domingo, 26 de maio de 2019

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo III (1)

Júlio Verne


A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO III
TRAVA-SE UMA CONVERSA QUE PODERÁ CUSTAR CARO A PHILEAS FOGG.




Phileas Fogg havia saído de sua casa de Saville Row às onze e meia, e, depois de ter posto quinhentas e setenta e cinco vezes seu pé direito diante do seu pé esquerdo e quinhentos e setenta e seis vezes o seu pé esquerdo diante do seu pé direito, chegou ao Reform Club, vasto edifício, construído em Pall Mall, que não custou menos de três milhões para ser edificado. 

Phileas Fogg dirigiu-se logo para a sala de refeições, cujas nove janelas se abriam sobre um belo jardim com árvores já douradas pelo outono. Ali, tomou lugar à mesa habitual onde o esperava o seu couvert. Seu almoço compunha-se de um hors-d’oeuvre de peixe cozido temperado com um “reading sauce”, de um roast-beef escarlate guarnecido com cogumelos, de uma empada recheada com pedacinhos de ruibarbo e groselhas verdes, de um pedaço de chester — tudo isto regado com algumas taças de um chá excelente, especialmente selecionado pelo encarregado do Reform Club. 

Ao meio dia e quarenta e sete minutos, o gentleman levantou-se e dirigiu-se para o grande salão, compartimento magnífico, ornado com pinturas ricamente enquadradas. Ali um criado entregou-lhe o Times ainda por abrir, e que Phileas Fogg desdobrou com uma firmeza que denotava grande hábito em tão difícil operação. A leitura deste jornal ocupou Phileas Fogg até às três e quarenta e cinco, e a do Standard — que lhe sucedeu — prolongou-se até perto da hora do jantar. Esta refeição fez-se nas mesmas condições do almoço, com a adição de “royal british sauce”. 

Às seis menos vinte, o gentleman reapareceu no grande salão e absorveu-se na leitura do Morning Chonicle. 

Meia hora mais tarde, alguns membros do Reform Club chegaram e achegaram-se à lareira, onde ardia um fogo de hulha. Eram os parceiros habituais de Mr. Phileas Fogg, como ele acérrimos jogadores de whist: o engenheiro Andrew Stuart, os banqueiros John Sullivan e Samuel Fallentin, o cervejeiro Thomas Flanagan, Gauthier Ralph, um dos administradores do Banco da Inglaterra — pessoas ricas e consideradas, mesmo neste club que contava entre seus membros as sumidades da indústria e da finança. 

— Ora bem, Ralph, perguntou Thomas Flanagan, a quantas anda esse caso de roubo? 

— Nesta altura, respondeu Andrew Stuart, o Banco pode dizer adeus ao dinheiro. 

— Espero, pelo contrário, disse Gauthier Ralph, que pegaremos o autor do roubo. Inspetores de polícia, pessoas muito hábeis, foram enviados para a América e a Europa, para todos os portos de embarque e desembarque, e vai ser difícil para este senhor escapar-lhes. 

— Então têm a descrição do ladrão? perguntou Andrew Stuart. 

— Em primeiro lugar, não é um ladrão, respondeu seriamente Gauthier Ralph. 

— Como, não é um ladrão, um indivíduo que subtraiu cinquenta e cinco mil libras em papel-moeda (1 milhão 375.000 francos)? 

— Não, respondeu Gauthier Ralph. 

— É então um industrial? disse John Sullivan. 

— O Morning Chronicle assegura que é um gentleman

Quem deu esta resposta não foi outro senão Phileas Fogg, cuja cabeça emergiu por entre as ondas de papel acumulado à sua volta. Ao mesmo tempo, Phileas Fogg cumprimentou os seus colegas, que lhe retribuíram o cumprimento. 

O fato do qual falavam, que os diversos jornais do Reino Unido discutiam com ardor, passara-se três dias antes, 29 de setembro. Um maço de bank-notes, totalizando a enorme soma de cinquenta e cinco mil libras, fora tirado da frente do guichê do caixa principal do Banco da Inglaterra. 

A quem se admirasse de que um tal roubo pudesse realizar-se com tanta facilidade, o vice-diretor Gauthier Ralph limitar-se-ia a responder que naquele exato momento o caixa estava ocupado em fazer o lançamento de uma receita de três shillings e seis pence, e que não se pode estar de olho em tudo. 

Devemos, porém, aqui observar — o que torna o fato mais explicável — que este admirável estabelecimento, o “Bank of England”, parece importar-se ao extremo com a dignidade do público. Nada de grades, nada de porteiros, nada de guardas! 

O ouro, a prata, as bank-notes estão expostas livremente e por assim dizer à mercê do primeiro recém-chegado. Não se poderia colocar em suspeição a probidade de ninguém. Um dos melhores observadores dos costumes ingleses até conta o seguinte: Numa das salas do Banco, onde se encontrava um dia, teve a curiosidade de ver mais de perto um lingote de ouro, pesando de sete a oito libras, que estava exposto na mesa do caixa; pegou o lingote, examinou-o, passou-o para um seu vizinho, este passou-o para um outro, e o lingote, de mão em mão, foi até ao fundo de um corredor escuro, e só meia hora depois voltou ao seu lugar, sem que o caixa levantasse sequer a cabeça. 

Mas, em 29 de setembro, as coisas não se passaram assim. O maço de banknotes não voltou, e quando o magnífico relógio, posto acima do “drawing-office”, anunciou às cinco o fechamento dos escritórios, o Banco da Inglaterra não tinha senão que passar cinqüenta e cinco mil libras pela conta dos ganhos e perdas. 

Clara e devidamente reconhecido o roubo, agentes e “detetives”, escolhidos dentre os mais hábeis, foram enviados para os principais portos, para Liverpool, para Glasgow, Havre, Suez, Brindisi, Nova York, etc., com a promessa, no caso de sucesso, de uma gratificação de duas mil libras (50.000 F) e cinco por cento da quantia que fosse recuperada. Esperando as informações que o inquérito imediatamente instaurado deveria fornecer, estes inspetores tinham por missão observar escrupulosamente todos os viajantes que chegassem ou partissem. 

Ora, precisamente, como dizia o Morning Chronicle, havia razões para se supor que o autor do roubo não fazia parte de nenhuma das associações de ladrões da Inglaterra. Durante o dia 29 de setembro, um gentleman bem apessoado, de boas maneiras, ar distinto, havia sido notado, passeando pela sala dos pagamentos, teatro do roubo. O inquérito permitira reproduzir com bastante exatidão a descrição deste gentleman, que foi imediatamente enviada a todos os detetives do Reino Unido e do continente. Alguns crédulos — Gauthier Ralph entre eles — julgavam-se pois com base para esperar que o ladrão não escaparia. 

Como se pode imaginar, este fato estava na ordem do dia em Londres e em toda a Inglaterra. Discutia-se, apaixonava-se a favor ou contra as probabilidades do êxito da polícia metropolitana. Não é de estranhar, pois, ouvir os membros do Reform Club tratarem da mesma questão, ainda mais que um dos vice-diretores do Banco achava-se entre eles. 

O digno Gauthier Ralph não queria duvidar do resultado das buscas, calculando que a gratificação oferecida deveria estimular e muito o zelo e a inteligência dos agentes. Mas o seu colega, Andrew Stuart, estava longe de compartilhar desta confiança. A discussão continuou, pois, entre os gentlemen, que se tinham sentado a uma mesa de whist, Stuart em frente de Flanagan; Fallentin diante de Phileas Fogg. Durante o jogo, os jogadores não falavam, mas entre as rodadas a conversação interrompida recomeçava com mais animação. 

— Eu sustento, disse Andrew Stuart, que as probabilidades são a favor do ladrão, que não pode deixar de ser um homem muito astuto! 

— Ora, vamos! respondeu Ralph, não há mais um só país em que ele possa se refugiar. 

— Por exemplo! 

— Para onde quer que ele vá? 

— Não sei, respondeu Andrew Stuart, mas, afinal, a terra é bastante vasta. 

— Era outrora... disse à meia voz Phileas Fogg. Depois: — É sua vez de cortar, acrescentou apresentando as cartas a Thomas Flanagan. 

A discussão foi suspensa durante a rodada. Mas logo Andrew Stuart a retomou, dizendo: 

— Como, outrora! A terra diminuiu, por acaso? 

— Sem dúvida, respondeu Gauthier Ralph. Sou da opinião de Mr. Fogg. A terra diminuiu, pois a percorremos agora dez vezes mais depressa do que há cem anos. E é isto o que, no caso de que nos ocupamos, tornará as buscas mais rápidas. 

— E tornará mais fácil também a fuga do ladrão! 

— É sua vez de jogar, senhor Stuart! disse Phileas Fogg. 

Mas o incrédulo Stuart não estava convencido, e, a partida concluída: 

— É preciso confessar, senhor Ralph, retomou, que achou um modo engraçado de dizer que a terra diminuiu! Porque atualmente se faz sua volta em três meses... 

— Em oitenta dias apenas, disse Phileas Fogg. 

— Com efeito, senhores, acrescentou John Sullivan, oitenta dias, desde que a seção entre Rothal e Alaabad foi aberta sobre o “Great-Indian peninsular railway”, e eis aqui o cálculo feito pelo Morning Chronicle:

De Londres a Suez pelo Monte Cenis e Brindisi, railways e paquetes....7 dias 
De Suez a Bombaim, paquete....13 " 
De Bombaim a Calcutá, railway....3 " 
De Calcutá a Hong Kong (China), paquete....13 " 
De Hong Kong a Yokohama (Japão), paquete....6 " 
De Yokohama a São Francisco, paquete....22 " 
De São Francisco a Nova York , railroad....7 " 
De Nova York a Londres, paquete e railway....9 " 
Total......80 dias



continua...


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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia. 
Promessa que manteve em mais de oitenta livros. 
Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas. 
Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras. 
Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza. 
Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857. 
Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation. 
Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros. 
A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix). 
Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranqüilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama. 
Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900. 
Morreu em 24 de Março de 1905


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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster
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