domingo, 12 de maio de 2019

Gente Pobre - 39. Receio tanto o futuro! - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


39.




27 de setembro




Querido Makar Alexeievitch:



O senhor Buikov disse que preciso de levar, pelo menos, três dúzias de camisas de holanda. Por isso, tenho de arranjar, a toda a pressa, costureiras de roupa branca que me façam duas dúzias, pois o tempo urge. O senhor Buikov está aborrecido por não se ter lembrado dos incômodos que o arranjo do enxoval ocasiona. 

O nosso casamento realizar-se-á daqui a cinco dias e no seguinte partimos. O senhor Buikov tem muita pressa e diz que não devemos perder tanto tempo com estas ninharias. Estou tão cansada de toda esta lida que mal me posso ter de pé. Ainda tenho de fazer muito trabalho e, contudo, quem sabe se não seria preferível não me incomodar tanto com estas coisas! Além disso, não temos rendas que cheguem e temos de comprar mais algumas; o senhor Buikov não quer que a sua mulher vá vestida como uma cozinheira e deseja que ela meta a um canto todas as senhoras das redondezas. São estas as suas palavras. 

Por isso, peço-lhe, querido Makar Alexeievitch, que vá a casa de madame Chiffon, na rua Gorochovaya, e lhe diga, em primeiro lugar, que me mande, o mais depressa possível, algumas costureiras, e em segundo lugar, que ela própria faça o favor de passar por aqui; não posso lá ir, porque hoje sinto-me muito doente. A nossa nova casa é muito fria e está numa desordem que mete medo. A tia do senhor Buikov mal pode respirar de tão velha e doente. Receio bem que exale o último suspiro antes da nossa viagem de núpcias, O meu futuro marido, porém, diz-me que não tema tal coisa, pois ela depressa se restabelecerá. 

Cá em casa anda tudo numa barafunda, como costuma dizer-se. Como o senhor Buikov não vive aqui, as criadas andam de um lado para o outro e fazem o que lhes apetece. Às vezes apenas disponho da Fédora para o serviço. O criado de quarto do senhor Buikov , a quem compete manter o pessoal na ordem, não apareceu cá nos últimos três dias. O patrão vem todas as manhãs, de carro, e exalta-se; ontem bateu no criado, pelo que foi incomodado pela Polícia... 

Neste momento não tenho quem vá entregar-lhe esta carta. Por isso, segue pelo correio. 

Como de costume, já me esquecia do mais importante! Diga a madame Chiffon que troque as rendas por outras a dizer com a amostra que ontem escolhi, e depois venha cá mostrar-me o que arranjou. Diga-lhe ainda que, com respeito à guarnição, mudei de ideia: quero-a também bordada. Ah! Recomende-lhe que o monograma dos lenços tem de ser trabalhado e não simples... Compreende? Trabalhado! Tome bem sentido! Ah! Ainda me esquecia outra coisa! Diga-lhe que quero a capa de arminho bem guarnecida a cordão, e o peitilho da blusa com uma renda ou uma guarnição larga. Explique-lhe tudo bem, Makar Alexeievitch! 

Sua



B. D.





P. S. — Estou envergonhada de voltar a incomodá-lo com os meus recados! Anteontem fi-lo correr de um lado para outro durante toda a tarde. Mas que hei de fazer? A nossa casa está em completa desordem e eu sinto-me doente. Não se aborreça comigo, Makar Alexeievitch! Se soubesse a pena que tenho de si! Que há de ser do meu amigo, do meu bom e querido amigo Makar Alexeievitch? Receio tanto o futuro! Ao pensar nele, fico apreensiva e mil pressentimentos maus me cruzam pela cabeça. 

Por amor de Deus, meu amigo, não se esqueça de tudo o que lhe peço que diga a madame Chiffon. Receio que façam tudo ao contrário. Fixe bem: tudo com cordão e não simples bordado!



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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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