Elias Canetti
MALTA E RELIGIÃO
Os Despojos de Guerra dos Jivaros
O povo mais guerreiro em toda a América do Sul constitui-se hoje
dos jivaros do Equador. É particularmente elucidativo contemplar seus
costumes e disposições em relação à guerra e seus despojos.
Relativamente a esse povo, não se pode falar em uma superpopulação.
Ele não vai à guerra para conquistar novas terras. O espaço de que
dispõe para viver é antes grande do que pequeno. Numa área de mais de
60 mil quilômetros quadrados vivem, talvez, 20 mil pessoas. Os jivaros
desconhecem assentamentos maiores; não apreciam sequer as aldeias.
Cada família mora sozinha numa casa, sob o comando do homem mais
velho — o chefe; a família mais próxima encontra-se, talvez, a alguns
quilômetros de distância. Nenhuma organização política as vincula
umas às outras. Em tempos de paz, cada pai de família constitui a
instância suprema, a ninguém cabendo dar-lhe ordens. Se os jivaros não
procurassem uns aos outros com propósitos hostis, eles jamais haveriam
de encontrar-se no espaço gigantesco de suas matas virgens.
A argamassa que os mantém unidos é a vingança de sangue, ou, mais
propriamente, a morte. Para eles, inexiste morte natural; quando um
homem morre é porque um inimigo o enfeitiçou à distância. É dever de
seus parentes descobrir, então, quem foi o responsável pela morte e
vingá-la no feiticeiro. Toda morte é, portanto, um assassinato, e só pode
ser vingada com outro assassinato. Se, contudo, a feitiçaria letal do
inimigo surte efeito a grande distância, a vingança física ou de sangue a
que se está obrigado somente se faz possível procurando-o.
Assim, os jivaros procuram uns aos outros a m de que possam
vingar-se, e, nesse sentido, pode-se designar a vingança de sangue sua
argamassa social.
A família que vive reunida numa casa compõe uma unidade assaz
densa. Tudo quanto um homem empreende, ele o faz em conjunto com
os demais homens da casa. Para as expedições maiores, que são mais
perigosas, reúnem-se homens de várias casas relativamente próximas. E
é somente para esse propósito de uma séria campanha em busca de
vingança que eles elegem um chefe — um homem experiente, em geral
de mais idade, ao qual se submetem voluntariamente pelo tempo que
durar a empreitada.
A malta de guerra é, pois, a verdadeira unidade dinâmica dos jivaros.
Ao lado da unidade estática da família, ela é a única importante. Em
torno da malta de guerra giram todas as suas festas. As pessoas juntam
se uma semana antes de partir, e, mais tarde, ao retornarem vitoriosas
da batalha, tornam a reunir-se para uma série de grandes festas.
As guerras servem exclusivamente à destruição. Todos os inimigos são
mortos, à exceção de uma ou duas jovens mulheres e, talvez, de algumas
crianças, acolhidas pela família. A propriedade do inimigo — que é, em
si, de pequena monta: seus animais domésticos, suas plantações, sua casa
— é destruída. O único objeto que realmente se almeja é a cabeça
cortada do inimigo. Por essa, entretanto, tem-se verdadeira paixão;
voltar para casa com pelo menos uma tal cabeça constitui a meta
suprema de todo guerreiro.
A cabeça é preparada de um modo especial e reduz-se mais ou menos
ao tamanho de uma laranja. Chamam-na, então, tsantsa. O possuidor de
uma tal cabeça adquire por meio dela uma reputação especial. Passado
algum tempo — um ou, talvez, dois anos —, celebra-se uma grande
festa em cujo centro encontra-se a cabeça corretamente preparada. Para
essa festa são convidados todos os amigos; come-se, bebe-se e dança-se
muito; tudo quanto se faz obedece a um cerimonial estabelecido. Trata
se de uma festa de caráter inteiramente religioso, e seu exame
minucioso mostra que o anseio pela multiplicação e os meios para
alcançá-la constituem sua verdadeira essência. É impossível entrar aqui
nos detalhes que Karsten apresenta com certa amplitude em seu trabalho
Blood Revenge, War and Victory Feasts Among the Jibaro Indians. Su ciente
será destacar uma de suas danças mais importantes, na qual, com grande
veemência, são evocados um a um todos os animais que são objeto de
caça e, depois deles, o próprio ato sexual humano, que serve à
multiplicação do grupo.
Essa dança constitui o verdadeiro preâmbulo à grande festa. Homens
e mulheres organizam-se num círculo ao redor do pilar central da casa,
dão-se as mãos e põem-se, então, a girar lentamente, utilizando-se,
como palavras de evocação, dos nomes de todos os animais cuja carne
apreciam comer. A estes, acrescentam nomes de alguns objetos que o
próprio índio fabrica e emprega na vida doméstica. Depois de cada um
desses nomes, exclamam alto e veementemente um “hei!”.
A dança principia com assobios estridentes. A evocação propriamente
dita é a seguinte:
Hei, hei, hei!Macaco urrador, hei!Vermelho, hei!Macaco pardo, hei!Macaco preto, hei!Macaco capuchinho, hei!Macaco cinza, hei!Javali, hei!Papagaio verde, hei!
De rabo grande, hei!Porco caseiro, hei!Gordo, hei!Roupa de mulher, hei!Cinto, hei!Cesto, hei!
Dura aproximadamente uma hora essa evocação, ao longo da qual os dançarinos movem-se ora para a direita ora para a esquerda. A cada parada para inverter a direção, eles emitem altos assobios e gritam “tchi, tchi, tchi, tchi”, como se pretendessem, com esse grito, preservar a continuidade da evocação.
Uma outra evocação destina-se às mulheres e sua fertilidade:
Hei! hei! hei!Mulher, hei!Mulher, hei!Coito, hei!Que a tsantsa nos conceda o coito!Acasalar, hei!Acasalar, hei!Mulher, hei!Mulher, hei!Que seja de verdade, hei!Assim nós fazemos, hei!Que seja bonito, hei!Chega, hei!
No centro dessas evocações e de todos os demais atos da festa encontra-se a tsantsa — a cabeça capturada, preparada e encolhida do inimigo. Seu espírito mantém-se sempre nas proximidades dela e é altamente perigoso. O jivaro busca, de todas as formas, amansá-lo; tão logo tenha conseguido colocá-lo a seu serviço, esse espírito passa a ser de grande utilidade. Ele cuida para que seus porcos e galinhas se multipliquem, e é graças a ele também que a mandioca se multiplica. Tal espírito traz, enfim, todas as bênçãos que, sob a forma de multiplicação, se podem desejar. Mas não é fácil escravizá-lo por completo. De início, ele se encontra repleto da ânsia por vingança, e mal se pode conceber todo o mal que é capaz de causar. É absolutamente espantoso, entretanto, o número de ritos e observâncias de que o jivaro se serve para dominá-lo. A festa, que se estende por vários dias, termina com a cabeça e o espírito correspondente sob seu total controle.
Se se contempla a tsantsa do ponto de vista de nossos bem conhecidos
ritos bélicos, tem-se de a rmar que ela representa aquilo a que
chamamos despojos. Para conquistar a cabeça, vai-se à guerra; ela é o
único despojo. No entanto, pequeno como afinal se torna esse despojo,
depois de encolhido até o tamanho de uma laranja, ele contém tudo o
que importa. Essa cabeça propicia toda a multiplicação que se deseja: a
dos animais e plantas dos quais se vive, a dos objetos que se fabricam, e,
afinal, a da própria gente. Trata-se de um despojo terrivelmente
concentrado, e não basta consegui-lo: necessário é também o empenho
em, mediante complicadas providências, transformá-lo naquilo que ele
deve ser. Tais providências culminam na excitação conjunta da festa, e
muito particularmente em suas abundantes evocações e danças. Como
um todo, a festa da tsantsa é promovida por uma malta de
multiplicação. Se bem-sucedida, a malta de guerra desemboca por fim
nessa malta de multiplicação da festa, e há que se caracterizar a
transformação daquela nesta como a verdadeira dinâmica da religião
dos jivaros.
continua página 206...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e Religião: Os Despojos de Guerra dos Jivaros
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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