quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Massa e Poder - Malta e Religião: A Floresta e a Caça entre os Leles de Kassai

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      A Floresta e a Caça entre os Leles de Kassai

     Num estudo profundo e recente, a antropóloga inglesa Mary Douglas logrou realmente encontrar a unidade de vida e religião num povo africano. Não se sabe o que admirar mais em seu trabalho: se a clareza de observação ou o caráter aberto e imparcial de seu pensamento. A melhor maneira de agradecer-lhe é segui-la ao pé da letra.
     Os leles, um povo de aproximadamente 20 mil pessoas, vivem no Congo Belga, nas proximidades do rio Kassai. Suas aldeias situam-se numa pradaria, em quadrados compactos de vinte a cem cabanas, nunca longe da floresta. Seu principal alimento é o milho, que nela cultivam: todo ano, abre-se uma nova clareira para o seu cultivo, do qual esperam não mais que uma colheita. Na mesma clareira crescem então palmeiras de ráfia, e destas eles utilizam quase tudo. Das folhas novas obtém-se um material com o qual os homens tecem pano de ráfia. Ao contrário de seus vizinhos, todos os homens da tribo sabem tecer. Pedaços quadrados do tecido servem como uma espécie de dinheiro. Dessa mesma palmeira faz-se um muito apreciado vinho não fermentado. Embora cresçam melhor na floresta, bananeiras e palmeiras são plantadas também ao redor da aldeia; já o amendoim é cultivado apenas em torno desta última. Tudo o mais que há de bom provém da floresta: água, lenha, sal, milho, mandioca, azeite, peixes e carnes. Ambos os sexos, homens e mulheres, têm muito trabalho a fazer na floresta. A cada três dias, porém, as mulheres são dela excluídas. Suas provisões de alimentos, lenha e água, elas têm de providenciá-las na véspera. Os leles consideram a floresta uma esfera do homem.

Incomensurável é o prestígio da floresta. Os leles falam dela com um entusiasmo quase poético [...] Frequentemente enfatizam a oposição entre floresta e aldeia. No calor do dia, quando a aldeia poeirenta faz-se desagradavelmente quente, eles buscam refúgio na fresca escuridão da floresta. O trabalho ali os cativa e faz felizes; trabalhar em outro lugar é-lhes maçante. “O tempo”, dizem eles, “passa devagar na aldeia e rápido na floresta.” Os homens gabam-se de poder trabalhar ali o dia inteiro sem sentir fome; na aldeia, têm sempre de pensar em comida.

     Mas a floresta é também um lugar perigoso. Aquele que está de luto ou teve um sonho ruim não pode adentrá-la. Um tal sonho é interpretado como uma advertência. Quem, no dia seguinte, não evitá-la, será vítima de algum infortúnio: uma árvore cairá sobre sua cabeça, ele vai se cortar com a faca ou despencar de uma palmeira. Um homem que não dê atenção a essa advertência põe em perigo apenas sua própria pessoa. Uma mulher que, no dia proibido, penetre na floresta, põe em risco a aldeia toda.
      “Parece haver três razões específicas para o grande prestígio de que desfruta a floresta: ela é a fonte de todas as coisas boas e necessárias — do alimento, da bebida, da habitação e do vestuário; é ainda a fonte dos medicamentos sagrados; e, por fim, é o local da caça, que, a seus olhos, é tida pela mais importante das atividades.”
     Os leles ostentam uma verdadeira avidez por carne. Considera-se uma grave ofensa oferecer a um convidado uma refeição à base de vegetais. Em suas conversas sobre acontecimentos sociais, detêm-se de bom grado a falar sobre a quantidade e o tipo da carne servida. Não obstante, não criam cabras ou porcos como seus vizinhos ao sul. A ideia de comer animais que tenham crescido na aldeia os enoja. A boa alimentação, dizem, deve provir da floresta, onde ela é pura e saudável, como os javalis e antílopes. Ratos e cães são impuros — hama, a palavra que os designa, é a mesma utilizada para designar o pus e o excremento. Igualmente impuros são, pois, considerados as cabras e os porcos, e justamente pelo fato de terem sido criados na aldeia.
     A avidez dos leles por carne jamais os seduz a comer carne que não tenha sido obtida na floresta ou por meio da caça. São muito bons em criar cães e, se ao menos quisessem, não lhes seria difícil manter cabras.
     “A separação entre mulheres e homens, floresta e aldeia; a dependência da floresta por parte da aldeia e a exclusão das mulheres da primeira são os elementos mais importantes e sempre recorrentes de seu ritual.”
     A pradaria, seca e estéril, não goza de nenhum prestígio; deixada às mulheres, é tida por uma esfera neutra entre a floresta e a aldeia.
     Os leles acreditam num deus, criador dos homens e dos animais, dos rios e de todas as coisas. Creem também em espíritos, acerca dos quais falam com cuidado e reserva, pois os temem. Tais espíritos jamais foram homens, assim como nunca foram vistos por homens. Tivesse alguém visto um espírito, teria ficado cego e morrido de úlceras. Os espíritos moram nas profundezas da floresta, particularmente nas nascentes dos cursos d’água. Durante o dia, eles dormem; à noite, põem-se a vagar. Não morrem nem jamais ficam doentes. Deles depende a sorte dos homens na caça e a fertilidade das mulheres. Podem trazer doença a uma aldeia. As capivaras são consideradas os animais mais fortemente dotados de poder suprassensível; vivem a patejar nas nascentes, o lugar preferido dos espíritos. O porco é algo como um cão dos espíritos: vive com eles e a eles obedece como o cão ao caçador. Se uma capivara desobedeceu a um espírito, ela será punida por ele, que faz com que, numa caçada, ela seja morta por um homem, ao qual, assim, concede ao mesmo tempo uma recompensa.
      Os espíritos exigem dos homens toda sorte de coisas, mas, muito particularmente, que a paz reine na aldeia. “O mais claro indício de que tudo vai bem na aldeia é uma caçada feliz. A reduzida porção de carne que, tendo-se abatido um javali, cada um recebe — homem, mulher ou criança — não é suficiente para explicar a alegria que, semanas depois, as pessoas ainda externam a respeito em suas conversas. A caçada é uma espécie de barômetro espiritual cujas oscilações são fervorosamente observadas por toda a aldeia.”
     Chama a atenção a maneira pela qual os leles correlacionam o parto das crianças à caça, qual fossem elas funções análogas de mulheres e homens. “A aldeia ‘estragou-se’”, pode-se ouvi-los dizer: “a caçada fracassou, as mulheres estão estéreis, tudo está morrendo.” Mas, quando estão satisfeitos com o estado das coisas, dizem: “Nossa aldeia agora é boa e rica. Matamos três javalis e quatro mulheres pariram. Estamos todos saudáveis e fortes”.
     A atividade que goza do máximo prestígio é a caçada conjunta. É esta que importa, e não a caçada particular empreendida pelo indivíduo.

Homens armados de arcos e flechas postam-se num círculo ao redor de uma porção da floresta. Os batedores com seus cães desencovilam a caça. Jovens e velhos, já quase incapazes de andar, procuram juntar se à caçada. Estimados ao máximo são os que possuem cães e, com eles, penosamente se embrenham pela mata, estimulando-os e dirigindo-os com seus gritos. O animal desencovilado precipita-se contra as flechas dos caçadores a esperá-lo. Esse é provavelmente o método mais eficaz de caça na densa floresta. Seu objetivo é surpreender o animal; atira-se, então, com rapidez e a uma distância bastante curta.

     Espantosa num povo que tanto se orgulha de suas caçadas é a carência generalizada de aptidões individuais. Um homem que vai para a floresta carrega sempre consigo um arco e algumas flechas, mas os emprega unicamente para matar pássaros e esquilos, não lhe passando pela cabeça atirar sozinho em animais de grande porte. As técnicas especializadas do caçador solitário são desconhecidas dos leles. Eles não sabem espreitar os animais ou imitar lhes os gritos; desconhecem tanto as iscas quanto as camuflagens. Raramente alguém penetra sozinho nas profundezas da floresta. Todo o seu interesse concentra-se na caçada conjunta. Se, na floresta, um homem topa com uma manada de javalis patejando num pântano, é possível que, arrastando-se, ele se aproxime tanto dela até ouvir-lhe a respiração; mas, sem arriscar um único tiro, ele se afastará na ponta dos pés, em busca dos moradores da aldeia.
     Na pradaria, caça-se apenas uma vez por ano: na época da seca, quando se pode atear fogo à grama. Várias aldeias se unem, então, afim de cercar a paisagem em chamas. Os meninos contam com a possibilidade de obter sua primeira presa. A matança, conta-se, é tremenda. Trata-se da única ocasião em que o grupo de caça compõe-se de mais do que a população masculina de uma única aldeia; das caçadas na floresta participam somente, e sempre, os homens de uma aldeia. Em última instância, a aldeia constitui uma unidade política e ritual porque compõe uma unidade de caçadores. Não há de causar surpresa o fato de os leles contemplarem sua própria cultura como uma cultura primordialmente de caça.
     De importância particular é a partilha da caça. Ela se apresenta estritamente regulamentada, e, aliás, de um modo que sublinha o sentido religioso da caçada. No que se refere ao culto, os leles subdividem-se em três grupos. Cada um deles tem direito a uma comida bem definida, proibida àqueles que não pertencem a ele. O primeiro desses grupos é o dos genitores, constituído de todos os homens que geraram um filho. A estes cabe o peito de toda e qualquer caça, bem como a carne de todos os animais jovens. Entre os genitores, há alguns que geraram um filho e uma filha. Dentre estes são escolhidos os membros do segundo grupo, mais exclusivo: o dos homens pangolim. Chamam-se assim porque somente eles têm direito à carne do pangolim, um animal desdentado que tem o corpo coberto de escamas. O terceiro grupo é o dos adivinhos. Estes recebem a cabeça e as tripas do javali.
      Nenhum animal de maior porte pode ser morto sem que — precisamente em sua partilha — se torne objeto de um ato religioso. O mais importante de todos os animais é o javali, e sua partilha dá-se da seguinte maneira. Após terem os adivinhos recebido a cabeça e as tripas do animal, o peito é dado aos genitores, os ombros aos homens que o trouxeram para a aldeia, o pescoço aos que possuem cães, o dorso, um quarto traseiro e um dianteiro ao homem que o matou e, finalmente, o estômago aos ferreiros da aldeia que produziram as flechas.
      A estratificação da sociedade dos leles fortalece-se, por assim dizer, depois de cada caçada. Mas a excitação da malta de caça ampliou-se num sentimento que sustenta toda a comunidade. Pode-se, assim, sem cometer uma violência contra a autora, falar numa religião de caça, no verdadeiro sentido da expressão. Uma tal religião jamais havia sido descrita de uma forma tão convincente, sem deixar nenhum espaço para a dúvida. Obtém-se aí, ademais, uma preciosa visão do desenvolvimento da oresta como símbolo da massa. Ela contém tudo quanto é tido por valioso, e o que há de mais valioso obtém-se conjuntamente dela. Os animais, que são o objeto da malta de caça, habitam em seu interior, mas na floresta moram também os temidos espíritos que concedem aos homens seus animais.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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