quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A Montanha Mágica - Compra necessária (a)

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Compra necessária

– E agora? Já terminou o verão de vocês? – perguntou Hans Castorp ironicamente, no terceiro dia, ao primo.

O tempo mudara de modo assustador.
O segundo dia completo que o visitante passara no sanatório fora de magnífico esplendor estival. O azul profundo do céu luzia por cima das copas pontiagudas dos pinheiros, enquanto a aldeia, no fundo do vale, fulgia deslumbrante em meio ao calor. O ar estava cheio do tilintar alegre e calmo dos cincerros das vacas que aqui e ali, nas encostas, pastavam o capim curto e cálido dos prados. Já à hora do café da manhã, as senhoras haviam exibido levíssimas blusas de fazendas laváveis, algumas até com mangas de broderie, o que não ficava igualmente bem a todas; para a Srª. Stöhr, por exemplo, esse traje era pouco vantajoso, visto ela ter os braços demasiado balofos para usar vestimenta vaporosa. Também o sexo forte levara em conta o tempo esplêndido, no que se referia à escolha dos trajes. Surgiram jaquetas de alpaca e ternos de linho. Joachim ostentara calças de flanela cor de marfim, sob o costumeiro paletó azul, combinação que lhe dava um ar tipicamente militar. Quanto a Settembrini, também ele manifestara repetidas vezes a intenção de mudar de roupa. – Que diabo! – dissera, enquanto, depois do café da manhã, passeava em companhia dos dois primos, em direção à aldeia. – Como está quente o sol! Já vejo que terei de pôr roupa mais leve. – Mas, apesar dessa declaração expressa, continuara trajando o casaco espesso e comprido, com as largas lapelas, e as calças enxadrezadas, que provavelmente representavam tudo quanto possuía de vestuário.  
No terceiro dia, porém, parecia transtornada a natureza e posta às avessas a ordem das coisas. Hans Castorp mal dava crédito aos próprios olhos. Era depois do almoço, e o pessoal, fazia vinte minutos, entregava-se ao repouso, quando o sol se escondeu rapidamente. Nuvens feias, pardas como turfa, surgiram por cima da cordilheira ao sudeste, e um vento glacial, estranho, que penetrava até a medula dos ossos, como se viesse de desconhecidas regiões geladas, começou subitamente a varrer o vale, provocando uma brusca queda de temperatura e encetando um regime completamente novo. 

– Vem neve – ressoou a voz de Joachim por trás da divisão de vidro.

– Que é que você quer dizer com “neve”? – perguntou Hans Castorp. – Não pensa seriamente que vai nevar?! 

– Claro! – respondeu Joachim. – Já conhecemos esse vento. Quando ele vem, traz consigo passeios de trenó. 

 – Bobagem! – retrucou Hans Castorp. -se não me engano muito, estamos em princípios de agosto.

No entanto, Joachim, como conhecedor do clima, dissera a verdade. Dentro de poucos instantes, começou a desabar formidável nevada, com acompanhamento de incessantes trovões. Era um torvelinho tão denso, que tudo parecia envolto num vapor branco e quase nada se enxergava da aldeia e do fundo do vale. 
A neve continuou caindo durante toda a tarde. Puseram a funcionar a calefação central. Enquanto Joachim recorria ao saco de peles e não admitia nenhuma interrupção do seu tratamento, Hans Castorp refugiou-se no interior do quarto, aproximou a cadeira do radiador aquecido e, meneando frequentemente a cabeça, contemplava as monstruosidades que por lá se passavam. 
Na manhã do dia seguinte, já não nevava. Mas, conquanto o termômetro de fora marcasse alguns graus acima de zero, o solo permanecia coberto com neve de um pé de altura, de modo que, ante os olhos pasmados de Hans Castorp, se desdobrava uma perfeita paisagem hibernal. Voltaram a desligar a calefação. A temperatura nos quartos era de seis graus acima de zero. 

– E agora? Já terminou o verão de vocês? – perguntou Hans Castorp ao primo, com amarga ironia.

– É difícil prever – respondeu Joachim, na sua maneira objetiva. -se Deus quiser, haverá ainda uns belos dias de verão. Mesmo em setembro, não é impossível. Mas o caso é que aqui não existe diferença acentuada entre as estações, sabe? Elas se misturam, por assim dizer, e não ligam ao calendário. No inverno, há dias em que o sol está tão forte, que a gente sua e tira o paletó durante o passeio, e no verão. . . Bem, você está vendo o que às vezes acontece no verão. E ainda a neve, esta então põe tudo em desordem. Cai neve em janeiro, mas em maio não cai muito menos, e em agosto também está nevando. Generalizando, posso dizer que não se passa nenhum mês sem que haja neve; nisso a gente pode se fiar. Numa palavra, temos dias de verão e dias de inverno, dias de primavera e dias de outono, mas não há propriamente estações aqui em cima.

– É uma bela confusão – disse Hans Castorp. Em companhia do primo, foi à aldeia, com galochas e sobretudo de inverno, a fim de comprar uns cobertores para cura de repouso, visto ser evidente que, num tempo desses, não lhe bastaria o cobertor de viagem. Chegou até a ventilar a idéia da compra de um saco de peles, porém abandonou-a e mesmo se assustou diante dela.

– Não, senhor – disse. – Vamos limitar-nos aos cobertores. Lá embaixo ainda me prestarão serviços. Cobertores usam-se em toda parte. Nisso não há nada de particular e estranho. Mas um saco de peles é uma coisa toda especial. Se eu comprasse um saco de peles – compreenda-me bem –, teria a impressão de me domiciliar aqui e de tornar-me, em certo sentido, um de vocês. . . Bem, só quero dizer que absolutamente não vale a pena adquirir um saco de peles só para essas poucas semanas. 

Joachim concordou. Numa bela e bem-sortida loja do bairro inglês, compraram dois cobertores de lã de camelo, do mesmo tipo que possuía Joachim, particularmente compridos e largos, muito macios e de cor natural. Deram ordem de mandá-los sem demora ao sanatório, o Sanatório Internacional Berghof, quarto 34. Hans Castorp tencionava estreá-los já de tarde. 
Haviam descido à aldeia depois do café da manhã – naturalmente, uma vez que o horário habitual não oferecia nenhuma outra ocasião para esse passeio. Chovia, e a neve depositada nas ruas já se transformara numa espécie de pasta gélida que lhes enlameava as calças. Ao regressarem, encontraram-se com Settembrini, que, sem chapéu, mas com um guarda-chuva, também se encaminhava ao sanatório. O italiano tinha a cara amarelada e andava visivelmente possuído de um humor elegíaco. Num estilo puro e com palavras bem escolhidas, lamentava-se do frio e da umidade que tanto o faziam sofrer. Se, pelo menos, ligassem a calefação! Mas aqueles miseráveis potentados mandavam desligá-la tão logo parava a nevada. Era uma regra estúpida, um insulto a toda inteligência! E quando Hans Castorp objetou que uma temperatura moderada, sem dúvida, fazia parte integrante do regime, talvez para evitar que os pacientes se tornassem amimalhados, Settembrini respondeu com o mais veemente sarcasmo:

– Pois sim, o regime! Os princípios sagrados, intangíveis, do regime! Com efeito, o senhor fala deles no tom que convém; o tom de disciplina e submissão. Há apenas uma coisa surpreendente, embora num sentido perfeitamente favorável; é que, entre esses princípios, gozam de respeito ilimitado justamente aqueles que coincidem com os interesses financeiros dos potentados, ao passo que se faz vista grossa diante da violação de outros princípios menos dispendiosos... – Enquanto os primos desatavam a rir, Settembrini, em conexão com o almejado calor, passou a falar de seu saudoso pai. 

-meu pai – disse pausada e fervorosamente –, meu pai era homem muito fino. Tinha o corpo e a alma igualmente sensíveis. Como adorava, no inverno, o seu bem aquecido gabinete de estudo! Adorava-o e fazia questão que mantivessem ali uma temperatura constante de vinte graus Réaumur. Isto se conseguia por meio de uma pequena estufa vermelha de tanto calor, e quando, em dias de chuva fria ou de tempestade glacial, uma pessoa passava pelo vestíbulo e entrava no gabinete, sentia o calor lhe envolver os ombros como um manto macio, e os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas de bem-estar. A pequena peça estava abarrotada de livros e manuscritos, entre os quais se achavam muitas preciosidades. E no meio desses tesouros do espírito, estava ele, de pé, com seu roupão de flanela azul, diante da estreita escrivaninha, onde se dedicava à literatura. Era baixinho e delgado; media mais de uma cabeça menos do que eu, imaginem! Nas frontes tinha uns espessos tufos de cabelo grisalho, e seu nariz era muito longo e fino... Que romanista, senhores! Um dos mais eminentes da sua época! Conhecedor da nossa língua como poucos houve! Estilista latino como mais ninguém! Um uomo letterato, segundo a concepção de Boccaccio!... Os sábios vinham de longe para falar com ele, um de Haparanda, outro de Cracóvia. Vinham especialmente à nossa cidade de Pádua para lhe demonstrar a sua estima, e ele recebia-os com afável dignidade. Era também poeta emérito, que nas suas horas de lazer compunha novelas na mais elegante prosa toscana. Um mestre do idioma gentile – sintetizou Settembrini com extrema satisfação, saboreando os sons da língua pátria e meneando a cabeça. – Cultivava seu jardim, segundo o exemplo de Virgílio – continuou –, e tudo quanto dizia era belo e sadio. Mas era preciso que fizesse calor, muito calor, no seu gabinete; senão, tremia de indignação e era capaz de verter lágrimas, porque o deixavam padecer frio. E agora imagine, meu caro engenheiro, e o senhor, tenente, o quanto eu, filho de meu pai, sofro neste maldito e bárbaro lugar, onde o corpo, em pleno verão, tirita de frio e as mais humilhantes impressões constantemente atormentam a alma... Ah! É duro! Que tipos esses que nos rodeiam! Esse conselheiro áulico, escravo maluco do Demônio! E Krokowski -settembrini fez como se o nome lhe quebrasse a língua –, Krokowski, o confessor impudico, que me odeia, porque a minha dignidade humana proíbe entregar-me às suas práticas papistas... E meus comensais! Com que companhia estou condenado a tomar as refeições! À minha direita fica um cervejeiro de Halle – chama-se Magnus –, com um bigode que parece um feixe de feno. “Deixe-me em paz com a literatura”, diz ele. “Que é que ela me oferece? Belos caracteres? Que me adiantam belos caracteres? Sou um homem prático, e na vida quase nunca se encontram belos caracteres.” É esta a ideia que ele faz da literatura. Belos caracteres, o madre de Dio! Sua mulher, que costuma sentar-se à sua frente, deixa-se ficar ali, perde proteínas e afunda-se cada vez mais na estupidez. Que sórdida miséria!...   

Sem que houvessem tido ensejo de trocar opiniões a respeito das palavras de Settembrini, Hans Castorp e Joachim as julgavam do mesmo modo: achavam-nas choramingueiras e desagradavelmente sediciosas, se bem que divertidas e até instrutivas, na sua animosidade atrevida e precisa. Hans Castorp riu-se gostosamente da comparação com o “feixe de feno” e também dos “belos caracteres”, ou melhor, do desespero cômico que Settembrini manifestava. Em seguida disse:

– Ora, meu Deus, pode ser que a companhia não seja muito seleta num estabelecimento destes. Nem sempre se pode escolher os vizinhos de mesa. Isso iria longe. À minha mesa há também uma senhora desse tipo, a Srª. Stöhr... Creio que o senhor a conhece. É de uma ignorância pavorosa, não há dúvida, e às vezes a gente não sabe para onde olhar, quando ela se mete a tagarelar. Contudo, lamenta-se essa mulher da sua temperatura e de se sentir tão lassa. Parece, infelizmente, que não se trata de um caso benigno. E isto é estranho, estupidez e doença, não sei se me expresso claramente, mas tenho uma impressão tão esquisita ao ver uma pessoa estúpida que ainda por cima está doente! Essas duas coisas reunidas, acho que são o que há de mais triste neste mundo. Não se sabe como comportar-se, pois todos gostam, afinal, de tratar um enfermo com seriedade e respeito, não é? A doença é, por assim dizer, uma coisa digna de reverência. Mas quando a estupidez, a cada instante, se intromete, dizendo “fómulo” ou “estabelecimento cósmico”, ou outras asneiras do mesmo quilate – francamente, então não sei se devo rir ou chorar. É um dilema para o sentimento humano, e uma situação tão lamentável que nem posso dizer. Na minha opinião, não há coerência nessas duas coisas; elas não combinam; a gente é incapaz de imaginá-las reunidas. Sempre se pensa que uma pessoa estúpida deve ser normalmente sadia; e que a doença torna as criaturas finas e cultas e diferentes. É assim que se pensa em geral, não é? Pode ser que eu diga mais do que posso justificar – concluiu. – É apenas porque, casualmente, tocamos no assunto... – E estacou, confuso.
 
continua pág 063...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Compra necessária (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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