terça-feira, 28 de maio de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(2)

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837




1 — Aventureiros Precoces (2)



continuando...



Mal tinha acabado de tomar estas resoluções quando, subitamente, um grande e longo grito, um urro, como que saído das gargantas de mil demônios, pareceu atravessar o espaço e passar por cima do nosso barco. Nunca, por mais que eu viva, poderei esquecer a intensa agonia de terror que senti naquele momento. Arrepiaram-se-me os cabelos, senti o sangue gelar-me nas veias, o meu coração deixou de bater e, sem nunca levantar os olhos para ver a causa do meu terror, caí, como um peso inerte, sobre o corpo do meu amigo. 

Quando recuperei os sentidos, encontrava-me no camarote de um grande baleeiro, o Pinguim, com destino a Nantucket. Alguns indivíduos estavam debruçados sobre mim, e Augusto, mais pálido do que a morte, ocupava-se em friccionar-me as mãos com toda a energia. Ao ver-me abrir os olhos, as suas exclamações de gratidão e de alegria provocaram, alternadamente, riso e lágrimas entre os homens de rostos duros que me rodeavam. O mistério do nosso salvamento em breve me foi explicado. 

Tínhamos sido abalroados pelo baleeiro, que navegava perto e que, com as velas tão abertas quanto lhe permitia o tempo, se dirigia para Nantucket; por isso, avançava para nós quase em ângulo reto. Alguns homens estavam de vigia na proa, mas só viram o nosso barco quando era impossível evitar o embate: foram os seus gritos de alarme que tanto me aterrorizaram. O grande navio, segundo nos disseram, passou sobre nós com a mesma facilidade com que nós teríamos deslizado sobre uma pena, e sem qualquer incômodo para a sua marcha. Nem um grito se ouviu da coberta do veleiro martirizado, apenas um ligeiro ruído, como uma queda, que se misturou com o rugir do vento e da água, quando o frágil barco, já submerso, foi aplainado pela quilha do seu carrasco, mas foi tudo. Pensando que o nosso barco (sem mastros, lembrem-se) não passava de um destroço, o capitão (capitão E. T. V. Block, de New London) queria seguir viagem ignorando totalmente o incidente. Felizmente, dois dos homens que estavam de vigia juraram que tinham visto alguém ao leme e afirmaram que ainda era possível salvá-lo. Seguiu-se uma discussão, mas Block encolerizou-se e acabou por dizer que «não fazia parte do seu trabalho velar eternamente por todas as cascas de noz»; que o navio não iria virar de bordo por causa de uma palermice e que, se havia um náufrago, não era culpa sua, pois só a si próprio podia censurar; «que se afogasse e fosse para o diabo!» ou quaisquer outras palavras do mesmo gênero. Porém, Henderson, o imediato, mostrou-se indignado, assim como toda a tripulação, com aquelas palavras que demonstravam crueldade e falta de sentimentos. Falou com firmeza, sentindo-se apoiado pelos marinheiros, dizendo ao capitão que o considerava digno da forca e que desobedeceria às suas ordens, mesmo que isso implicasse a sua morte ao chegar a terra. Correu para a ré e, empurrando Block (que estava lívido e mudo), apoderou-se do leme e gritou com a voz firme: «Virar de bordo!». Os homens correram para os seus postos e o navio deu uma volta. Tudo isto se passara em cerca de cinco minutos e era, agora, impossível salvar o indivíduo que pensavam ter visto a bordo do veleiro. Porém, como os leitores já sabem, Augusto e eu fomos retirados e a nossa salvação parecia ser o resultado de uma sorte incrível, que as pessoas sensatas e religiosas atribuem à intervenção especial da Providência. 

Enquanto o navio continuava à capa, o imediato mandou arriar o bote e saltou para dentro dele, segundo julgo, com dois homens que afirmavam ter-me visto ao leme. Acabavam de se afastar do costado sotavento (estava luar), quando o navio deu uma forte guinada de barlavento e Henderson no mesmo instante pôs-se em pé e gritou aos homens que remassem para a ré. Não dizia mais nada, repetindo com impaciência: «Remem para a ré; remem para a ré!» Remavam tão depressa quanto podiam, mas durante este tempo, o navio tinha-se virado e começava a avançar, embora todos os braços a bordo se empenhassem em diminuir o pano. Apesar do perigo da tentativa, o imediato agarrou-se aos grandes cabos assim que eles ficaram ao seu alcance. Então, uma nova e forte guinada lançou o lado de estibordo para fora de água quase até à quilha, e a causa da sua ansiedade ficou à vista. Surgiu o corpo de um homem, preso da maneira mais estranha ao fundo polido e brilhante (o Pinguim era forrado e cavilhado de cobre), batendo violentamente contra o casco a cada movimento. Depois de alguns esforços ineficazes, recomeçados a cada guinada do navio e correndo o risco de despedaçar o bote, fui finalmente libertado da perigosa situação em que me encontrava e içado para bordo, pois aquele corpo era o meu. Parece que uma das cavilhas do madeiramento, que se tinha soltado e abrira caminho através do cobre, me tinha prendido quando passei por debaixo do barco, daquela forma tão estranha. A ponta da cavilha tinha furado a gola do meu casaco de tecido grosso e a parte posterior do meu pescoço, penetrando entre dois tendões, mesmo sob a orelha direita. Puseram-me imediatamente na cama, embora desse poucos sinais de vida. Não havia médico a bordo. Contudo, o capitão tratou-me com todos os cuidados, sem dúvida para se reabilitar aos olhos da tripulação da sua cruel conduta na primeira parte da aventura. 

Entretanto, Henderson tinha-se afastado outra vez do navio, apesar do vento soprar como uma tempestade. Passados alguns minutos deparou com destroços do nosso barco e pouco depois um dos seus homens dizia-lhe que, de tempos a tempos, distinguia através do rugido da tempestade, um grito. Isto levou os corajosos marinheiros a prosseguirem as suas buscas durante cerca de meia hora, apesar dos repetidos sinais do capitão Block, dizendo-lhes que voltassem, e do perigo mortal e iminente que representava cada minuto dentro daquela embarcação. Realmente é difícil imaginar como o pequeno bote resistiu mais de um minuto à destruição. Mas fora construído para a pesca à baleia e estava munido, como pude verificar mais tarde, de cavidades de ar, a exemplo de alguns botes de salvamento existentes nas costas do País de Gales. 

Depois de terem procurado, em vão, durante todo o tempo que mencionei, resolveram-se a regressar ao navio. Mal tinham tomado esta resolução, quando ouviram um grito fraco sair de um objeto negro que passou com rapidez perto deles. Iniciaram a perseguição de tal coisa acabando por a agarrar: era a coberta do Ariel e a sua cabina. Augusto debatia-se em grande agonia. Quando o recolheram, verificaram que estava preso por uma corda aos destroços flutuantes. Se bem me lembro tinha sido eu que tinha passado esta corda à volta do peito de Augusto, prendendo-a a uma argola, para o manter numa boa posição; e, ao fazer isto, parece que tinha conseguido salvar-lhe a vida. O Ariel era de construção frágil e, ao naufragar, toda a armação se tinha quebrado; naturalmente, a coberta da cabina, foi arrancada pela força da água, separou-se do cavername e pôs-se a flutuar com outros fragmentos; Augusto flutuava com eles, escapando, assim, a uma morte horrível. 

Só passada mais de uma hora após ter sido depositado a bordo do Pinguim é que ele deu sinais de vida e compreendeu a natureza do acidente que tinha acontecido ao nosso barco. Com o tempo, despertou completamente e falou em pormenor das sensações que tivera quando estava na água. Tinha acabado de recuperar um pouco os sentidos, quando se encontrou abaixo do nível da água, gritando, girando com uma incrível rapidez e sentindo uma corda estreitamente apertada e enrolada duas ou três vezes à volta do pescoço. Um instante depois, veio à tona da água, até a cabeça bater com violência contra uma matéria dura, fazendo-o regressar à insensibilidade. Ao recuperar os sentidos, sentiu-se mais senhor da sua razão, embora ela estivesse ainda confusa e obscura. Compreendeu então que tinha acontecido qualquer acidente e que se encontrava debaixo de água, embora a boca se mantivesse à superfície e conseguisse respirar. Talvez, naquele momento, a cabina fosse arrastada pelo vento, que assim o levava, flutuando de costas. Durante o tempo que conseguisse manter esta posição era praticamente impossível que se afogasse. Porém, uma enorme vaga lançou-o contra a coberta; esforçou-se por manter esta nova posição, gritando de vez em quando por socorro. Pouco antes de ser descoberto por Henderson, tinha sido obrigado a desprender-se devido ao esgotamento e, tornando a cair no mar, julgou-se perdido. Durante todo o tempo que durou esta luta não lhe ocorreu a mínima lembrança do Ariel nem de nenhum facto relacionado com a origem da catástrofe. Um sentimento vago de terror e de desespero tinham-se apoderado de todas as suas faculdades. Quando finalmente foi recolhido, tinha perdido a razão por completo; e, como já disse, só uma hora depois de ter sido levado para bordo do Pinguim tomou plena consciência da situação. Quanto a mim, fui retirado num estado muito próximo da morte (e só depois de três horas e meia, durante as quais tudo foi tentado) graças a vigorosas fricções com panos de flanela embebidos em óleo quente, processo sugerido por Augusto. O ferimento que eu tinha no pescoço, embora tivesse muito mau aspeto, não era grave e depressa me curei. 

O Pinguim entrou no porto às nove horas da manhã, depois de se ter visto obrigado a lutar contra uma das mais fortes borrascas sentidas ao largo de Nantucket. Augusto e eu arranjamo-nos para aparecer em casa da senhora Barnard à hora do almoço que, felizmente, estava um pouco atrasado devido à festa do dia anterior. Penso que todas as pessoas presentes à mesa estavam também demasiado cansadas para repararem nas nossas fisionomias extenuadas, pois não seria preciso muita atenção para o notarem. Aliás, os estudantes são capazes de produzir milagres para fazer crer uma mentira e não acredito que um só dos nossos amigos de Nantucket tenha pensado que a terrível história que alguns marinheiros contavam, que tinham afundado um navio no mar alto e afogado trinta ou quarenta pobres diabos, tivesse alguma ligação com o Ariel, com o meu camarada ou comigo. Ele e eu falamos depois várias vezes desta aventura, sempre com certa emoção. Numa das nossas conversas, Augusto confessou-me francamente que em toda a sua vida nunca tinha sentido uma tão grande sensação de medo, como quando, no nosso pequeno barco descobrira, de repente, toda a extensão da sua embriaguez e se sentira esmagar por ela.





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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (02)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (03)
dgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (04)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (05)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (06)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (fim)
Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(2)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(1)

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