sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Edgar Allan Poe - Contos: Os Crimes da Rua Morgue (06)

Edgar Allan Poe - Contos


Os Crimes da Rua Morgue
Título original: The Murders in the Rue Morgue 
Publicado em 1841


continuando...


— Prepare-se — ordenou Dupin — e pegue nas suas pistolas, mas não se sirva delas nem as mostre sem um sinal meu.

Tinham deixado aberto o portal, e o visitante havia entrado sem bater e subido vários degraus da escada. Mas dir-se-ia que agora hesitava. Dupin dirigiu-se apressadamente para a porta, quando ouvimos que ele subia novamente. Desta vez, não fugiu, mas avançou deliberadamente e bateu à porta do nosso quarto.
Dupin convidou-o a entrar, com uma voz alegre e cordial. Apresentou-se um homem. Era, evidentemente, um marinheiro, alto, robusto, um indivíduo musculoso com uma expressão audaciosa, com os diabos!, que não era de todo desagradável! A cara dele estava semiescondida com as suíças e os bigodes. Trazia uma bengala de carvalho, mas não parecia ter qualquer outra arma. Cumprimentou-nos desajeitadamente e deu-nos as boas-noites em francês, se bem que com um ligeiro sotaque suíço e lembrava bastante uma origem parisiense.
 
— Sente-se, meu amigo, suponho que vem por causa do seu orangotango. Palavra de honra que quase o invejo; é notavelmente belo e, sem dúvida, um animal de grande preço. Quantos anos tem?

O marinheiro suspirou longamente, com o aspeto de quem se sente aliviado de um peso e respondeu com uma voz calma. 

— Não poderia dizê-lo muito bem. No entanto, não deve ter mais de quatro ou cinco anos. Tem-no aqui? 

— Oh! Não; não tínhamos lugar apropriado para o fechar. Está numa cavalariça, perto daqui, em Dubourg. Já o terá amanhã de manhã. Poderá comprovar o direito de propriedade? 

— Sim, senhor, certamente. 

— Ficarei triste por me separar dele — respondeu-lhe Dupin. 

— Não compreendo por que se incomodou por tão pouco; não contava com isso, senhor. Pagarei de boa vontade uma gratificação à pessoa que encontrou o animal e uma recompensa, se entender. 

— Muito bem — respondeu-lhe o meu amigo — tudo isso é muito justo. Vejamos, que daria então? Oh! Vou dizer-lhe. Eis qual será a minha recompensa: contar-me tudo o que sabe acerca dos dois crimes da Rua Morgue. 

Dupin pronunciou estas últimas palavras em voz baixa e muito tranquila. Dirigiu-se depois para a porta com a mesma calma, fechou-a e meteu a chave no bolso. Tirou então uma pistola do bolso e colocou-a sem a menor emoção sobre a mesa. O rosto do marinheiro tornou-se escarlate como se estivesse a sentir-se sufocado. Ergueu-se e agarrou na bengala, mas um segundo depois sentou-se pesadamente no banco, tremendo violentamente è com a morte estampada na cara.
Não podia articular uma palavra. Lamentava-o de todo o meu coração

— Meu amigo — disse Dupin, com uma voz cheia de bondade — alarma-se sem motivos. Garanto-lhe que não queremos causar-lhe nenhum mal. Dou a minha palavra que não temos nenhuma má intenção contra si. Sei perfeitamente que está inocente dos horrores da Rua Morgue. Contudo, isso não quer dizer que não esteja um pouco implicado. Por pouco que lhe tenha dito, devo provar-lhe que tive sobre este caso meios de informação dos quais jamais teria desconfiado. Agora, a coisa é clara para nós. Não fez nada que pudesse evitar, nada de certeza que o torne culpado. Teria podido roubar impunemente. Não tem nada a esconder, não tem razão para esconder seja o que for. Por outro lado, é constrangido por todos os princípios de honra a confessar tudo O que sabe. Um homem inocente está presentemente preso e acusado de um crime cujo autor o senhor pode indicar. 

Enquanto Dupin pronunciava estas palavras, o marinheiro recobrou em grande parte a presença de espírito; mas toda a sua ousadia inicial desaparecera. 

— Que Deus me valha! — exclamou ele depois de uma pequena pausa. — Direi tudo o que sei deste caso, mas não espero que acredite nem metade, seria verdadeiramente idiota se o pensasse! No entanto, estou inocente e direi tudo o que tenho no meu coração mesmo que me custe a vida. 

Eis pormenorizadamente o que nos contou. Tinha feito ultimamente uma viagem ao arquipélago indiano. Um grupo de marinheiros, do qual fazia parte, desembarcou no Bornéu e penetrou no interior para aí fazer uma excursão. Ele e um dos seus camaradas apanharam o orangotango. O camarada morreu e o animal tornou-se, portanto, propriedade sua, exclusiva. Depois de muitos transtornos causados pela indomável ferocidade do cativo, durante a travessia ele conseguiu, depois, instalá-lo na sua própria casa, em Paris, e para não atrair a insuportável curiosidade dos vizinhos, conservou o animal cuidadosamente fechado, até o curar de uma ferida num pé, que fizera a bordo, com uma lasca de osso. O seu intento era vendê-lo. 
Ao acordar, uma noite, ou antes, uma manhã — na do crime — depois de uma orgiazinha de marinheiros, encontrou o animal instalado no quarto dele: escapara-se da divisão do lado, onde o julgava seguramente fechado. Com uma navalha na mão e cheio de espuma de sabão, estava sentado diante de um espelho e tentava barbear-se, como, sem dúvida, vira fazer ao dono, ao espreitá-lo pelo buraco da fechadura. Aterrorizado por ver uma arma perigosa nas mãos de um animal tão feroz, muito capaz de se servir dela, o homem durante uns instantes, não soube o que devia fazer. Como de costume, ele domava o animal, mesmo nos acessos mais furiosos, por meio de chicotadas, e quis recorrer a elas, uma vez mais. Mas ao ver o chicote, o orangotango saltou pela porta do quarto, desceu rapidamente pelas escadas, e, aproveitando uma janela aberta, por desgraça, saltou para a rua. 
O francês, desesperado, perseguiu o macaco; este, segurando sempre a navalha, parava de vez em quando, voltava-se e fazia caretas ao homem que o perseguia, até se ver quase apanhado. Depois retomava a corrida. As ruas estavam absolutamente desertas, porque seriam umas três da manhã. Ao atravessar uma passagem da rua por detrás da Rua Morgue, a atenção do fugitivo foi despertada por uma luz que se via na janela da senhora L’Espanaye, no quarto andar do prédio. Precipitou-se para a parede, avistou o cabo do para-raios, e apoiando-se nele, trepou com uma inconcebível agilidade, agarrou-se à porta da janela que estava junto à parede, e apoiando-se por cima, lançou-se direito à cabeceira da cama. 
Toda esta ginástica não durou um minuto. A porta foi atirada de novo para a parede, pelo salto que o orangotango dera ao deitar-se para dentro do quarto. 
Entretanto, o marinheiro ficou ao mesmo tempo alegre e inquieto. Tinha muitas esperanças de agarrar o animal, que podia dificilmente escapar-se da armadilha em que se tinha aventurado e onde poderia impedir-lhe a fuga. Por outro lado, tinha razão para estar bastante inquieto pelo que ele poderia fazer dentro de casa. 
Esta última reflexão incitou o homem a perseguir o fugitivo. Não é difícil para um marinheiro trepar pelo cabo de um para-raios mas, quando chegou à altura da janela situada bastante longe, à esquerda, ele sentiu-se desorientado; tudo quanto pôde fazer foi erguer-se de forma a deitar uma vista de olhos para o interior do quarto. Mas o que viu fê-lo quase desprender-se, aterrorizado. Foi então que se ouviram os gritos horríveis que, no silêncio da noite, despertaram em sobressalto os habitantes da Rua Morgue. A senhora L’Espanay e e a sua filha, já com as suas roupas de dormir, estavam ocupadas certamente a arrumar alguns papéis no cofre de ferro, que já se mencionou e que fora atirado para o meio da casa. Este achara-se aberto, o seu conteúdo espalhado no chão. As vítimas, sem dúvida, de costas para a janela, e a julgar pelo tempo que decorreu entre a invasão do animal e os primeiros gritos, é provável que não se apercebessem imediatamente. O bater da porta da janela podia ser na realidade atribuído ao vento.
Quando o marinheiro olhou para dentro do quarto, o terrível animal tinha agarrado a senhora L’Espanay e pelos cabelos, que estavam soltos porque estava a penteá-los, e o animal andava à volta da casa, imitando os gestos de um barbeiro. A filha tombara no chão, desmaiada, imóvel. Os gritos e esforços da senhora idosa, enquanto os cabelos lhe foram arrancados da cabeça, fizeram com que transformasse em fúria as disposições provavelmente pacíficas do orangotango. Com um golpe rápido do braço musculoso, separou-lhe quase a cabeça do tronco. Rangia os dentes e lançava chispas dos olhos. Deitou-se em cima do corpo da jovem, enterrando-lhe as unhas na garganta e conservando-as ali até ela estar morta. Os seus olhos espantados, selvagens, avistaram nesse momento a cabeceira da cama, por cima da qual pôde avistar a cara do seu dono paralisado pelo horror. 
A fúria do animal, que sem dúvida alguma se recordava do terrível chicote, transformou-se imediatamente em terror. Sabendo bem que tinha merecido um castigo, parecia querer esconder os vestígios sangrentos do seu ato, e saltando, nervoso, acotovelando e quebrando os móveis a cada um dos seus movimentos, arrancou os colchões da cama. Por fim, agarrou no corpo da jovem e empurrou-o para dentro da chaminé na posição em que foi encontrado. A seguir pegou no da senhora, atirando, primeiramente, a cabeça pela janela. 
Como o macaco se aproximasse da janela com o seu fardo totalmente mutilado, o marinheiro, espantado, baixou-se e deixou-se escorregar pelo cabo sem precauções, e fugiu a correr até casa, temendo as consequências desta carnificina e, aterrorizado, abandonou de boa vontade toda a preocupação sobre o destino do seu orangotango. 
As vozes ouvidas pelas pessoas eram as suas exclamações de horror, misturadas com os guinchos diabólicos do animal.
Quase nada mais tenho a acrescentar. O orangotango escapara-se sem dúvida do quarto, pelo cabo do para-raios, no momento em que a porta foi arrombada. Ao passar pela janela ele fechara-a, evidentemente. 
Foi apanhado mais tarde pelo próprio dono, que o vendeu por bom preço ao Jardim Botânico.
Lebon foi imediatamente posto em liberdade, depois de nós contarmos pormenorizadamente todo o caso, temperado com alguns comentários de Dupin, no gabinete do chefe da Polícia. Este funcionário, por muito bem disposto que estivesse para com o meu amigo, não podia disfarçar o seu mau humor vendo este processo dar esta reviravolta e não deixou de falar com sarcasmo, sobre « a mania que as pessoas têm de se intrometer na vida alheia» .

— Deixem-no falar — disse Dupin, que não julgou a propósito replicar. — Deixem-no criticar que isso aliviará a sua consciência. Estou contente por o ter batido no seu próprio terreno. O facto de ele não decifrar este mistério não é razão nenhuma para se espantar, porque, na verdade, o nosso amigo chefe é um homem demasiado esperto para ser profundo. A sua ciência não tem fundamento. Ela é toda cabeça e não tem corpo, tal como a deusa Laverna, ou, se gostarem mais, toda cabeça e ombros, como o bacalhau. Mas, apesar de tudo, é um homem valente. Adoro-o em particular por um maravilhoso género de afetação ao qual deve a reputação de génio. Quero falar da sua mania de « negar o que é e de explicar o que não é» . 

fim

continua na página 361..

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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