domingo, 3 de setembro de 2023

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / VII — Depois de chegar ao seu destino

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


VII — Depois de chegar ao seu destino, o viajante predispõe-se para tornar a partir

Eram quase oito horas da noite quando o carro que deixámos na estrada, entrou no pátio da estalagem da casa da posta, em Arras. O homem a quem seguimos até este momento, apeou-se, correspondeu distraidamente à solicitude dos criados, mandou embora o cavalo que tomara de reforço, e conduziu pessoalmente o branco à cavalariça; depois empurrou a porta de uma sala de bilhar que havia no rés-do-chão, entrou, sentou-se e encostou-se a uma mesa.
Gastara catorze horas no trajeto que contara fazer em seis. Tinha a consciência de que não fora sua a culpa; mas no íntimo não se sentia desgostoso pela demora. 
Pouco depois apareceu a dona de estalagem e perguntou-lhe:

— O senhor vem pernoitar? Quer cear?

O viajante fez um sinal negativo com a cabeça.

— O moço da cavalariça disse-me que o seu cavalo está muito fatigado. 

Aqui ele rompeu o silêncio, dizendo:

— Então não poderei tornar a partir amanhã de manhã?

— Ó senhor! O cavalo precisa, pelo menos, dois dias de descanso. 

— Não é aqui a estação da posta? — perguntou ele. 

— É, sim, senhor.

E em seguida a dona da estalagem conduziu-o à administração, onde visou o passaporte, perguntando ele se seria possível voltar na mala-posta dessa mesma noite para Montreuil-sur-mer. Disseram-lhe que o lugar ao lado do condutor ainda estava vago e ele tomou-o logo para si. 

— É necessário que o senhor esteja aqui à uma hora em ponto para partir — disse o escriturário. 

 Feito isto, saiu da estalagem e começou a percorrer a cidade. Não conhecia Arras; as ruas eram escuras, caminhava ao acaso. Contudo, parecia obstinar-se em não fazer a mínima pergunta. Atravessou a pequena ribeira Crinchon e achou-se num dédalo de becos e travessas, nos quais se perdeu. Depois de ter hesitado por um instante, resolveu dirigir-se a um burguês, mas não sem ter olhado para todos os lados, como se receasse que alguém ouvisse a pergunta que ia fazer:

— Tem a bondade de me dizer onde é o palácio da justiça?

— O senhor, pelo que vejo, não é daqui? — retorquiu o burguês, um homem já muito idoso. — Queira vir comigo; vou também para esse lado, isto é, para o lado da prefeitura. Como se estão fazendo obras no palácio da justiça, os tribunais celebram provisoriamente as audiências na prefeitura. 

 — É também aí que têm lugar os julgamentos?

— Sim, senhor. Onde é hoje a prefeitura era o paço do bispo antes da revolução. O senhor Conzié que era bispo desta diocese em 82 mandou fazer ali uma grande sala, que é a mesma em que hoje se fazem as audiências. — Continuando a caminhar, o burguês disse: — Se deseja assistir a algum julgamento, já é tarde. As audiências terminam, ordinariamente, às seis horas. 

 Todavia, chegando à praça, o burguês indicou-lhe quatro grandes janelas iluminadas, na fachada de um vasto e tenebroso edifício.

— O senhor foi feliz, parece-me que ainda chegou a tempo. Vê aquelas quatro janelas? É a sala do júri; e uma vez que estão iluminadas é porque ainda não terminou a sessão. Naturalmente é alguma causa complicada, e por isso a audiência entrou pela noite dentro. É talvez negócio em que o senhor se interessa? É processo criminal? O senhor é testemunha? 

 — Não venho para nada disso — respondeu ele —, preciso unicamente falar a um advogado.

— Isso é diferente — tornou o burguês. — Ali onde está a sentinela é que é a porta, não terá mais do que subir a escada. 

 Ao cabo de alguns minutos, conformando-se com as indicações do burguês, achava-se numa sala onde, estava muita gente e onde se viam, segredando nos diferentes grupos, vários advogados de toga.

É sempre uma coisa que aparta o coração, ver estes agrupamentos de homens vestidos de preto, murmurando entre si nas proximidades das salas de audiência. É muito raro que a caridade e a comiseração sobressaiam nas suas palavras. O que delas sai, a maior parte das vezes, são condenações resolvidas antecipadamente. Estes grupos assemelham-se, para o observador que vai passando, a sombrios cortiços, onde os enxames de espírito zumbidores, constroem em comum toda a espécie de tenebrosos edifícios.

Aquela casa, espaçosa e iluminada com um só candeeiro, ex-sala episcopal, que agora servia de sala dos passos perdidos, e que era separada do tribunal por uma porta de dois batentes, estava fechada naquele momento. A escuridão era tal que o senhor Madelaine não receou dirigir-se ao primeiro advogado que encontrou:

 — Faz-me o favor de me dizer em que ponto estão?

— Já acabaram — respondeu o advogado.

— Acabaram!?

Esta palavra foi repetida por tal modo, que o advogado voltou-se para quem a repetira.
 
— O senhor é talvez parente do réu? 

— Não, senhor. Não conheço aqui ninguém. Mas houve condenação? 

— Sem dúvida. Não podia deixar de ser. 

— A trabalhos forçados? 

— Por toda a vida. 

Madelaine continuou com voz fraca que mal se ouvia:

— Foi provada a identidade? 

— Qual identidade? — perguntou o advogado. — Não havia identidade a provar. O caso era simples. A mulher tinha morto seu filho; provado o infanticídio e rejeitando o júri a premeditação, foi condenada por toda a vida. 

— É então uma mulher? 

— Certamente, chamada Limosin. Mas de que falava o senhor? 

— Eu, de nada; mas tendo terminado a audiência, porque é que a sala se conserva iluminada? 

— Por causa do outro julgamento, que começou há-de haver duas horas. 

— Que julgamento é? 

— É também um caso simples. Trata-se duma espécie de vagabundo, um reincidente, um forçado que cometeu um roubo. Não sei o nome dele, mas tem verdadeiro aspecto de bandido. Pela minha parte bastava-me ver-lhe a cara para o mandar para as galés. 

— Não haverá maneira de entrar na sala? 

— Não o julgo fácil, porque está lá muita gente. A audiência agora está interrompida, e como saíram algumas pessoas, pode ser que encontre lugar para quando continuar a sessão. 

— Por onde se entra? 

— Por aquela porta.

E o advogado afastou-se. Em poucos instantes, Madelaine experimentava quase ao mesmo tempo, e por assim dizer fundidas, todas as comoções possíveis. 

As palavras daquele indiferente tinham-lhe atravessado simultaneamente o coração quais agulhas de gelo, ou lâminas candentes. Quando viu que ainda não tinha terminado o julgamento, respirou: mas não teria podido dizer-se se o que sentira era contentamento ou desgosto. Aproximou-se de vários grupos e escutou o que diziam. Como havia muitas causas a julgar, o juiz indicara para aquele mesmo dia, dois processos simples e que deviam decidir-se com brevidade. 

Tinham começado pelo infanticídio e passado depois ao forçado, ao reincidente, ao cavalo de retorno [1].

O tal homem tinha roubado uma porção de fruta, mas isso não parecia bem provado; do que havia todas as provas era de ter estado nas galés de Toulon. Era isto que lhe fazia maior carga.

 Já tinha terminado o interrogatório do réu e a inquirição das testemunhas, mas faltava ainda a defesa pelo advogado e a requisitória do ministério público; isto tudo não podia terminar antes da meia-noite. O homem seria provavelmente condenado; o delegado do procurador-régio era muito bom nunca lhe escapavam os acusados; era um moço de talento, que até fazia versos.

Junto da porta que comunicava com a sala da audiência estava um oficial de diligências, a quem Madelaine perguntou:

— Esta porta abre-se daqui a pouco, não é verdade?

— Não, senhor, não se torna a abrir.

— Pois não se torna a abrir quando continuar a audiência? 

— A audiência já continuou — respondeu o oficial de diligências —, mas a porta não se abre.

— E por quê? 

— Porque a sala está cheia. 

— Pois não haverá nem um lugar? 

— Nem um só. A porta está fechada, portanto não pode entrar mais ninguém. — O oficial de diligências, depois de um momento de silêncio, acrescentou: — Há ainda dois ou três lugares por detrás do senhor juiz, mas ele não deixa ir para ali senão os funcionários públicos.

O oficial de diligências, disse estas palavras e voltou-lhe as costas. 
Madelaine retirou-se cabisbaixo, atravessou a antessala e tornou a descer a escada vagarosamente e como hesitando a cada passo. É provável que estivesse em conselho consigo mesmo. O violento combate que nele se travava desde a véspera não terminara ainda, e a cada instante se sentia a braços com uma nova peripécia, Chegando ao patamar da escada, encostou-se ao corrimão e cruzou os braços. De repente desabotoou a sobrecasaca, tirou do bolso a carteira, rasgou-lhe uma folha e escreveu nela rapidamente a lápis, esta linha: «Madelaine, maire de Montreuil-sur-mer», depois tornou a subir rapidamente a escada, atravessou por entre a multidão, foi direito ao oficial de diligências e entregou-lhe o papel, dizendo ao mesmo tempo com autoridade: 

— Leve isto ao senhor juiz. 

O oficial de diligências pegou no papel, lançou-lhe os olhos e obedeceu.  

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[1] Assim chamavam aos antigos grilhetas.
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo -  VII — Depois de chegar ao seu destino

Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)

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