A Montanha Mágica
Capítulo VI
Neve
continuando...
Hans Castorp verificou que depressa adquire uma técnica quem a necessita intimamente.
Não tinha pretensões de perícia. O que precisava, podia aprendê-lo em poucos dias, sem se
esfalfar nem perder o fôlego. Tratava de manter os pés juntos e de traçar sulcos paralelos;
experimentava dirigir-se por meio dos bastões, durante as descidas; aprendia a franquear
obstáculos e pequenos acidentes do terreno, num só arranco, com os braços abertos, elevando-se
e mergulhando como um navio no mar agitado. Após a vigésima tentativa já não caía, quando,
em plena corrida, freava com o auxílio do telemark, avançando uma das pernas e curvando o
joelho da outra. Aos poucos foi ampliando os seus exercícios. Um belo dia, o Sr. Settembrini viu
o desaparecer nas brumas alvacentas. Com as mãos em concha à guisa de alto-falante, enviou-lhe
algumas palavras de advertência, depois do quê foi para casa, pedagogicamente satisfeito.
Era linda a paisagem da montanha hibernal – linda não de um modo suave e agradável,
senão assim como o é o ermo do mar do Norte nos dias de um forte vento oeste. Não havia na
verdade estrondo de trovões; pelo contrário, reinava um silêncio de morte, que no entanto
despertava os mesmos sentimentos de reverência. As solas compridas, elásticas, de Hans Castorp
levavam-no em muitas direções, ao longo da encosta esquerda, rumo a Clavadel, ou à direita,
passando por Frauenkirch e Glaris, por trás das quais os sombrios contornos do maciço de
Amselfluh surgiam nas brumas, qual um fantasma. Entrou também no vale de Dischma e,
subindo pelos fundos do Berghof, tomou a direção do arborizado monte Seehorn, do qual
apenas o cume envolto em neve ultrapassava o limite da vegetação, e da floresta de Drusatscha,
por trás da qual se enxergava a pálida silhueta da cordilheira Rética, revestida de espessa camada
de neve. Por meio do teleférico, transportou-se com seus esquis até Schatzalp, onde, erguido a
dois mil metros de altura, pôs-se a vaguear calmamente através da neve poeirenta, por sobre
faiscantes planos inclinados, que em dias claros ofereciam uma vista grandiosa do campo das suas
aventuras.
Regozijava-se com seus novos recursos, que lhe abriam zonas antes inviáveis e
aniquilavam quase todos os obstáculos. Proporcionavam-lhe o manto da desejada solidão, a mais
profunda solidão que se possa imaginar, a solidão que inspirava à alma a sensação do
desconhecido e do perigo dessas paragens. Havia ali, por exemplo, um precipício coberto de
pinheiros, que se perdia na cerração da neve, e do outro lado subia uma vertente rochosa com
enormes massas de neve, ciclópicas, gibosas e arqueadas, que formavam cavernas e cúpulas.
Quando Hans Castorp parava, a fim de não ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito,
com o menor traço de som como que abafado por meio de algodão, um silêncio ignoto, jamais
sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava
as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio
primevo, aquele que Hans Castorp ouvia ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça
inclinada para um dos ombros e com a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve
continuava caindo, numa queda calma, sem ruído algum.
Não, esse mundo, no seu silêncio insondável, não tinha nada de hospitaleiro. Admitia o
visitante por sua própria conta e risco. Em realidade não o recebia nem acolhia, mas apenas lhe
tolerava a intrusão e a presença, sem se responsabilizar por nada. A impressão que despertava era
a de uma ameaça muda e elementar, baseada não em hostilidade, senão antes numa indiferença
mortal. O rebento da civilização, que pela sua origem fica alheio e distante da natureza selvagem,
é muito mais acessível à sua grandiosidade do que o seu filho rude, que depende dela desde a
infância e mantém com ela relações de prosaica familiaridade. Este mal conhece o temor religioso
com que aquele, arregalando os olhos, a enfrenta. Esse temor forma o âmago de toda a relação
sentimental entre os filhos da civilização e a natureza, fazendo constantemente vibrar na sua alma
uma espécie de emoção piedosa e de desassossego tímido. Hans Castorp, com seu suéter de lã de
camelo, de mangas compridas, com suas grevas e seus esquis de luxo, no fundo sentia-se
audacioso ao contemplar a paz primeva, o ermo hibernal com aquela funesta ausência de sons; e
a sensação de alívio que se apresentava, quando, no caminho de volta, apontavam nas brumas as
primeiras habitações humanas, tornava-o consciente do seu estado anterior e instruía-o sobre o
terror secreto e sagrado que, durante horas, dominara o seu coração. Na ilha de Sylt, de calças
brancas, seguro, elegante e reverente, detivera-se à beira da formidável rebentação como diante
de uma jaula de leões, atrás de cujas grades as feras mostram a bocarra aberta com as terríveis
presas. A seguir, banhara-se, enquanto um salva-vidas advertia, por meio de um toque de cometa,
aqueles que temerariamente procuravam franquear a primeira onda, a fim de se aproximar da
ressaca que se revolvia em sua direção. Ainda os derradeiros golpes daquela catarata lhe tinham
ferido a nuca como uma patada. Naquela região, o jovem travara conhecimento com aquela
entusiástica felicidade que propiciam os ligeiros contatos amorosos com as potências cujo abraço
pleno seria fatal. Mas o que nunca chegara a conhecer era a veleidade de levar esse inebriante
contato com a natureza mortífera ao ponto em que estivesse iminente o abraço pleno, e a
fascinação de penetrar – débil criatura que era, apesar das armas e do equipamento sofrível que
lhe fornecera a civilização – dentro do monstruoso mistério, ou, ao menos, evitar a fuga até o
momento em que a aventura beirasse o perigo e seus limites se tornassem independentes da
vontade humana, o momento em que já não se tratasse de espumas lançadas à praia e de leves
pancadas com a pata, mas sim do vagalhão, da fauce do mar.
Numa palavra: Hans Castorp tinha coragem ali em cima – se se entende por coragem
frente aos elementos não a objetividade obtusa nas relações com eles, mas o abandono
consciente e o triunfo sobre o medo da morte, obtido por meio da simpatia. Simpatia? Com
efeito, Hans Castorp simpatizava com os elementos, no íntimo do seu frágil peito civilizado, e
existia certa ligação entre essa simpatia e a nova convicção da sua dignidade, que o invadira diante
do aspecto daquela turba a brincar com seus trenós, e lhe apresentara como desejável e
conveniente uma solidão mais profunda e mais grandiosa, menos provida de um conforto de
hotel, do que aquela que se encontrava no seu compartimento de sacada. Fora dali que ele
contemplara as cristas envoltas em brumas e a dança da nevada, envergonhando-se, no fundo da
sua alma, desse divertimento de ser mero espectador por cima do parapeito da comodidade. Era
por isso – e não por um capricho desportivo, nem tampouco devido a um prazer inato na
educação física – que aprendera a usar os esquis. Se não se sentia seguro nessas alturas, com a
grandiosidade e o silêncio mortal da neve que caía – e de fato esse filho da civilização estava
longe de tal estado de sossego , era também inegável que seu espírito e sua alma, desde muito,
iam saboreando alimentos pouco seguros. Um colóquio com Naphta e Settembrini não era
precisamente o que existia de mais seguro; também ele levava a regiões ínvias e altamente
perigosas. E se cabia dizer que Hans Castorp simpatizava com o vasto ermo hibernal, é porque
este, apesar do terror piedoso que lhe inspirava, afigurava-se-lhe como a arena própria para as
contendas que travavam os seus pensamentos complexos, e como o lugar indicado para uma
pessoa que, sem saber por quê, estava incumbida de negócios de “rei”, relativos à situação e ao
estado do Homo Dei.
Aqui não havia ninguém cujo toque de cometa avisasse o incauto do perigo iminente, a
não ser que o Sr. Settembrini fosse esse homem, ao advertir, pelas mãos em concha, Hans
Castorp, que sumia na cerração. Mas este, cheio de coragem e de simpatia, não prestava à
advertência maior atenção do que dedicara àquela outra que ressoara atrás dele, na noite de
carnaval, enquanto avançava em determinada direção: “Eh, ingegnere, un po’ di ragione, sa!” “Ai de ti,
Satana pedagógico, com tua ragione e tua rebellione!”, pensou o jovem. “E, contudo, gosto de ti.
Embora sejas um doidivanas e um tocador de realejo, tens boas intenções, melhores e mais
simpáticas a mim pessoalmente do que as do pequeno e penetrante jesuíta e terrorista, esse algoz
e flagelador espanhol com seus óculos relampejantes, se bem que ele tenha quase sempre razão,
quando vocês estão discutindo... quando brigam, pedagogicamente, pela minha pobre alma, como
Deus e o Diabo lutavam pelo homem na Idade Média...”
Com as pernas salpicadas de neve, apoiando-se nos bastões, ia escalando descoradas
vertentes, cujos lanços se elevavam em forma de terraço, cada vez mais alto, e não se sabia aonde
conduziam. Parecia que não levavam a parte alguma. A região superior confundia-se com o céu, o
qual mostrava o mesmo branco nevoento que eles, de modo que era impossível dizer onde ele
começava. Não se distinguia nenhum cume, nenhuma crista. Era o “nada” brumoso em cuja
direção Hans Castorp avançava penosamente, e, como também atrás dele o mundo, aquele vale
habitado por criaturas humanas não tardasse a fechar-se e a subtrair-se à vista, e como som algum
chegasse dali até ele, a sua solidão, o seu isolamento tornou-se, antes que o jovem o percebesse, o
mais profundo possível, tão profundo que chegou a dar-lhe aquele susto que é a condição prévia
da coragem. “Praeterit figura hujus mundi”, disse de si para si, num latim de espírito nada
humanístico. Aprendera essa locução de Naphta. Estacou e olhou a seu redor. Não se via nada
em parte alguma, exceção feita a esparsos e minúsculos flocos de neve, que, vindos da brancura
do céu, desciam até a brancura do solo. O silêncio em volta dele era impressionantemente vazio.
Enquanto o seu olhar se refrangia no vácuo alvo que o deslumbrava, Hans Castorp sentiu como
o seu coração, agitado pela subida, começava a latejar – esse órgão musculado, cuja forma
animalesca e cujo mecanismo ele espreitara, talvez nefandamente, por entre os crepitantes
relâmpagos do gabinete de radioscopia. E uma espécie de comoção apoderou-se dele, uma
singela e devota simpatia por esse seu coração, o coração palpitante do homem, que pulsava,
nesse ermo glacial, tão sozinho com seus problemas e seus enigmas.
Prosseguiu no seu vagaroso avanço, sempre subindo, rumo ao céu. Às vezes mergulhava
na neve a extremidade superior do bastão e observava como no fundo do buraco era lançada
uma luz azul, que perseguia o bastão, cada vez que este se retirava. Isso divertia Hans Castorp,
que se deixava ficar muito tempo parado a fim de reproduzir uma e outra vez o pequeno
fenômeno óptico. Era uma luz singular e delicada, luz das montanhas e das profundidades, entre
esverdeada e azul, clara como o gelo e entretanto sombria, uma luz que o atraía misteriosamente,
recordando-lhe a luz e a cor de certos olhos oblíquos, prenhes de destino, que o Sr. Settembrini,
do ponto de vista humanístico, qualificara desdenhosamente de “fendas tártaras” e de “olhos de
lobo de estepe”, olhos que Hans Castorp contemplara em tempos remotos e reencontrara
forçosamente, os olhos de Hippe e de Clávdia Chauchat. – Com muito prazer – disse a meia voz
no silêncio. – Cuidado para não quebrá-lo! Il est à visser, tu sais. – E no seu íntimo ouviu, atrás de
si, eloquentes exortações no sentido de levá-lo à razão.
À sua direita, não muito distante, um bosque desenhou-se na bruma. Hans Castorp
encaminhou-se até lá, para ter em mira um objetivo terrestre, em vez da alvura transcendente, e
logo resvalou em brusca descida, sem ter previsto a menor depressão do solo. O
deslumbramento impedia-o de reconhecer a formação do terreno. Nada se enxergava, tudo se
confundia diante dos olhos. Obstáculos completamente inesperados obrigaram-no a nova subida,
antes que pudesse abandonar-se ao declive, e sem que os seus olhos fossem capazes de distinguir
o grau de inclinação.
O bosque que o atraíra estava situado além do barranco onde Hans Castorp entrara
inopinadamente. O fundo dessa garganta, coberto de neve fofa, pendia para o lado da montanha,
como o jovem verificou após ter seguido alguns instantes nessa direção. O caminho descia, e as
vertentes laterais tornavam-se cada vez mais altas; como um desfiladeiro, a dobra do terreno
parecia conduzir ao seio da montanha. Depois, os esporões do seu veículo voltaram a apontar
para cima. O terreno subia, e já havia parede lateral para escalar. Novamente, a carreira sem
destino de Hans Castorp realizava-se sobre a encosta aberta da montanha, rumo ao céu.
A seu lado, atrás e abaixo de si, viu o bosque de coníferas. Tomando essa direção,
alcançou em rápida descida os pinheiros carregados de neve, que, dispostos em forma de cunha,
representavam, nessa zona despida de vegetação, uma espécie de vanguarda da encosta
arborizada, cujos contornos se perdiam nas brumas. Sob a ramagem, Hans Castorp descansou,
fumando um cigarro. Sua alma não deixava de experimentar uma sensação de angústia, tensão,
ansiedade, que tinha a sua origem no silêncio por demais profundo, na solidão cheia de aventuras.
Ao mesmo tempo, o jovem sentia-se orgulhoso da sua conquista e soberbo na plenitude dos
direitos que sua dignidade lhe conferia sobre essa região.
Era por volta das três da tarde. Logo depois da refeição, Hans Castorp pusera-se a
caminho, na intenção de gazear parte do repouso principal e a merenda, e estar de volta antes do
escurecer. Encheu-se de alegria ao pensar que tinha ainda à sua frente algumas horas que poderia
passar vagando ao ar livre, através da natureza grandiosa. Na algibeira de sua calça de golfe levava
um pouco de chocolate, e no bolso do casaco um pequeno frasco de vinho do Porto.
Mal se podia divisar a posição do sol, tão densa era a cerração que o escondia. Mais atrás,
na outra extremidade do vale, onde a montanha formava um ângulo que não se via, as nuvens e
as brumas iam escurecendo e davam a impressão de avançar. Era um sinal de neve, de mais neve,
como se ainda houvesse falta dela. Parecia iminente uma nevada em regra, e realmente os
pequenos e silenciosos flocos já estavam caindo mais copiosamente sobre a encosta.
Hans Castorp deu um passo à frente a fim de recolher alguns sobre a manga e examiná-los com os olhos peritos de um naturalista amador. Assemelhavam-se a farrapinhos informes,
mas já tivera outros sob a sua magnífica lente e sabia muito bem de que joia minúsculas, delicadas
e precisas se compunham: alfaias, insígnias, broches de diamantes, como o mais hábil joalheiro
não poderia fazer mais ricos e mais minuciosos. Aquele pó branco, tão leve e tão fofo, cujas
massas oprimiam o bosque e cobriam as áreas abertas, aquele pó por cima do qual o carregavam
seus esquis, muito diferia, em realidade, da areia do seu país, na qual fazia pensar. Era coisa sabida
que não constava de grãos de pedra, mas de miríades de partículas de água, que, ao congelar-se,
haviam-se associado como cristais numa harmoniosa multiplicidade; tratava-se de parcelas da
mesma substância inorgânica que intumescia o plasma vital, o corpo das plantas e do homem. E
entre as miríades de estrelinhas mágicas, no seu esplendor secreto, invisível, miúdo e não
destinado aos olhos humanos, não havia duas que fossem iguais. Um infinito capricho de
inventor empenhava-se na modificação e no mais refinado desenvolvimento de um mesmo
esquema fundamental, que era o hexágono de lados e ângulos iguais. Mas cada qual desses
artefatos frios, em si, mostrava a mais absoluta simetria e uma regularidade glacial, e justamente
nisso estava o inquietante, o antiorgânico, o hostil à vida; eram eles regulares em excesso, num
grau jamais alcançado pela substância organizada para a vida. A esta repugnava uma precisão tão
exata, que se lhe afigurava mortal, como o mistério da própria morte. Hans Castorp julgava
compreender por que os construtores de templos, na Antiguidade, costumavam introduzir
propositada e clandestinamente pequenas alterações de simetria na disposição das suas colunas.
Pôs-se em movimento por meio dos bastões; resvalando sobre os esquis, ao longo da
beira do bosque, desceu cerração adentro, pela vertente oculta por espessa camada de neve.
Subindo ou deslizando, sem objetivo nem pressa, continuou a vagar através da região morta.
Com as suas extensões vazias e onduladas, com a vegetação árida de esparsos e definhados
arbustos, que ressaltavam como manchas escuras, e com o horizonte limitado por elevações
suaves, o ambiente parecia-se estranhamente com uma paisagem de dunas. Hans Castorp sacudia
a cabeça em sinal de aprovação, enquanto se detinha para admirar essa semelhança. Suportava
mesmo com simpatia o calor do rosto, o tremor dos membros, a singular e perturbadora mescla
de excitação e fadiga que experimentava. Pois tudo isso lhe chamava à memória impressões
familiares de efeitos parecidos que produzira o ar das praias do mar, igualmente estimulante e ao
mesmo tempo saturado de substâncias soporíferas. Sentia satisfação ao perceber a sua
independência alada, a liberdade das suas andanças. Não tinha à sua frente nenhum caminho que
se visse obrigado a seguir; tampouco atrás dele havia um que o levasse ao ponto de partida. A
princípio, Hans Castorp encontrara sinais, paus cravados no solo, sinais da neve, mas de
propósito libertara-se da sua influência, que lhe recordava o homem da corneta e lhe parecia em
desacordo com a relação íntima que existia entre ele e o grande ermo hibernal.
Atrás de outeiros rochosos, cobertos de neve, por entre os quais o jovem se infiltrava,
dirigindo-se alternadamente para a direita ou a esquerda, estendia-se um plano inclinado, seguido
por outro, horizontal, e em seguida surgiram vastos montes, cujos barrancos e desfiladeiros,
estofados de almofadas macias, pareciam transitáveis e atraentes. Sim, a sedução das alturas e das
distâncias, das sempre novas solidões que se ofereciam, dominava fortemente a alma de Hans
Castorp, e ele, arriscando-se a voltar tarde, procurou penetrar mais a fundo o silêncio selvagem, a
zona do perigo, a ameaça. Nem se preocupava com o fato de que a tensão e a ansiedade reinantes
no seu interior se iam transformando em autêntico medo, diante da escuridão prematura e
crescente do céu, que se abaixava, qual um véu cinzento, sobre a região. Esse medo fe-lo notar
que até agora se empenhara secretamente em perder o rumo e em esquecer a direção onde se
achavam situados o vale e a aldeia, empresa na qual, aliás, tivera pleno êxito. Sabia, no entanto,
que, se voltasse imediatamente e prosseguisse sempre descendo, alcançaria depressa o vale,
mesmo que fosse num lugar distante do Berghof. Depressa demais, porque nesse caso chegaria
muito cedo e não aproveitaria todo o tempo de que dispunha. Se, porém, fosse surpreendido pela
tempestade de neve, talvez não conseguisse encontrar o caminho de volta. Nem por isso
resolveu-se a fugir antes da hora, por mais que o acossasse o medo, o pavor sincero que lhe
inspiravam os elementos. Isso não era proceder à maneira de um desportista; pois este não
entraria em luta com os elementos sem ter certeza de poder dominá-los; agiria com prudência e
seria bastante sensato para ceder. Mas o que se passava na alma de Hans Castorp só pode ser
designado por uma única palavra: desafio. Pode ser que essa palavra encerre sentimentos
censuráveis, mesmo – ou sobretudo – nos casos em que a mentalidade petulante que lhe
corresponde ande acompanhada de muito medo sincero. Bastam, contudo, algumas reflexões
humanas para compreender vagamente que no âmago da alma de um jovem e de uma pessoa que
durante anos viveu como o nosso herói se deposita ou, segundo diria o engenheiro Hans
Castorp, “se acumula” muita coisa que um belo dia deve explodir em forma de um elementar
“Ora bolas!” ou de um “Custe o que custar!”, cheio de impaciência exasperada. Numa palavra,
achamo-nos à frente de um desafio, de uma atitude negativa oposta à prudência razoável. E assim
Hans Castorp continuou avançando sobre os seus compridos tamancos. Deslizou por mais uma
encosta e escalou outra vertente, onde, a alguma distância, se via um chalezinho – um galpão
talvez ou a choupana de um pastor – com o teto carregado de pedras. Tomou a direção da
montanha seguinte, com a encosta hirsuta de pinheiros, atrás dos quais altos picos assomavam
como torres no meio da bruma. À sua frente, o paredão salpicado de raros grupos de árvores
elevava-se muito íngreme. Mais para a direita, porém, era possível contorná-lo a meio sobre um
declive moderado, e passar para trás dele, a fim de ver o que viria depois. Hans Castorp tomou a
si essa tarefa de explorador, depois de ter descido, perto da plataforma do chalé, por uma
garganta bastante profunda, que se inclinava da direita para a esquerda.
Mal retomara a subida, quando o esperado se tornou realidade: bruscamente estalaram a
nevada e a ventania. Tinha chegado a tempestade de neve que por tanto tempo o ameaçara, se é
que se pode falar de “ameaça” com relação a elementos cegos e ignorantes que não pretendem de
modo algum aniquilar-nos – o que seria relativamente reconfortante –, mas mostram a mais
absoluta indiferença quanto a essa consequência eventual da sua ação. “Opa!”, pensou Hans
Castorp e estacou, quando a primeira rajada, revolvendo o denso torvelinho, lhe feriu o corpo.
“Esse tipo de sopro vai até a medula.” E de fato, o vento era de uma espécie bastante enjoada. O
frio espantoso que reinava – uns vinte graus abaixo de zero – não se tornava sensível e parecia
moderado, enquanto o ar desprovido de umidade se conservava tão calmo e tão imóvel como de
costume; mas, logo que se agitava sob o efeito do vento, cortava a carne como uma navalha, e
quando isso acontecia com tamanha intensidade como nesse instante (pois o primeiro pé-de-vento a varrer a região não passara de um precursor), nem sete casacos teriam bastado para
resguardar os ossos do terror glacial da morte. Hans Castorp, por sua vez, não trajava sete
casacos, senão apenas um suéter de lã, que em circunstâncias normais teria sido suficiente e até já
se manifestara incômodo, quando brilhava o sol. A borrasca fustigava-o pelo lado e por parte das
costas, de maneira que não era recomendável voltar-se e recebê-la em pleno rosto; como esse
raciocínio se aliasse à sua teimosia e àquela atitude de “Ora bolas!” que ele adotara no seu íntimo,
o audacioso jovem prosseguiu no seu avanço por entre os pinheiros isolados, na intenção de
chegar ao outro lado da montanha que acabava de escalar.
continua pág 315...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Neve (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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