sexta-feira, 3 de maio de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha (2)

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Segundo - A Queda



I — 
No fim de um dia de marcha




continuando... 




Entretanto, o forasteiro parecia mergulhado nas suas reflexões. 

O taberneiro voltou para junto da chaminé, pôs subitamente a mão no ombro do desconhecido e disse-lhe: 

— Trata de sair já daqui. 

O homem voltou-se e respondeu com brandura: 

— Também sabe?... 

— Sei. 

— Já na outra estalagem não me quiseram recolher. 

— E nesta põem-te fora. 

— Para onde quer que eu vá? 

— Para onde quiseres! 

O desconhecido pegou no cajado e na mochila e saiu. Quando ele saiu, vários rapazes que o tinham seguido desde a Cruz de Coíbas e que pareciam estar à sua espera, começaram a atirar-lhe pedradas. Ele voltou-se para trás e ameaçou-os com o cajado; os rapazes dispersaram logo como um bando de estorninhos. 

Continuando a caminhar passou em frente da cadeia. Da porta pendia uma corrente de ferro presa a uma sineta, puxou por ela. 

Quase no mesmo instante, abriu-se um postigo. 

— Senhor carcereiro — disse ele, tirando respeitosamente o boné — faz-me o favor de me recolher por esta noite? 

— A cadeia não é estalagem! — respondeu uma voz. — Faça com que o prendam e para cá virá! 

E ato contínuo fechou o postigo.

O desconhecido continuou a caminhar e entrou numa rua, orlada de jardins em quase toda a sua extensão, fechados apenas por sebes, o que a tornava mais alegre. Entre os jardins e as sebes avistou uma casinha branca de um só andar, através de cuja janela se via luz. Espreitou pela vidraça como fizera na taberna. Era uma sala grande caiada de branco, com uma cama coberta por uma colcha de chita e um berço a um canto, algumas cadeiras de palhinha e uma espingarda de dois canos pendurada na parede. No meio da casa uma mesa com comida. Um candeeiro de latão alumiava a toalha de grosseiro linho branco, um cangirão de estanho, luzente como prata e cheio de vinho, uma terrina de barro escuro, que fumegava. A mesa estava sentado um homem de meia idade, rosto franco e alegre, brincando com uma criancinha que tinha nos joelhos. A curta distância via-se uma mulher, ainda nova, a amamentar outra criança. O pai e a criança riam muito, a mãe sorria. 

O desconhecido quedou-se um instante a contemplar este sereno e risonho espetáculo. O que lhe iria no espírito? Só ele o poderia dizer. É natural que pensasse que uma casa onde havia alegria, devia ser hospitaleira e que onde via tanta felicidade talvez encontrasse alguma compaixão. 

Bateu ao de leve na vidraça com os dedos. 

Vendo que não fora ouvido, bateu segunda vez e ouviu então a mulher dizer: 

— Parece-me que bateram. 

— Eu não ouvi — respondeu o marido. 

O homem tornou a bater. 

O marido levantou-se, pegou no candeeiro, dirigiu-se para a porta e abriu-a. 

Era um homem de elevada estatura, meio camponês, meio operário. Trazia um largo avental de couro que lhe subia até ao ombro esquerdo e sobre o qual lhe pendia à cintura, tão seguros como se estivessem num cabide, um martelo, um lenço vermelho e um polvorinho. A camisa, desapertada, deixava-lhe a descoberto o alvo e entroncado pescoço. Tinha sobrancelhas espessas, barba comprida, os olhos à flor do rosto e, além de tudo isto, esse ar de quem está em sua casa, que é uma coisa inexprimível. 

— Peço-lhe que me desculpe de o ter incomodado — disse o desconhecido — mas poderia o senhor, pagando eu, dar-me um prato de sopa e um canto para dormir na barraca que está no jardim? 

— Quem é você? — perguntou o dono da casa. 

O homem respondeu: 

— Venho de Puy Moisson. Caminhei todo o dia para vencer as doze léguas até aqui. Poderia fazer-me o que lhe pedi, pagando? 

— Eu não tinha dúvida em recolher um homem de bem que me pagasse — disse o camponês. — Mas porque não vai para a estalagem? 

— Não têm lugar. 

— Não é possível! Hoje não é dia de mercado. Já foi à estalagem do Labarre? 

— Já, sim, senhor. 

— E então? 

O desconhecido respondeu com dificuldade:

— Não sei, não me quis receber. 

— E já foi a uma estalagem que há na rua de Chaffaut? 

Esta segunda pergunta aumentou extraordinariamente o embaraço do forasteiro, que balbuciou: 

— Aí também não me quiseram dar pousada. 

O rosto do dono da casa assumiu então uma expressão de desconfiança. Mirou novamente o desconhecido dos pés à cabeça e de repente exclamou com uma espécie de estremecimento: 

— Será você o tal homem? 

Dizendo isto, relanceou outro olhar para o desconhecido, deu três passos para trás, pousou o candeeiro em cima da mesa e lançou mão da espingarda, que se encontrava pendurada na parede. 

Às palavras do camponês: «Será você o tal homem?», a mulher levantara-se, pegara nas criancinhas ao colo e refugiara-se precipitadamente atrás do marido, olhando aterrada o desconhecido, com o peito descoberto, o olhar desvairado, murmurando em voz baixa: 

— É decerto um ladrão! 

Tudo isto tivera lugar em menos tempo do que é necessário para o imaginar. Depois de examinar algum tempo o homem como quem examina uma víbora, o dono da casa voltou para a porta e disse: 

— Vai-te daqui! 

— Por caridade — disse o homem — dê-me ao menos um prato de sopa! 

— Dou-te é um tiro — disse o camponês. 

E em seguida fechou violentamente a porta. O desconhecido ouviu correr os ferrolhos e, decorrido um momento, fechou-se também a janela e ouviu ainda o ruído de uma tranca de ferro, com que a segurava. 

A noite continuava a descer e a aragem fria dos Alpes aumentava de força. Ao clarão do dia expirante, o desconhecido avistou, num dos jardins que orlam a rua, uma espécie de cabana que lhe pareceu ser feita de feixes de feno. Saltou resolutamente uma grade de madeira e achou-se no jardim. Aproximou-se da cabana, que tinha por porta uma abertura estreita e pouco elevada, assemelhando-se aos abrigos que os cantoneiros constroem na beira das estradas. Supôs ser, efetivamente, a cabana de um cantoneiro; tinha frio e fome; não poderia matar a fome, mas ao menos tinha ali um abrigo contra o frio. De ordinário, estas cabanas não são ocupadas de noite. 

Deitou-se de bruços e entrou para a cabana, onde encontrou calor e uma cama de palha. Conservou-se algum tempo deitado, sem poder fazer o menor movimento, tão fagado ele estava, e em seguida, como a mochila que trazia às costas o incomodava, e era, além disso, um ótimo travesseiro, principiou a desatar uma das correias. Neste momento ouviu um rosnar feroz. Olhou. À entrada da cabana desenhava-se, no meio das trevas, a cabeça dum enorme mastim. 

Abrigara-se na casinhota de um cão. 

Dotado de prodigiosa força, o homem lançou mão do cajado, fez da mochila escudo contra a sanha do cão e saiu da casinhota como pôde, não sem ver aumentar os rasgões dos seus andrajos. 

Saiu igualmente do jardim, mas recuando e obrigado, para conservar o mastim em respeito, a empregar o manejo do cajado que os mestres deste gênero de esgrima chamam «sarilho». 

Quando conseguiu, não sem custo, sair do jardim e se encontrou outra vez na rua, só, sem abrigo, expulso até da miserável cabana, deixou-se cair sobre uma pedra, exclamando: 

— Sou ainda menos que um cão! 

Decorridos instantes, levantou-se e pôs-se de novo a caminho para fora da cidade, esperando encontrar nos campos alguma árvore ou algum moinho abandonado onde se abrigasse. 

Caminhou assim durante algum tempo, com a cabeça pendida para o peito. Quando se viu longe de toda a espécie de habitação humana, ergueu a vista e olhou em torno de si. Estava no meio duma planície e diante dele erguia-se uma dessas pequenas colinas cobertas de palha cortada rente, as quais, depois da ceifa, parecem cabeças rapadas. 

O horizonte estava escuro; não o escureciam somente as sombras da noite, mas as nuvens muito baixas, que pareciam apoiar-se na própria colina e que se elevavam vagarosamente, cobrindo o céu em toda a sua extensão. Todavia, como nesse momento a Lua estava quase a surgir do horizonte e no zênite flutuava ainda um resto de clarão crepuscular, essas nuvens formavam, no meio da atmosfera, uma espécie de abóbada esbranquiçada, da qual descia sobre a terra uma tal ou qual claridade. 

A terra, por conseguinte, achava-se mais clara do que o céu, fenômeno essencialmente sinistro; e a colina, de acanhadas dimensões, desenhava-se vaga e esbranquiçada no tenebroso horizonte. Todo este conjunto era medonho, mesquinho, lúgubre e limitado. Quer na planície, quer na colina, não se via mais do que uma corpulenta árvore, agitando-se e ramalhando a pequena distância do viajante. 

Este homem estava, evidentemente, muito longe de possuir os delicados hábitos de inteligência e espírito que nos tornam sensíveis aos aspectos misteriosos das coisas que nos cercam; todavia, aquele céu, aquela colina, aquela planície e aquela árvore respiravam tão profunda tristeza que, após um momento de imobilidade e meditação, o homem paru subitamente pelo caminho que tinha trazido. Há ocasiões em que a natureza parece hostil. 

Voltou para a cidade. 

As portas de Digne estavam fechadas. Digne, que no tempo das guerras da religião resistiu a vários cercos, em 1815 era cercada por velhas muralhas flanqueadas de bastiões, que depois foram demolidas. 

Passou por uma brecha e entrou na cidade. 

Seriam oito horas, pouco mais ou menos. Como não conhecia as ruas, principiou outra vez a vaguear ao acaso. 

Chegou assim à prefeitura, depois ao seminário. Ao passar pelo largo da catedral, ameaçou a igreja com o punho cerrado.

A esquina do largo fica a oficina de tipografia onde foram impressas as proclamações do imperador e da guarda imperial ao exército, trazidas da ilha de Elba e ditadas pelo próprio imperador. 

Exausto de fadiga e perdida já a esperança de encontrar pousada, deitou-se no banco de pedra que fica à porta da tipografia. 

Neste momento, uma senhora já idosa que vinha a sair da igreja, ao ver aquele homem deitado ali, perguntou-lhe: 

— Que faz você aí, pobre homem? 

— Bem vê que estou deitado — respondeu ele secamente. 

A bondosa senhora, por certo bem digna de tal nome, era a marquesa de R. 

— Neste banco? — tornou ela. 

— Quem dezanove anos teve por cama uma tábua — disse o homem — pode muito bem passar a noite num colchão de pedra! 

— Então foi soldado? 

— É verdade, minha senhora, fui soldado. 

— Porque não vai para a estalagem? 

— Porque não tenho dinheiro. 

— Valha-me Deus. Também não tenho comigo senão quatro soldos! — Então dê-os, sempre é alguma coisa! 

O homem pegou no dinheiro e a marquesa continuou: 

— Isso não chega para ir para a estalagem. Já lá foi pedir hospedagem? É impossível que possa ficar aqui toda a noite. Você por força há de estar com frio e vontade de comer. Pode ser que o recolham por caridade. 

— Já bati a todas as portas! 

— E então? 

— De toda a parte me repeliram. 

A marquesa tocou-lhe então no braço e indicou-lhe do outro lado do largo, uma casinha branca pegada ao paço. 

— Já bateu a todas as portas? — perguntou ela. 

— A todas — respondeu o homem. 

— E àquela também? 

— Àquela não. 

— Pois então vá lá.




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Um comentário:

  1. — É decerto um ladrão!

    Tudo isto tivera lugar em menos tempo do que é necessário para o imaginar. Depois de examinar algum tempo o homem como quem examina uma víbora, o dono da casa voltou para a porta e disse:

    — Vai-te daqui!

    — Por caridade — disse o homem — dê-me ao menos um prato de sopa!

    — Dou-te é um tiro — disse o camponês.

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