quinta-feira, 9 de maio de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVI - Vanda

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







PLANGÊNCIA DA TARDE


Quando do campo as prófugas ovelhas 
Voltam à tarde, lépidas, balando, 
Com elas o pastor volta cantando 
E fulge o ocaso em convulsões vermelhas.

Nos beirados das casas, sobre as telhas, 
Das andorinhas esvoaça o bando... 
E o mar, tranqüilo, fica cintilando 
Do sol que morre às últimas centelhas.

O azul dos montes vago na distância... 
No bosque, no ar, a cândida fragrância 
Dos aromas vitais que a tarde exala.

Às vezes, longe, solta, na esplanada, 
A ovelha errante, tonta e desgarrada, 
Perdida e triste pelos ermos bala...





ALMA ANTIGA


Põe a tua alma francamente aberta 
Ao sol que pelos páramos faísca, 
Que o sol para a tua alma velha e prisca 
Deve de ser como um clarim de alerta.

Desperta, pois, por entre o sol, desperta 
Como de um ninho a pomba quente e arisca 
À luz da aurora que dos altos risca 
De listrões d’ouro a vastidão deserta.

Vai por abril em flores gorjeando 
Como pássaro exul as canções leves 
Que os ventos vão nas árvores deixando.

E tira da tua alma, ó doce amiga, 
Almas serenas, puras como a neve, 
Almas mais novas que a tua alma antiga!





VANDA


Vanda! Vanda do amor, formosa Vanda, 
Macuana gentil, de aspecto triste, 
Deixa que o coração, que tu poluíste 
Um dia, se abra e revivesça e expanda.

Nesse teu lábio sem calor onde anda 
A sombra vã de amores que sentiste 
Outrora, acende risos que não viste 
Nunca e as tristezas para longe manda.

Esquece a dor, a lúbrica serpente 
Que, embora esmaguem-lhe a cabeça ardente, 
Agita sempre a cauda venenosa.
Deixa pousar na seara dos teus dias 
A caravana irial das alegrias 
Como as abelhas pousam numa rosa.




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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