domingo, 27 de outubro de 2024

O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (13)

Simone de Beauvoir


02. A Experiência Vivida



O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



SEGUNDA PARTE

SITUAÇÃO
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CAPÍTULO I
A   MULHER CASADA

continuando...

     De uma maneira diferente, encontra-se também em Elise, que nos descreve Jouhandeau (Chroniques maritales e Nouvelles Chroniques maritales) uma vontade feroz de domínio que a leva a diminuir o mais possível o marido:

ELISE: Para começar, diminuo tudo em torno de mim. Fico então bem tranquila. Só tenho que tratar com monos e grotescos.
Ao despertar, ela me chama: 
— Meu monstrinho. 
Ê uma política. 
Quer humilhar-me. 
Com que indisfarçável alegria se dedicou a fazer que eu renunciasse a todas as minhas ilusões, uma após outra. Ela nunca perdeu uma oportunidade de dizer que sou isto, que sou aquilo, um pobre diabo, diante de meus amigos espantados ou de nossos criados embaraçados. Acabei assim acreditando nela. . . Para desprezar-me, não há ocasião em que deixe de me fazer sentir que minha obra a interessa menos do que o bem-estar que nos poderia dar.
Foi ela quem secou a fonte de meus pensamentos, desanimando-me paciente, lenta e pertinentemente, humilhando-me com método, levando-me a renunciar contra minha vontade, pouco a pouco, com uma lógica precisa, imperturbável, implacável, a meu orgulho.  
— Em suma, ganhas menos do que um operário — disse-me um dia diante do encerador...
... Quer diminuir-me para parecer superior ou pelo menos igual, e que esse desdém a mantenha diante de mim em sua superioridade. . . Só tem estima por mim na medida em que o que faço lhe serve de estribo ou de mercadoria. 

     Para se apresentar em face do macho como o sujeito essencial, Frieda e Elise empregam uma tática que os homens denunciaram muitas vezes: esforçam-se por negar-lhes a transcendência. Os homens supõem facilmente que a mulher alimenta sonhos de castração em relação a eles; em verdade, a atitude dela é ambígua: deseja humilhar, mais do que suprimir o sexo masculino. O que é mais exato é que ela quer mutilar o homem em seus projetos, em seu futuro. Triunfa quando o marido ou o filho estão doentes, cansados, reduzidos a sua presença de carne. Então eles não se apresentam mais, na casa em que ela reina, senão como um objeto entre outros objetos; ela trata-o com uma competência de dona de casa; pensa-o como se cola um prato quebrado, limpa-o como se limpa um pote; nada repugna às suas mãos angélicas, amigas das alimpaduras e da lixívia. Lawrence dizia a Mabel Dodge, falando de Frieda: "Você não pode saber o que é sentir a mão dessa mulher quando se está doente. Mão pesada, alemã da carne". Conscientemente, a mulher impõe essa mão como todo o seu peso, para que o homem sinta que também é apenas um ser de carne. Não é possível levar mais longe do que Elise essa atitude, como conta Jouhandeau: 

Lembro-me, por exemplo, do piolho Tchang Tsen no início de nosso casamento. . . Só conheci realmente a intimidade com uma mulher graças a ele, no dia em que Elise me botou nu em pelo a seus joelhos para me tosquiar como um carneiro, iluminando até os meus recantos recônditos com uma vela que passeava à volta de meu corpo. Ah! sua lenta inspeção de minhas axilas, de meu peito, de meu umbigo, da pele de meus testículos esticada entre seus dedos como um tambor, suas paradas prolongadas ao longo de minhas coxas, entre meus pés e a passagem da navalha em tomo do eu; a queda enfim no cestinho de um punhado de pelos louros em que o piolho se escondia e que ela queimou, abandonando-me, ao mesmo tempo que me livrava dele e de seus esconderijos, a uma nova nudez e ao deserto do isolamento. 

    A mulher gosta que o homem seja não um corpo em que se exprime uma subjetividade, mas sim uma carne passiva. Ela afirma a vida contra a existência, os valores carnais contra os valores espirituais; ela adota de bom grado em relação às empresas masculinas a atitude humorística de Pascal; pensa também "que toda a infelicidade do homem provém de não saber ficar descansando num quarto"; ela o fecharia com prazer dentro de casa; toda atividade que não beneficia a vida familiar provoca sua hostilidade; a mulher de Bernard Palissy mostra-se indignada por ele queimar os móveis para inventar um noivo esmalte de que até então o mundo prescindira; Mme Racine leva o marido a interessar-se pelas groselhas do jardim e recusa-se a ler suas tragédias. Jouhandeau mostra-se muitas vezes exasperado em suas Chroniques maritales porque Elise se obstina em não considerar seu trabalho literário senão como uma, fonte de proveitos materiais.

Disse-lhe: minha última novela sai esta manhã. Sem querer ser cínica, mas porque só isso a interessa de fato, respondeu-me: serão, ao menos, trezentos francos a mais para este mês.

     Tais conflitos podem exasperar até provocarem uma ruptura. Mas, geralmente, embora recusando-lhe o domínio, a mulher deseja "conservar" o marido. Luta contra ele para defender sua própria autonomia, e combate contra o resto do mundo para conservar a "situação" que a obriga à dependência. Esse duplo jogo realiza-se com dificuldade, o que explica em parte o estado de inquietação e nervosismo em que numerosas mulheres passam a vida. Stekel dá-nos um exemplo muito significativo:

Mme Z. T., que não gozou nunca, é casada com um homem muito culto. Mas ela não pode suportar-lhe a superioridade e começou a querer igualá-lo estudando a mesma especialidade. Como era muito penoso, abandonou os estudos ao ficar noiva. O homem é muito conhecido e numerosas alunas o cortejam. Ela propõe-se não se entregar a esse culto ridículo. Na intimidade, foi insensível desde o principio e assim permaneceu. Só atingia o orgasmo pelo onanismo e lhe dizia. Recusava as tentativas dele de excitá-la com carícias. . . Muito breve começou a ridicularizá-lo e a menosprezar o trabalho do marido. Não conseguia "compreender essas tolas que andam atrás dele, ela que conhecia os bastidores da vida privada do grande homem". Em suas disputas quotidianas ocorriam-lhe expressões como: "a mim é que não vais impor os teus rabiscos, ou pensas que podes fazer de mim o que quiseres só porque és um escritorzinho". O marido ocupava-se cada vez mais de suas alunas, ela cercava-se de rapazes. Assim continuou durante anos, até que o marido se apaixonou por outra mulher. Ela sempre suportara as pequenas aventuras dele, tornava-se até amiga das "bobinhas" abandonadas . .. Mas, então, mudou de atitude e entregou-se sem orgasmo ao primeiro rapaz que surgiu. Confessou ao marido que o enganara, ele o admitiu perfeitamente. Podiam separar-se tranquilamente. . . Ela recusou o divórcio. Houve uma longa explicação e uma reconciliação... Entregou-se chorando e alcançou seu primeiro orgasmo intenso...

     Vê-se que, em sua luta contra o marido, ela nunca pensou em deixá-lo.
     "Pegar um marido" é uma arte, "retê-lo" é um ofício. É preciso muito jeito. A uma jovem mulher rabugenta, dizia a irmã prudente: "Cuidado, à força de fazer cenas a Marcel vais perder tua situação". Joga-se o que há de mais sério: a segurança material e moral, um lar próprio, a dignidade de esposa, um sucedâneo mais ou menos feliz do amor, a felicidade. A mulher aprende depressa que sua atração sexual é apenas a mais frágil de suas armas; dissipa-se com o hábito e, infelizmente, há outras mulheres desejáveis no mundo! Ela se esforça contudo por ser sedutora, por agradar: amiúde é ela dividida entre o orgulho que a impele para a frieza e a ideia de que com seu ardor sensual lisonjeará e prenderá o marido. Ela conta também com a força do hábito, com o encanto que ele encontra numa casa agradável, com seu pendor pela boa cozinha, sua ternura pelos filhos; ela se aplica em torná-lo orgulhoso dela pela maneira de receber, de se vestir e em conquistar ascendência sobre ele com conselhos, influência; na medida de suas forças ela se tornará indispensável a ele, ou ao seu êxito mundano, ou ao trabalho. Mas, principalmente, toda uma tradição ensina à mulher a "arte de saber segurar um homem"; é preciso descobrir e lisonjear-lhe as fraquezas, dosar habilmente a adulação e o desdém, a docilidade e a resistência, a vigilância e a indulgência. Esta última mistura é particularmente delicada. Não deve dar ao marido nem uma liberdade excessiva nem uma liberdade insuficiente. Demasiado complacente, a mulher vê o marido escapar-lhe; frustra-a do dinheiro, do ardor amoroso que gasta com outras mulheres; ela corre o risco de que uma amante adquira força bastante para obter um divórcio ou, pelo menos, para ocupar o primeiro lugar em sua vida. Entretanto, se lhe proíbe toda aventura, se o agasta com sua vigilância, suas cenas, suas exigências, pode indispô-lo contra ela gravemente. Trata- -se de saber "fazer concessões" com conhecimento de causa; cumpre fechar os olhos se o marido não "obedece à risca ao contrato", e em outros momentos abri-los bem; a mulher casada desconfia, em particular, das moças que se sentiriam por demais felizes, pensa, em roubar-lhe a "posição". Para arrancar o marido de uma rival inquietante tentará distraí-lo, fazê-lo viajar; se necessário — tomando por modelo Mme de Pompadour — suscitará outra rival menos perigosa; se nada der resultado, recorrerá às crises de choro, de nervos, às tentativas de suicídio etc, mas o abuso das cenas e recriminações expulsará o marido do lar; a mulher tornar-se-á insuportável no momento em que maior será a necessidade de seduzi-lo; se quiser ganhar a partida, dosará habilmente lágrimas comovedoras e sorrisos heroicos, chantagem e coquetismo. Dissimular, negacear, odiar e temer em silêncio, apostar na vaidade e nas fraquezas do homem, aprender a não cair nas tramas dele, a enganá-lo, a manobrá-lo, é uma triste ciência. A grande desculpa da mulher está em que lhe impuseram empenhar-se completamente no casamento: ela não tem oficio, não tem capacidades, não tem relações pessoais, seu nome mesmo não lhe pertence; é apenas a "metade" de seu marido. Se ele a abandonar, não encontrará nenhum recurso nem em si nem fora de si. É fácil condenar Sofia Tolstoi, como o fazem A. de Monzie e Montherlant: mas, se tivesse recusado a hipocrisia da vida conjugai, para onde teria ido? Que destino a aguardava? Sem dúvida ela parece ter sido uma megera odiosa: mas pode-se pedir-lhe que amasse seu tirano e abençoasse sua escravidão? Para que haja entre esposos lealdade e amizade, a condição sine qua non está em que sejam ambos livres em relação um ao outro, e concretamente iguais. Enquanto o homem possui sozinho a autonomia econômica e que detém — pela lei e os costumes — os privilégios que a virilidade confere, é natural que se apresente tantas vezes como tirano, o que incita a mulher à revolta e à astúcia.
     Ninguém pensa em negar as tragédias e as mesquinharias conjugais: mas o que sustentam os defensores do casamento é que os conflitos entre esposos provêm da má vontade dos indivíduos e não da instituição. Tolstoi, entre outros, descreveu o casal ideal do epílogo de Guerra e Paz: Pierre e Natacha. Esta foi uma moça coquete e romanesca; casada, espanta todo o seu círculo de relações porque renuncia aos vestidos, à sociedade, a toda distração para se consagrar exclusivamente ao marido e aos filhos; torna-se o tipo da matrona.

Ela não tinha mais aquela chama de vida sempre acesa que lhe dava encanto outrora. Agora, muitas vezes, só se percebia dela o rosto e o corpo, não se lhe via mais a alma, mas somente a mulher forte, bela e fecunda.

      Ela exige de Pierre um amor tão exclusivo quanto o que lhe dedica; tem ciúmes dele; ele renuncia às saídas, às amizades, para se dedicar, ele também, inteiramente à família.

Não ousava ir jantar nos clubes nem empreender uma longa viagem salvo para seus negócios, entre os quais a mulher incluía os trabalhos científicos a que, sem nada entender, atribuía uma importância extrema.

     Pierre era dominado pela mulher, mas em compensação:

Natacha na intimidade fizera-se a escrava do marido. Toda a casa era gerida pelas ditas ordens do marido, isto é, pelos desejos de Pierre que Natacha se esforçava por adivinhar.

     Quando Pierre se encontra longe dela, Natacha acolhe-o, na volta, com impaciência porque sofreu com sua ausência; mas reina entre os esposos um maravilhoso entendimento; compreendem-se por meias palavras. Entre os filhos, a casa, o marido amado e respeitado, ela experimenta uma felicidade quase sem mácula. 
     Esse quadro idílico merece ser estudado de mais perto. Natacha e Pierre estão unidos, diz Tolstoi, como a alma ao corpo; mas quando a alma deixa o corpo, a morte é uma só; que aconteceria se Pierre deixasse de amar Natacha? Lawrence também recusa a hipótese da inconstância masculina: Don Ramon amará sempre a pequena índia Teresa que lhe fez dom da alma. Entretanto, um dos mais ardentes defensores do amor único, absoluto, eterno, André Breton, é forçado a admitir que, pelo menos nas circunstâncias atuais, esse amor pode enganar-se de objeto: erro ou inconstância, trata-se para a mulher do mesmo abandono. Pierre, robusto e sensual, será atraído carnalmente por outras mulheres; Natacha tem ciúmes: dentro em breve as relações se azedarão; ou ele a deixará, o que arruinará a vida dela, ou êle mentirá e a suportará com rancor, o que estragará a vida dele, ou ambos viverão de compromissos e meias medidas, o que fará infelizes ambos. Objetar-se-á que Natacha terá pelo menos os filhos: mas os filhos só são uma fonte de alegria no seio de uma forma equilibrada em que o marido é um dos ápices; para a esposa abandonada, ciumenta, tornam-se um fardo ingrato. Tolstoi admira o devotamento cego de Natacha às ideias de Pierre; mas um outro homem, Lawrence, que também exige da mulher um devotamento cego, zomba de Pierre e de Natacha; um homem pode, portanto, na opinião de outros homens, ser um ídolo de barro e não um deus verdadeiro; em lhe rendendo um culto, perde-se sua vida em lugar de salvá-lo; como sabê-lo? As pretensões masculinas se contestam: a autoridade não funciona mais. É preciso que a mulher julgue e critique, não pode ser apenas um eco dócil. E aviltá-la, de resto, impor-lhe princípios e valores a que não adira de livre e espontânea vontade; o que ela pode partilhar do pensamento do marido, não pode senão através de um juízo autônomo; o que lhe é estranho, não deve ser obrigada nem a aprovar nem a recusar; não pode tomar de empréstimo a outra pessoa suas próprias razões de existir.
     A condenação mais radical do mito Pierre-Natacha, é dada pelo casal Leon-Sofia. Sofia sente repulsa pelo marido, acha-o "cacete"; ele engana-a com todas as camponesas das cercanias, ela tem ciúme e se aborrece; vive no nervosismo de sua repetida gravidez e seus filhos não enchem o vazio de seu coração nem o de seus dias; o lar é para ela um deserto árido; para ele um inferno. E isso termina com essa velha histérica deitando-se seminua na noite úmida da floresta e esse ancião acuado que foge, renegando enfim a "união" de toda uma vida.

continua página 231...
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O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (13)
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.

"O que é uma mulher?"

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