terça-feira, 19 de setembro de 2023

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Portanto, fechei o diário dos Goncourt)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

Portanto, fechei o diário dos Goncourt. Prestígio da literatura! Desejaria rever os Cottard, pedir-lhes tantos pormenores acerca de Elstir, ir ver a loja do Petit Dunkerque, se ainda existisse, pedir licença para visitar aquele palacete dos Verdurin onde havia jantado. Mas sentia uma vaga perturbação. Certo, eu jamais me iludira sobre minha incapacidade de ouvir, nem, desde que estivesse a sós, de olhar. Uma mulher velha não mostrava a meus olhos nenhum tipo de colar de pérolas e aquilo que dizia não entrava nos meus ouvidos. Ainda assim, tais criaturas eram-me conhecidas na vida cotidiana, eu jantara muitas vezes com elas, eram os Verdurin, era o duque de Guermantes, eram os Cottard, todos eles me haviam parecido tão vulgares, quanto à minha avó parecera àquele Basin, que ela não duvidava ser o sobrinho preferido, o jovem herói delicioso da Sra. de Beausergent; todos me haviam parecido insossos, e eu me recordava das inúmeras vulgaridades de que todos eles eram compostos... 

Et que tout cela false un astre dans ler nuitl

[“Que forme um astro na noite!" Citação inexata do último verso de um poema de Victor Hugo em "cações”, onde, em vez de "noite", o poeta escreve "céus". (N. do T)]  

Resolvi deixar provisoriamente de lado as objeções contra a literatura que poderiam fazer nascer em mim as páginas dos Goncourt lidas na véspera de minha partida de Tansonville. Mesmo pondo de parte o índice individual de ingenuidade, que é espantoso no caso desse memorialista, eu podia tranquilizar-me sob vários pontos de vista. 

Primeiro, no que se referia pessoalmente a mim, minha incapacidade de ouvir e olhar, que o diário tão penosamente me havia ilustrado, não era entretanto total. Havia em mim um personagem que sabia mais ou menos olhar, mas era um personagem intermitente, só ganhando vida quando se manifestava alguma essência geral, comum a diversas coisas, de que extraía alegria e alimento. Então o personagem olhava e escutava, mas apenas até uma certa profundidade, de modo que a observação não lucrava muito. Como um geômetra que, despojando as coisas de suas qualidades sensíveis, vê somente o substrato linear delas, faltava-me o que as pessoas contavam, pois o que me interessava não era o que queriam dizer e sim a maneira como o diziam, enquanto reveladora de seu caráter ou de seus ridículos; ou melhor, era um objeto sempre visado particularmente pela minha busca porque me dava um prazer específico, a descoberta de pontos comuns a criaturas diversas. Somente quando os percebia é que meu espírito então sonolento, mesmo sob a aparente atividade de minha conversação, animado disfarçava para os outros o total entorpecimento espiritual; de súbito, com alegria, à caça, mas o que perseguia nesse instante pela identidade do salão Verdurin em lugares e tempos diversos estava citado em meio à profundidade, para além da aparência mesma, numa zona um tanto recuada. Assim, fugia-me o encanto aparente, imitável, das criaturas, pois possuía a faculdade de me deter nele, como um cirurgião que, sob o ventre de uma mulher, distinguiria o mal interno que o consome. Por mais que julgasse a sociedade, não enxergava os convivas, pois, quando julgava ao encará-los, os radiografava. Daí resultava que, reunindo todas as observações que fizera acerca dos convivas, o desenho das linhas traçadas por mim representava um conjunto de leis psicológicas, onde quase não havia lugar, por si mesmo, pelo interesse das frases dos convivas. Mas tiraria isso qualquer mérito aos meus muitos, já que eu não os tinha como tais? Se um retrato, no domínio da pintura, põe, evidência certas verdades relativas ao volume, à luz e ao movimento, será necessariamente inferior a outro, da mesma pessoa, mas completamente diverso, em mil detalhes omitidos no primeiro, estarão minuciosamente relatados neste segundo retrato, de onde se poderá concluir que o modelo era encantador, ao que o teriam julgado feio no primeiro, o que pode ter uma importância do cume e até histórica, mas não é necessariamente uma verdade artística. 

E, além disso, a minha frivolidade, quando eu não estava sozinho, fazia-me desejoso de agradar, mais desejoso ainda de divertir, tagarelando, que de me instruir, ouvindo, a menos que eu houvesse comparecido à recepção para inteirar-me sobre um ponto de arte, ou por alguma suspeita ciumenta que já me empolgava o espírito. Mas eu era incapaz de ver senão aquilo do qual a leitura me desperte o desejo, aquilo cujo esboço, de antemão desenhado por mim mesmo, de confrontar logo com a realidade. Quantas vezes, já o sabia muito bem antes essa página de Goncourt como houvesse assinalado, fui incapaz de prestar atenção em coisas ou pessoas que, a seguir, uma vez que sua imagem me fora apresentada na solidão por um artista, teria percorrido léguas e arriscado a morte para reentrar! Então, a minha imaginação já partira, começara a pintar. E sobre aquilo, do que bocejara no ano anterior, indagava angustiado, contemplando-o antes freneticamente, desejando-o: "Será verdadeiramente impossível vê-lo? Quanto não daria por isso!”

Quando lemos artigos sobre pessoas, mesmo simplesmente uma pessoa da sociedade, qualificadas de "últimos representantes de uma sociedade da qual não existe mais qualquer testemunho", sem dúvida podemos exclamar: "E dizer que de uma criatura tão insignificante que se fala com tanta abundância e tantos adágios! É isto o que eu deploraria não ter conhecido, se só tivesse lido os jornais, revistas, e se não tivesse visto o homem"; mas eu estava antes inclinado a pensar, ao ler essas páginas nos jornais: "Que pena eu não ter dado mais atenção a este senhor quando só me preocupava em reencontrar Gilberte ou Albertine. Julguei-o um mundano enfadonho, um simples figurante, mas era uma figura!"

As páginas de Goncourt que li fizeram-me lamentar essa minha inclinação. Pois talvez eu pudesse concluir delas que a vida nos ensina a rebaixar o valor da leitura, e nos mostra a escassa importância do que o escritor nos elogia; mas podia, igualmente, concluir que a leitura, ao contrário, nos ensina a realçar o valor da vida, valor que não soubemos apreciar e de cuja grandeza só nos damos conta através do livro. A rigor, podemos nos consolar do pouco prazer experimentado no convívio de um Vinteuil ou de um Bergotte. O burguesismo pudico de um, os defeitos insuportáveis do outro, e até a pretensiosa vulgaridade de um Elstir em seus começos (visto que o Diário dos Goncourt me fizera descobrir que ele não era outro senão o "senhor Biche"; que, outrora, fazia discursos tão exasperadores a Swann, na casa dos Verdurin), nada provam contra eles, visto que o seu gênio se manifestava pelas obras. 

Quanto à eles, que as memórias ou nós sejamos culpados por tornar atraentes uma sociedade que nos desagradou é coisa de pouca importância, já que, mesmo que seja o escritor dessas memórias que se engane, isto não provaria coisa alguma contra o valor da vida que produz tais gênios. (E qual é o homem de gênio que não adotou maneiras irritantes de falar dos artistas de seu grupo, antes de atingir, como acontecera com Elstir e como acontece raramente, um bom gosto superior? As cartas de Balzac, por exemplo, não estarão cheias de termos vulgares que fariam Swann sofrer mil mortes ao empregá-los? E, no entanto, é provável que Swann, tão fino, tão isento de ridicularias odiosas, fosse incapaz de escrever A Prima Bette e O Cura de Tours.) 

Na extremidade oposta da experiência, quando eu via que as mais curiosas anedotas, que formam a matéria inesgotável do Diário dos Goncourt, divertimento dos serões solitários para o leitor, lhe tinham sido contadas por convivas a quem teríamos vontade de conhecer por causa dessas páginas, e que todavia não deixaram em mim nenhuma recordação interessante, isso também não era totalmente inexplicável. 

Apesar da ingenuidade de Goncourt, que atribuía graça dessas anedotas à provável distinção do narrador, podia muito bem ocorrer que pessoas medíocres tivessem visto em suas vidas, ou escutassem contar, coisas curiosas e as contassem por sua vez. Goncourt sabia escutar, bem como sabia ver; eu não. 

Além disso, todos esses fatos teriam tido necessidade de ser julgados um a um. O Sr. de Guermantes certamente não me dera a impressão de ser esse adorável modelo de graças juvenis que minha avó tanto queria ter conhecido como exemplo inimitável, segundo as memórias da Sra. de Beause é preciso levar em conta que, à época, Basin estava com sete anos, que era sua tia, e que até os maridos que irão divorciar-se poucos meses depois fazem grandes elogios às esposas. Um dos mais belos poemas de Sainte-Beuve é grado à aparição, junto a uma fonte, de uma criança ornada de todos os dons e todas as graças, a jovem Srta. de Champlâtreux, que então teria menos anos de idade. Não obstante a veneração carinhosa que o poeta de gênio que é a condessa de Noailles tributava à sua sogra, duquesa de Noailles, nascida em Champlâtreux, é provável que, se aquela tivesse de lhe fazer o retrato, este contrastaria vivamente que Sainte-Beuve havia feito cinqüenta anos antes.

O mais perturbador talvez fosse o meio termo, ou seja, as pessoas de reputação implicam mais do que uma memória que soube reter uma anedota; sem todavia nos permitirem, como no caso dos Vinteuil e dos Bergotte, o de julgá-las por suas obras, pois nada criaram; apenas, para nosso espanto, julgarmos tão medíocres que inspiraram.  

Concedo que, desde os grandes pintores da Renascença, a maior impressão de elegância, nos museus, decorra dessa pequena burguesia ridícula, de quem, se não a conhecesse, os fariam desejar poder aproximar-me na vida real, esperando aprender, com aqueles cujas pomposas caudas de veludo e rendas são comparáveis às mais belas pinturas de Ticiano, segredos preciosos que não me desvendaram nem a arte, nem suas telas. Se tivesse compreendido, no passado, que não é o mais espirituoso, o mais instruído, o mais bem relacionado, mas aquele que sabe tornar-se alguém para poder assim refletir a sua vida, embora acanhada, que chega a ser Bergotte (conquanto os contemporâneos o considerassem menos espirituoso Swann e menos sábio de Bréauté), teria observado que o mesmo sucede, e com mais razão, com os modelos do artista. Ao surgir no pintor, que pode abordar qualquer assunto, o amor da beleza e da elegância, onde achará temas tão atrativos, o modelo lhe será fornecido por pessoas um pouco mais ricas do que ele, cuja casa encontrará o que, em geral, não existe no seu ateliê de homem desconhecido, que vende suas telas por cinquenta francos; um salão cobertos de seda antiga, muitas lâmpadas, belas flores e frutos, lindos vestidos - pessoas relativamente modestas, ou que assim parecerão à outras verdadeiramente ricas (que sequer suspeitam de sua existência), mas que, justamente porque estão em melhores condições de conhecer o artista obscuro, apreciá-lo, convida-lo ou comprar-lhe as telas, do que os aristocratas que se fazem pintar, como os chefes de Estado, pelos pintores acadêmicos. A poesia de salões elegantes belos vestidos do nosso tempo, por acaso não a encontrará a posteridade aquele salão do editor Charpentier, pintado por Renoir, do que no retrato da princesa Sagan, ou da condessa de La Rochefoucauld, de Cot, ou Chaplin?

[Pierre-Auguste Cot (1837-1883) e Charles Josuah Chaplin (1825-1891), pintores franceses. (N. do T)] 


continua na página 030...
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