega-se à mulher — ou melhor pega a mulher — não para desfrutá-la, mas para desfrutar de si mesmo. Sendo absolutamente inferior, a existência da mulher desvenda sem risco a superioridade substancial, essencial e indestrutível do homem.

Assim, a tolice de Douce de Le Songe, permite a Alban "reconstituir, até certo ponto, as sensações do semideus antigo desposando uma gansa fabulosa". Mal toca Solange e eis Costals transformado em um soberbo leão: "Mal se sentaram um ao lado do outro, ele pôs a mão sobre a coxa da jovem (por cima do vestido), depois manteve-a pousada no centro do corpo como um leão pousa a pata aberta sobre o quarto da carne que conquistou" (Les Jeunes Filles). Esse gesto, que na obscuridade dos cinemas tantos homens fazem modestamente, Costals proclama-o "o gesto primitivo do Senhor", Se os amantes, os maridos que beijam a amante antes de a possuir tivessem, como ele, o sentido da grandeza, conheceriam, sem maior esforço, essas poderosas metamorfoses. "Ele aspirava vagamente o rosto da mulher, como um leão que, despedaçando a carne que tem entre as patas, de vez em quando se detém para lambê-la". Esse orgulho carnívoro não é o único prazer que o macho extrai da fêmea; ela lhe serve de pretexto para experimentar livremente, e sempre sem risco, o próprio coração. Costals, certa noite, chega a divertir-se com sofrer até que, saciado seu apetite de dor, atira-se alegremente a uma coxa de frango. Só raramente é que a gente pode permitir-se um tal capricho. .. Mas há outras alegrias fortes ou sutis. A condescendência, por exemplo: Costals condescende em responder a certas cartas de mulheres e até o faz, por vezes, com cuidado. A uma camponesinha inspirada, escreve ao fim de uma dissertação pedante: "Duvido que possa compreender-me, mas isso é melhor do que se me tivesse abaixado até você". Agrada-lhe, às vezes, moldar uma mulher à própria imagem: "Quero que você seja para mim como uma cereja. . . não a ergui até mim para que você fosse outra coisa que não eu. Diverte-se com fabricar algumas belas recordações para Solange. Mas é principalmente quando dorme com uma mulher que sente com embriaguez sua prodigalidade: doador de alegria, de paz, de calor, de força, de prazer, as riquezas que esbanja enchem-no de satisfação". Nada deve a suas amantes; paga-as amiúde para ter certeza disso; mas mesmo quando o coito se realiza ao par, a mulher é sua devedora sem reciprocidade: ela não dá nada, ele toma. Por isso acha absolutamente normal mandar Solange ao loilette no dia em que a deflora: ainda que uma mulher seja ternamente querida, seria absurdo um homem constranger-se com ela; ele é macho por direito divino, ela por direito divino é votada ao bidê. O orgulho de Costals imita aqui tão fielmente o cafajestismo que não se sabe ao certo o que o diferencia de um caixeiro-viajante mal-educado.

O primeiro dever de uma mulher é submeter-se às exigências de sua generosidade; quando supõe que Solange não lhe aprecia as carícias, Costals fica furioso. Se gosta de Radidja é porque o rosto dela se ilumina de alegria quando ele a penetra. Então goza por sentir-se ao mesmo tempo animal de rapina e príncipe magnífico. Indaga-se, entretanto, com perplexidade de onde pode vir a embriaguez de possuir e satisfazer, se a mulher possuída e satisfeita não passa de uma pobre coisa, carne insípida em que palpita um erzats de consciência. Como Costals pode perder tanto tempo com criaturas vãs? Essas contradições dão a medida de um orgulho que não passa de vaidade.

Um deleite mais sutil do forte, do generoso, do senhor, é a piedade pela raça infeliz. Costals, de quando em quando, comove-se com sentir no coração tanta gravidade fraternal, tanta simpatia pelos humildes, tanta "piedade pelas mulheres". Haverá coisa mais tocante do que a doçura imprevista dos seres inflexíveis? Ele ressuscita nele essa pobre imagem de Epinal quando se debruça sobre esses animais enfermos que são as mulheres. Mesmo as desportistas, gosta de as ver vencidas, feridas, exaustas, magoadas; quanto às outras, ele as quer o mais desarmadas possível. A miséria mental delas repugna-lhe e no entanto Costals nos confia que "sempre preferia nas mulheres esses dias em que as sabia atingidas". Acontece-lhes ceder a essa piedade; chega a assumir compromissos, senão a cumpri-los, compromete-se a ajudar Andrée, a desposar Solange. Quando a piedade se retira de sua alma tais promessas morrem: não tem ele o direito de se contradizer? Ele é que estabelece as regras do jogo que joga consigo mesmo, como único parceiro.

Não basta considerá-la inferior, lamentável. Montherlant quer que a mulher seja desprezível. Afirma por vezes que o conflito do desejo com o desprezo é um drama patético: "Ah! desejar o que se desdenha, que tragédia!. . . Ter que atrair e rechaçar quase no mesmo gesto, acender e logo jogar fora como se faz com um fósforo, eis a tragédia das relações com as mulheres!" (La Petite Infante de Castille.) Em verdade não há tragédia senão para o fósforo, o que é negligenciável. Quanto ao acendedor, preocupado com não queimar os dedos, é evidente que essa ginástica o encanta. Se seu prazer não fosse "desejar o que se desdenha", não se recusaria sistematicamente a desejar o que estima: Alban não afastaria Dominique: preferiria "amar na igualdade"; poderia evitar desdenhar o que deseja; afinal de contas, não se vê por que, a priori, uma pequena dançarina espanhola jovem, bonita, ardente, simples, é tão desprezível. Por ser pobre, de baixa extração, sem cultura? É de temer que aos olhos de Montherlant sejam efetivamente taras. Mas principalmente ele a despreza como mulher por decreto; diz justamente que não é o mistério feminino que suscita os sonhos do homem e sim esses sonhos que criam mistério; mas ele também projeta no objeto o que sua subjetividade exige: não é porque são desprezíveis que ele desdenha as mulheres; é porque ele as quer desdenhar que elas lhe parcem abjetas. Sente-se encarrapitado em cumes tanto mais altivos quanto maior é a distância entre elas e ele: é o que explica que escolha, para seus heróis, amorosas tão lamentáveis. Ao grande escritor Costals opõe uma solteirona virgem da província, atormentada pelo sexo e pelo tédio, e uma pequena burguesa da extrema direita, ingênua e interesseira; é medir assim com medidas bem humildes um indivíduo superior: o resultado de tão inábil prudência é torná-lo bem pequeno a nossos olhos. Mas pouco importa, Costals acredita-se grande. As mais insignificantes fraquezas da mulher bastam para alimentar-lhe a soberbia. Um texto de Les Jeunes Filles é particularmente significativo. Antes de dormir com Costals, Solange faz sua toilette noturna. "Ela devia ir ao W.C., e Costals lembrou-se da égua que tivera, tão altiva e delicada que não urinava nem sujava nunca quando ele a montava." Percebe-se aqui o ódio da carne (pensa-se em Swift: Célia caga), a vontade de assimilar a mulher a um animal doméstico, a recusa em lhe reconhecer qualquer autonomia, ainda que de ordem urinária; mas, principalmente, enquanto Costals se indigna esquece que êle também possui uma bexiga e um cólon; da mesma forma, quando se sente enojado de uma mulher banhada de suor e de odores, abole todas as suas próprias secreções: é um puro espírito servido por músculos e um sexo de aço. "O desdém é mais nobre do que o desejo", declara Montherlant em Aux Fontaines du Désir; e Álvaro: "Meu pão é o nojo" (Le maítre de Santiago). Que álibi é o desprezo, quando se compraz em si mesmo! Em se contemplando e julgando, sente-se o indivíduo radicalmente diferente do outro que condena, lava-se sem esforço das taras de que o acusam.

Com que embriaguez Montherlant exala durante toda a sua vida seu desprezo pelos homens! Basta-lhe denunciar a estupidez deles para que se acredite inteligente, a covardia deles para que se imagine corajoso. No início da ocupação entrega-se a uma orgia de desprezo pelos compatriotas vencidos: ele não é nem francês nem vencido; flutua acima de todos. Em meio a uma frase, convém em que afinal ele, Montherlant, que acusa, não fez nada mais do que os outros para prevenir a derrota; não consentiu sequer em ser oficial; mas logo recomeça a acusar com uma fúria que lhe faz perder as estribeiras (Le Solstice de Juin). Se afeta afligir-se com seus nojos é para os sentir mais sinceros e com eles se regozijar ainda mais. Na verdade, encontra nisso tantas comodidades que procura sistematicamente arrastar a mulher para a abjeção. Diverte-se em tentar com dinheiro ou jóias raparigas pobres: se aceitam seus presentes mal intencionados, rejubila-se. Joga um jogo sádico com Andrée pelo prazer, não de a fazer sofrer, mas sim de vê-la aviltar-se. Incita Solange ao infanticídio; ela admite a perspectiva e os sentidos de Costals se inflamam: e num enlevo de desprezo ele possui essa assassina em potencial.

A chave dessa atitude está no apólogo das lagartas, em Le Solstice de Juin; qualquer que tenha sido a intenção recôndita, ele é em si mesmo bastante significativo. Mijando nas lagartas, Montherlant diverte-se com poupar algumas; concede uma piedade sorridente às que se esforçam por viver e dá-lhes, generosamente, uma oportunidade; o brinquedo encanta-o. Sem as lagartas, o jato urinário não passaria de uma excreção; mas, assim, torna-se um instrumento de vida e de morte; diante do bicho rastejante, o homem que alivia a bexiga conhece a solidão despótica de Deus, sem ameaça de reciprocidade. Assim, ante os animais femininos, o homem do alto de seu pedestal, ora cruel, ora terno, justo ou caprichoso, dá, retoma, satisfaz, apieda-se, irrita-se; só obedece a seu prazer; é soberano, livre, único. Mas é preciso que esses animais sejam unicamente animais; cumpre escolhê-los de propósito, lisonjeando-lhes as fraquezas, tratando-os como bichos tão obstinadamente que acabem aceitando sua condição. Por isso, os brancos de Luisiana e Geórgia adoram os pequenos furtos e mentiras dos negros. Sentem-se confirmados na superioridade que lhes confere a cor da pele e, se um desses negros insiste em se mostrar honesto, muito mais maltratado será. Assim se praticava sistematicamente nos campos de concentração o aviltamento do homem: a raça dos senhores encontrava nessa abjeção a prova de que era de essência sobre-humana.




continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)


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