terça-feira, 26 de agosto de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Neve (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI
Neve

continuando...

     Hans Castorp verificou que depressa adquire uma técnica quem a necessita intimamente. Não tinha pretensões de perícia. O que precisava, podia aprendê-lo em poucos dias, sem se esfalfar nem perder o fôlego. Tratava de manter os pés juntos e de traçar sulcos paralelos; experimentava dirigir-se por meio dos bastões, durante as descidas; aprendia a franquear obstáculos e pequenos acidentes do terreno, num só arranco, com os braços abertos, elevando-se e mergulhando como um navio no mar agitado. Após a vigésima tentativa já não caía, quando, em plena corrida, freava com o auxílio do telemark, avançando uma das pernas e curvando o joelho da outra. Aos poucos foi ampliando os seus exercícios. Um belo dia, o Sr. Settembrini viu o desaparecer nas brumas alvacentas. Com as mãos em concha à guisa de alto-falante, enviou-lhe algumas palavras de advertência, depois do quê foi para casa, pedagogicamente satisfeito.
     Era linda a paisagem da montanha hibernal – linda não de um modo suave e agradável, senão assim como o é o ermo do mar do Norte nos dias de um forte vento oeste. Não havia na verdade estrondo de trovões; pelo contrário, reinava um silêncio de morte, que no entanto despertava os mesmos sentimentos de reverência. As solas compridas, elásticas, de Hans Castorp levavam-no em muitas direções, ao longo da encosta esquerda, rumo a Clavadel, ou à direita, passando por Frauenkirch e Glaris, por trás das quais os sombrios contornos do maciço de Amselfluh surgiam nas brumas, qual um fantasma. Entrou também no vale de Dischma e, subindo pelos fundos do Berghof, tomou a direção do arborizado monte Seehorn, do qual apenas o cume envolto em neve ultrapassava o limite da vegetação, e da floresta de Drusatscha, por trás da qual se enxergava a pálida silhueta da cordilheira Rética, revestida de espessa camada de neve. Por meio do teleférico, transportou-se com seus esquis até Schatzalp, onde, erguido a dois mil metros de altura, pôs-se a vaguear calmamente através da neve poeirenta, por sobre faiscantes planos inclinados, que em dias claros ofereciam uma vista grandiosa do campo das suas aventuras.
     Regozijava-se com seus novos recursos, que lhe abriam zonas antes inviáveis e aniquilavam quase todos os obstáculos. Proporcionavam-lhe o manto da desejada solidão, a mais profunda solidão que se possa imaginar, a solidão que inspirava à alma a sensação do desconhecido e do perigo dessas paragens. Havia ali, por exemplo, um precipício coberto de pinheiros, que se perdia na cerração da neve, e do outro lado subia uma vertente rochosa com enormes massas de neve, ciclópicas, gibosas e arqueadas, que formavam cavernas e cúpulas. Quando Hans Castorp parava, a fim de não ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, com o menor traço de som como que abafado por meio de algodão, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primevo, aquele que Hans Castorp ouvia ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e com a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava caindo, numa queda calma, sem ruído algum.
     Não, esse mundo, no seu silêncio insondável, não tinha nada de hospitaleiro. Admitia o visitante por sua própria conta e risco. Em realidade não o recebia nem acolhia, mas apenas lhe tolerava a intrusão e a presença, sem se responsabilizar por nada. A impressão que despertava era a de uma ameaça muda e elementar, baseada não em hostilidade, senão antes numa indiferença mortal. O rebento da civilização, que pela sua origem fica alheio e distante da natureza selvagem, é muito mais acessível à sua grandiosidade do que o seu filho rude, que depende dela desde a infância e mantém com ela relações de prosaica familiaridade. Este mal conhece o temor religioso com que aquele, arregalando os olhos, a enfrenta. Esse temor forma o âmago de toda a relação sentimental entre os filhos da civilização e a natureza, fazendo constantemente vibrar na sua alma uma espécie de emoção piedosa e de desassossego tímido. Hans Castorp, com seu suéter de lã de camelo, de mangas compridas, com suas grevas e seus esquis de luxo, no fundo sentia-se audacioso ao contemplar a paz primeva, o ermo hibernal com aquela funesta ausência de sons; e a sensação de alívio que se apresentava, quando, no caminho de volta, apontavam nas brumas as primeiras habitações humanas, tornava-o consciente do seu estado anterior e instruía-o sobre o terror secreto e sagrado que, durante horas, dominara o seu coração. Na ilha de Sylt, de calças brancas, seguro, elegante e reverente, detivera-se à beira da formidável rebentação como diante de uma jaula de leões, atrás de cujas grades as feras mostram a bocarra aberta com as terríveis presas. A seguir, banhara-se, enquanto um salva-vidas advertia, por meio de um toque de cometa, aqueles que temerariamente procuravam franquear a primeira onda, a fim de se aproximar da ressaca que se revolvia em sua direção. Ainda os derradeiros golpes daquela catarata lhe tinham ferido a nuca como uma patada. Naquela região, o jovem travara conhecimento com aquela entusiástica felicidade que propiciam os ligeiros contatos amorosos com as potências cujo abraço pleno seria fatal. Mas o que nunca chegara a conhecer era a veleidade de levar esse inebriante contato com a natureza mortífera ao ponto em que estivesse iminente o abraço pleno, e a fascinação de penetrar – débil criatura que era, apesar das armas e do equipamento sofrível que lhe fornecera a civilização – dentro do monstruoso mistério, ou, ao menos, evitar a fuga até o momento em que a aventura beirasse o perigo e seus limites se tornassem independentes da vontade humana, o momento em que já não se tratasse de espumas lançadas à praia e de leves pancadas com a pata, mas sim do vagalhão, da fauce do mar.
     Numa palavra: Hans Castorp tinha coragem ali em cima – se se entende por coragem frente aos elementos não a objetividade obtusa nas relações com eles, mas o abandono consciente e o triunfo sobre o medo da morte, obtido por meio da simpatia. Simpatia? Com efeito, Hans Castorp simpatizava com os elementos, no íntimo do seu frágil peito civilizado, e existia certa ligação entre essa simpatia e a nova convicção da sua dignidade, que o invadira diante do aspecto daquela turba a brincar com seus trenós, e lhe apresentara como desejável e conveniente uma solidão mais profunda e mais grandiosa, menos provida de um conforto de hotel, do que aquela que se encontrava no seu compartimento de sacada. Fora dali que ele contemplara as cristas envoltas em brumas e a dança da nevada, envergonhando-se, no fundo da sua alma, desse divertimento de ser mero espectador por cima do parapeito da comodidade. Era por isso – e não por um capricho desportivo, nem tampouco devido a um prazer inato na educação física – que aprendera a usar os esquis. Se não se sentia seguro nessas alturas, com a grandiosidade e o silêncio mortal da neve que caía – e de fato esse filho da civilização estava longe de tal estado de sossego , era também inegável que seu espírito e sua alma, desde muito, iam saboreando alimentos pouco seguros. Um colóquio com Naphta e Settembrini não era precisamente o que existia de mais seguro; também ele levava a regiões ínvias e altamente perigosas. E se cabia dizer que Hans Castorp simpatizava com o vasto ermo hibernal, é porque este, apesar do terror piedoso que lhe inspirava, afigurava-se-lhe como a arena própria para as contendas que travavam os seus pensamentos complexos, e como o lugar indicado para uma pessoa que, sem saber por quê, estava incumbida de negócios de “rei”, relativos à situação e ao estado do Homo Dei.
     Aqui não havia ninguém cujo toque de cometa avisasse o incauto do perigo iminente, a não ser que o Sr. Settembrini fosse esse homem, ao advertir, pelas mãos em concha, Hans Castorp, que sumia na cerração. Mas este, cheio de coragem e de simpatia, não prestava à advertência maior atenção do que dedicara àquela outra que ressoara atrás dele, na noite de carnaval, enquanto avançava em determinada direção: “Eh, ingegnere, un po’ di ragione, sa!” “Ai de ti, Satana pedagógico, com tua ragione e tua rebellione!”, pensou o jovem. “E, contudo, gosto de ti. Embora sejas um doidivanas e um tocador de realejo, tens boas intenções, melhores e mais simpáticas a mim pessoalmente do que as do pequeno e penetrante jesuíta e terrorista, esse algoz e flagelador espanhol com seus óculos relampejantes, se bem que ele tenha quase sempre razão, quando vocês estão discutindo... quando brigam, pedagogicamente, pela minha pobre alma, como Deus e o Diabo lutavam pelo homem na Idade Média...”
     Com as pernas salpicadas de neve, apoiando-se nos bastões, ia escalando descoradas vertentes, cujos lanços se elevavam em forma de terraço, cada vez mais alto, e não se sabia aonde conduziam. Parecia que não levavam a parte alguma. A região superior confundia-se com o céu, o qual mostrava o mesmo branco nevoento que eles, de modo que era impossível dizer onde ele começava. Não se distinguia nenhum cume, nenhuma crista. Era o “nada” brumoso em cuja direção Hans Castorp avançava penosamente, e, como também atrás dele o mundo, aquele vale habitado por criaturas humanas não tardasse a fechar-se e a subtrair-se à vista, e como som algum chegasse dali até ele, a sua solidão, o seu isolamento tornou-se, antes que o jovem o percebesse, o mais profundo possível, tão profundo que chegou a dar-lhe aquele susto que é a condição prévia da coragem. “Praeterit figura hujus mundi”, disse de si para si, num latim de espírito nada humanístico. Aprendera essa locução de Naphta. Estacou e olhou a seu redor. Não se via nada em parte alguma, exceção feita a esparsos e minúsculos flocos de neve, que, vindos da brancura do céu, desciam até a brancura do solo. O silêncio em volta dele era impressionantemente vazio. Enquanto o seu olhar se refrangia no vácuo alvo que o deslumbrava, Hans Castorp sentiu como o seu coração, agitado pela subida, começava a latejar – esse órgão musculado, cuja forma animalesca e cujo mecanismo ele espreitara, talvez nefandamente, por entre os crepitantes relâmpagos do gabinete de radioscopia. E uma espécie de comoção apoderou-se dele, uma singela e devota simpatia por esse seu coração, o coração palpitante do homem, que pulsava, nesse ermo glacial, tão sozinho com seus problemas e seus enigmas.
     Prosseguiu no seu vagaroso avanço, sempre subindo, rumo ao céu. Às vezes mergulhava na neve a extremidade superior do bastão e observava como no fundo do buraco era lançada uma luz azul, que perseguia o bastão, cada vez que este se retirava. Isso divertia Hans Castorp, que se deixava ficar muito tempo parado a fim de reproduzir uma e outra vez o pequeno fenômeno óptico. Era uma luz singular e delicada, luz das montanhas e das profundidades, entre esverdeada e azul, clara como o gelo e entretanto sombria, uma luz que o atraía misteriosamente, recordando-lhe a luz e a cor de certos olhos oblíquos, prenhes de destino, que o Sr. Settembrini, do ponto de vista humanístico, qualificara desdenhosamente de “fendas tártaras” e de “olhos de lobo de estepe”, olhos que Hans Castorp contemplara em tempos remotos e reencontrara forçosamente, os olhos de Hippe e de Clávdia Chauchat. – Com muito prazer – disse a meia voz no silêncio. – Cuidado para não quebrá-lo! Il est à visser, tu sais. – E no seu íntimo ouviu, atrás de si, eloquentes exortações no sentido de levá-lo à razão.
     À sua direita, não muito distante, um bosque desenhou-se na bruma. Hans Castorp encaminhou-se até lá, para ter em mira um objetivo terrestre, em vez da alvura transcendente, e logo resvalou em brusca descida, sem ter previsto a menor depressão do solo. O deslumbramento impedia-o de reconhecer a formação do terreno. Nada se enxergava, tudo se confundia diante dos olhos. Obstáculos completamente inesperados obrigaram-no a nova subida, antes que pudesse abandonar-se ao declive, e sem que os seus olhos fossem capazes de distinguir o grau de inclinação.
     O bosque que o atraíra estava situado além do barranco onde Hans Castorp entrara inopinadamente. O fundo dessa garganta, coberto de neve fofa, pendia para o lado da montanha, como o jovem verificou após ter seguido alguns instantes nessa direção. O caminho descia, e as vertentes laterais tornavam-se cada vez mais altas; como um desfiladeiro, a dobra do terreno parecia conduzir ao seio da montanha. Depois, os esporões do seu veículo voltaram a apontar para cima. O terreno subia, e já havia parede lateral para escalar. Novamente, a carreira sem destino de Hans Castorp realizava-se sobre a encosta aberta da montanha, rumo ao céu.
     A seu lado, atrás e abaixo de si, viu o bosque de coníferas. Tomando essa direção, alcançou em rápida descida os pinheiros carregados de neve, que, dispostos em forma de cunha, representavam, nessa zona despida de vegetação, uma espécie de vanguarda da encosta arborizada, cujos contornos se perdiam nas brumas. Sob a ramagem, Hans Castorp descansou, fumando um cigarro. Sua alma não deixava de experimentar uma sensação de angústia, tensão, ansiedade, que tinha a sua origem no silêncio por demais profundo, na solidão cheia de aventuras. Ao mesmo tempo, o jovem sentia-se orgulhoso da sua conquista e soberbo na plenitude dos direitos que sua dignidade lhe conferia sobre essa região.
     Era por volta das três da tarde. Logo depois da refeição, Hans Castorp pusera-se a caminho, na intenção de gazear parte do repouso principal e a merenda, e estar de volta antes do escurecer. Encheu-se de alegria ao pensar que tinha ainda à sua frente algumas horas que poderia passar vagando ao ar livre, através da natureza grandiosa. Na algibeira de sua calça de golfe levava um pouco de chocolate, e no bolso do casaco um pequeno frasco de vinho do Porto.
     Mal se podia divisar a posição do sol, tão densa era a cerração que o escondia. Mais atrás, na outra extremidade do vale, onde a montanha formava um ângulo que não se via, as nuvens e as brumas iam escurecendo e davam a impressão de avançar. Era um sinal de neve, de mais neve, como se ainda houvesse falta dela. Parecia iminente uma nevada em regra, e realmente os pequenos e silenciosos flocos já estavam caindo mais copiosamente sobre a encosta.
     Hans Castorp deu um passo à frente a fim de recolher alguns sobre a manga e examiná-los com os olhos peritos de um naturalista amador. Assemelhavam-se a farrapinhos informes, mas já tivera outros sob a sua magnífica lente e sabia muito bem de que joia minúsculas, delicadas e precisas se compunham: alfaias, insígnias, broches de diamantes, como o mais hábil joalheiro não poderia fazer mais ricos e mais minuciosos. Aquele pó branco, tão leve e tão fofo, cujas massas oprimiam o bosque e cobriam as áreas abertas, aquele pó por cima do qual o carregavam seus esquis, muito diferia, em realidade, da areia do seu país, na qual fazia pensar. Era coisa sabida que não constava de grãos de pedra, mas de miríades de partículas de água, que, ao congelar-se, haviam-se associado como cristais numa harmoniosa multiplicidade; tratava-se de parcelas da mesma substância inorgânica que intumescia o plasma vital, o corpo das plantas e do homem. E entre as miríades de estrelinhas mágicas, no seu esplendor secreto, invisível, miúdo e não destinado aos olhos humanos, não havia duas que fossem iguais. Um infinito capricho de inventor empenhava-se na modificação e no mais refinado desenvolvimento de um mesmo esquema fundamental, que era o hexágono de lados e ângulos iguais. Mas cada qual desses artefatos frios, em si, mostrava a mais absoluta simetria e uma regularidade glacial, e justamente nisso estava o inquietante, o antiorgânico, o hostil à vida; eram eles regulares em excesso, num grau jamais alcançado pela substância organizada para a vida. A esta repugnava uma precisão tão exata, que se lhe afigurava mortal, como o mistério da própria morte. Hans Castorp julgava compreender por que os construtores de templos, na Antiguidade, costumavam introduzir propositada e clandestinamente pequenas alterações de simetria na disposição das suas colunas.
     Pôs-se em movimento por meio dos bastões; resvalando sobre os esquis, ao longo da beira do bosque, desceu cerração adentro, pela vertente oculta por espessa camada de neve. Subindo ou deslizando, sem objetivo nem pressa, continuou a vagar através da região morta. Com as suas extensões vazias e onduladas, com a vegetação árida de esparsos e definhados arbustos, que ressaltavam como manchas escuras, e com o horizonte limitado por elevações suaves, o ambiente parecia-se estranhamente com uma paisagem de dunas. Hans Castorp sacudia a cabeça em sinal de aprovação, enquanto se detinha para admirar essa semelhança. Suportava mesmo com simpatia o calor do rosto, o tremor dos membros, a singular e perturbadora mescla de excitação e fadiga que experimentava. Pois tudo isso lhe chamava à memória impressões familiares de efeitos parecidos que produzira o ar das praias do mar, igualmente estimulante e ao mesmo tempo saturado de substâncias soporíferas. Sentia satisfação ao perceber a sua independência alada, a liberdade das suas andanças. Não tinha à sua frente nenhum caminho que se visse obrigado a seguir; tampouco atrás dele havia um que o levasse ao ponto de partida. A princípio, Hans Castorp encontrara sinais, paus cravados no solo, sinais da neve, mas de propósito libertara-se da sua influência, que lhe recordava o homem da corneta e lhe parecia em desacordo com a relação íntima que existia entre ele e o grande ermo hibernal.
     Atrás de outeiros rochosos, cobertos de neve, por entre os quais o jovem se infiltrava, dirigindo-se alternadamente para a direita ou a esquerda, estendia-se um plano inclinado, seguido por outro, horizontal, e em seguida surgiram vastos montes, cujos barrancos e desfiladeiros, estofados de almofadas macias, pareciam transitáveis e atraentes. Sim, a sedução das alturas e das distâncias, das sempre novas solidões que se ofereciam, dominava fortemente a alma de Hans Castorp, e ele, arriscando-se a voltar tarde, procurou penetrar mais a fundo o silêncio selvagem, a zona do perigo, a ameaça. Nem se preocupava com o fato de que a tensão e a ansiedade reinantes no seu interior se iam transformando em autêntico medo, diante da escuridão prematura e crescente do céu, que se abaixava, qual um véu cinzento, sobre a região. Esse medo fe-lo notar que até agora se empenhara secretamente em perder o rumo e em esquecer a direção onde se achavam situados o vale e a aldeia, empresa na qual, aliás, tivera pleno êxito. Sabia, no entanto, que, se voltasse imediatamente e prosseguisse sempre descendo, alcançaria depressa o vale, mesmo que fosse num lugar distante do Berghof. Depressa demais, porque nesse caso chegaria muito cedo e não aproveitaria todo o tempo de que dispunha. Se, porém, fosse surpreendido pela tempestade de neve, talvez não conseguisse encontrar o caminho de volta. Nem por isso resolveu-se a fugir antes da hora, por mais que o acossasse o medo, o pavor sincero que lhe inspiravam os elementos. Isso não era proceder à maneira de um desportista; pois este não entraria em luta com os elementos sem ter certeza de poder dominá-los; agiria com prudência e seria bastante sensato para ceder. Mas o que se passava na alma de Hans Castorp só pode ser designado por uma única palavra: desafio. Pode ser que essa palavra encerre sentimentos censuráveis, mesmo – ou sobretudo – nos casos em que a mentalidade petulante que lhe corresponde ande acompanhada de muito medo sincero. Bastam, contudo, algumas reflexões humanas para compreender vagamente que no âmago da alma de um jovem e de uma pessoa que durante anos viveu como o nosso herói se deposita ou, segundo diria o engenheiro Hans Castorp, “se acumula” muita coisa que um belo dia deve explodir em forma de um elementar “Ora bolas!” ou de um “Custe o que custar!”, cheio de impaciência exasperada. Numa palavra, achamo-nos à frente de um desafio, de uma atitude negativa oposta à prudência razoável. E assim Hans Castorp continuou avançando sobre os seus compridos tamancos. Deslizou por mais uma encosta e escalou outra vertente, onde, a alguma distância, se via um chalezinho – um galpão talvez ou a choupana de um pastor – com o teto carregado de pedras. Tomou a direção da montanha seguinte, com a encosta hirsuta de pinheiros, atrás dos quais altos picos assomavam como torres no meio da bruma. À sua frente, o paredão salpicado de raros grupos de árvores elevava-se muito íngreme. Mais para a direita, porém, era possível contorná-lo a meio sobre um declive moderado, e passar para trás dele, a fim de ver o que viria depois. Hans Castorp tomou a si essa tarefa de explorador, depois de ter descido, perto da plataforma do chalé, por uma garganta bastante profunda, que se inclinava da direita para a esquerda.
     Mal retomara a subida, quando o esperado se tornou realidade: bruscamente estalaram a nevada e a ventania. Tinha chegado a tempestade de neve que por tanto tempo o ameaçara, se é que se pode falar de “ameaça” com relação a elementos cegos e ignorantes que não pretendem de modo algum aniquilar-nos – o que seria relativamente reconfortante –, mas mostram a mais absoluta indiferença quanto a essa consequência eventual da sua ação. “Opa!”, pensou Hans Castorp e estacou, quando a primeira rajada, revolvendo o denso torvelinho, lhe feriu o corpo. “Esse tipo de sopro vai até a medula.” E de fato, o vento era de uma espécie bastante enjoada. O frio espantoso que reinava – uns vinte graus abaixo de zero – não se tornava sensível e parecia moderado, enquanto o ar desprovido de umidade se conservava tão calmo e tão imóvel como de costume; mas, logo que se agitava sob o efeito do vento, cortava a carne como uma navalha, e quando isso acontecia com tamanha intensidade como nesse instante (pois o primeiro pé-de-vento a varrer a região não passara de um precursor), nem sete casacos teriam bastado para resguardar os ossos do terror glacial da morte. Hans Castorp, por sua vez, não trajava sete casacos, senão apenas um suéter de lã, que em circunstâncias normais teria sido suficiente e até já se manifestara incômodo, quando brilhava o sol. A borrasca fustigava-o pelo lado e por parte das costas, de maneira que não era recomendável voltar-se e recebê-la em pleno rosto; como esse raciocínio se aliasse à sua teimosia e àquela atitude de “Ora bolas!” que ele adotara no seu íntimo, o audacioso jovem prosseguiu no seu avanço por entre os pinheiros isolados, na intenção de chegar ao outro lado da montanha que acabava de escalar.

continua pág 315...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Neve (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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