sábado, 23 de agosto de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Neve (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Neve

    Cinco vezes por dia manifestava-se em torno das sete mesas o descontentamento unânime com o tempo que o inverno ia oferecendo esse ano. Julgavam que ele não se desempenhava senão insuficientemente dos deveres de um inverno alpino, que estava longe de proporcionar os recursos meteorológicos aos quais a região devia a sua fama, na medida garantida pelo prospecto e na intensidade a que os veteranos estavam acostumados, e que os novatos haviam imaginado encontrar. Registrava-se um grave déficit de sol, de radiação solar, esse importante fator do tratamento, e sem o concurso do qual a cura indubitavelmente seria retardada... Pensasse o que pensasse o Sr. Settembrini quanto à sinceridade com que os hóspedes da montanha se empenhavam em recuperar a saúde e em regressar da “pátria” à planície – em todo caso reclamavam eles os seus direitos, reivindicavam o que se lhes devia pelo seu bom dinheiro ou por aquele com que seus pais ou seus maridos pagavam a sua estadia, e não cessavam de resmungar nas suas conversas à mesa, no elevador e no vestíbulo. Também a direção geral demonstrou estar plenamente inteirada da sua obrigação de remediar a falta e de indenizar os pensionistas. Foi adquirido um novo aparelho de “sol artificial”, porque os dois que o sanatório já possuía não bastavam para corresponder às necessidades dos pensionistas desejosos de bronzear a pele pelos raios ultravioleta, o que favorecia muito as garotas e as mulheres moças e dava ao mundo masculino, apesar da sua vida horizontal, a aparência de magníficos desportistas e conquistadores. E essa aparência trazia frutos reais: as mulheres, embora estivessem perfeitamente a par da origem técnica e cosmética dessa virilidade, eram bastante tolas ou matreiras, bastante ávidas de miragens sensuais, para deixar-se embriagar por essa ilusão. – Meu Deus! – disse a Srª. Schönfeld, uma enferma ruiva, de olhos avermelhados, procedente de Berlim, quando, certa noite, encontrou no vestíbulo um cavalheiro de pernas compridas e peito encovado, que no seu cartão de visitas se apresentava como “aviateur diplomé et enseigne de la marine allemande”, fora submetido ao pneumotórax, vestia o smoking para o almoço e tirava-o para o jantar, afirmando que o regulamento da marinha o prescrevia assim. – Meu Deus! – repetiu ela, enquanto contemplava o enseigne com os olhos cúpidos. – Como ele está tostado pelos raios ultravioleta! Que maravilha! Parece um caçador de águias esse diabo! 

– Cuidado, ondina! – murmurou ele ao seu ouvido, no elevador, e ela arrepiou-se toda. – Você me pagará seus olhares sedutores! – E pelas sacadas, contornando as divisões de vidro, o diabo caçador de águias foi unir-se à ondina...

     Contudo, faltava muito para que o sol artificial fosse considerado compensação satisfatória do saldo devedor de genuína luz solar que exibia o balanço desse ano. Dois ou três dias de sol puro por mês – dias que brilhavam, na verdade, sobremodo esplêndidos, com um profundíssimo azul de veludo atrás dos cumes alvos, com uma cintilação de diamantes, e com uma deliciosa ardência na nuca e na face dos homens, dias livres do confuso cinzento das brumas e dos véus espessos – dois ou três dias assim, no curso de semanas inteiras, eram muito pouco para a alma de pessoas cujo destino justificava exigências excepcionais em matéria de consolo, e que intimamente insistiam no cumprimento de um pacto que lhes assegurava, em troca da renúncia aos prazeres e às atribuições da humanidade dos países planos, uma existência inerte, sem dúvida, mas sumamente fácil e divertida, despreocupada até a abolição do tempo e favorecida sob todos os aspectos. Pouco adiantava que o conselheiro lhes chamasse à memória que, mesmo sob essas circunstâncias, a vida no Berghof estava longe de se parecer com um calabouço ou uma mina siberiana, e elogiasse o ar da região, tão leve e tão fino, semelhante ao éter vazio do universo, pobre em acréscimos terrestres, em elementos bons ou maus, esse ar que até na ausência do sol levava enormes vantagens sobre a fumaceira e as emanações da planície. Apesar disso, generalizavam-se o mau humor e os protestos. Ameaças de partidas “em falso” tornavam-se comuns, e acontecia mesmo que se realizassem, apesar de haver exemplos como o bem recente da melancólica volta da Srª. Salomon, cujo caso a princípio não era grave, embora demorado, mas que em consequência da estadia não autorizada na úmida e ventosa Amsterdam transformara-se em incurável...
     Em lugar do sol, porém, veio a neve, enormes quantidades de neve, uma abundância tamanha como Hans Castorp nunca vira em toda a sua vida. O inverno anterior não deixara realmente nada a desejar a esse respeito; mas a sua produção fora exígua em comparação com a do ano em curso. O que este oferecia era monstruoso, desmesurado, e fazia a alma consciente da natureza excêntrica e aventureira dessa região. Nevava dia e noite, ora neve fininha, ora torvelinhos densos; caía neve sem cessar. Os poucos caminhos que estavam sendo mantidos em estado praticável pareciam desfiladeiros, com muralhas de neve mais altas do que um homem de ambos os lados. Exibiam superfícies lisas de alabastro, agradáveis à vista no seu esplendor granuloso e cristalino, e que serviam aos hóspedes da montanha para rabiscos, desenhos, e para transmissão de toda espécie de recados, brincadeiras e motejos. No entanto, mesmo entre essas muralhas caminhava-se sobre uma camada de neve bastante elevada, por profundas que fossem as escavações. Isso se notava nas partes fofas do solo e nos buracos em que o pé subitamente afundava, às vezes até o joelho. Era preciso andar com muito cuidado, para não quebrar, de repente, uma perna. Os bancos haviam desaparecido, submersos. Algum pedaço do espaldar emergia aqui ou ali da sepultura branca. Lá embaixo, na aldeia, o nível das ruas modificara-se tão estranhamente que as lojas tinham baixado do rés-do-chão ao subsolo, que se alcançava descendo da calçada, por degraus talhados na neve.
     E continuava nevando sobre as massas já amontoadas, todos os dias, com a neve caindo mansinha e com um frio moderado de dez a quinze graus abaixo de zero, que não chegava a congelar a medula da gente. Sentia-se pouco esse frio. Era como se não se registrassem mais dois ou cinco graus, uma vez que a calmaria e a secura do ar não permitiam que o frio cortasse. Pela manhã reinava muita obscuridade. Tomava-se o café sob o luar artificial dos lustres que pendiam do teto da sala com os arcos alegremente coloridos das abóbadas. Lá fora estendia-se o vácuo sombrio. O mundo estava embrulhado num algodão alvacento, que se comprimia de encontro às vidraças, e totalmente oculto pela neve e pela cerração. Desaparecera a cordilheira. O máximo que se divisava, de tempos em tempos, eram algumas das coníferas mais próximas; erguiam-se carregadas de neve e rapidamente se perdiam na bruma. De vez em quando um abeto, agitando se, desembaraçava-se do excesso de carga e despejava uma poeira branca no ambiente gris. Pelas dez horas, o sol surgia por cima da montanha, qual uma fumarada vagamente luzente; era como se tencionasse dar uma vida débil e fantasmagórica, um tênue reflexo de realidade, à paisagem anulada e irreconhecível. Mas tudo permanecia diluído numa espectral delicadeza e palidez, sem contornos que os olhos pudessem traçar com segurança. As linhas dos picos confundiam-se, dissolviam-se na névoa, desapareciam na bruma. Os lençóis de neve, iluminados por uma luz lívida, estendendo-se uns ao lado e acima dos outros, guiavam o olhar ao nada. Às vezes, uma nuvem irradiada, fumacenta, pairava por muito tempo diante de um paredão rochoso, sem modificar a sua forma.
     Por volta do meio-dia, o sol, penetrando parcialmente a neblina, costumava fazer um esforço de converter a bruma em azul. A tentativa, entretanto, ficava longe de se transformar em realidade. Mas havia momentos em que se vislumbravam traços do azul celeste, e a luz escassa bastava para fazer cintilar ao longe com reflexos diamantinos a paisagem estranhamente desfigurada pela aventura da neve. A essa hora, geralmente, cessava a nevada, como para permitir uma visão de conjunto dos resultados obtidos. Os raros e esparsos dias de sol pareciam servir à mesma finalidade. Descansavam então os torvelinhos, e o repentino calor celestial procurava derreter a superfície deliciosamente pura das massas de neve recém-caída. O aspecto do mundo era feérico, infantil e burlesco. Os espessos e macios almofadões que jaziam, como que afofados, sobre os galhos das árvores; as corcovas do solo, sob as quais se escondiam arbustos rasteiros ou rochas salientes; a aparência agachada, submersa, grotescamente mascarada, da paisagem – tudo isso originava um “ridículo” mundo de gnomos, que parecia ter saído de um livro de contos de fadas. Mas, ao passo que o cenário imediato, através do qual as pessoas se movimentavam laboriosamente, despertava ideias fantásticas e picarescas, eram de magnificência e de santidade as sensações que inspirava o fundo longínquo, com a alterosa estatuária dos Alpes envoltos em neve.
     De tarde, das duas às quatro, Hans Castorp achava-se estendido no seu compartimento da sacada, e muito bem agasalhado, com a cabeça apoiada no espaldar nem baixo demais nem excessivamente alto da excelente espreguiçadeira, deixava os olhos vagar, por sobre o parapeito almofadado, em direção aos bosques e às montanhas. A plantação de pinheiros, verde-negra e carregada de neve, escalava as encostas, e entre as árvores o solo estava em toda parte coberto de neve, que se apresentava fofa como um coxim. Mais para cima levantava-se a serra rochosa, de um cinza esbranquiçado, com imensas áreas de neve, interrompidas aqui e ali por proeminentes penedos de cor mais escura, e com as cristas delicadamente veladas. Nevava silenciosamente. O quadro ia-se tornando mais e mais borrado. O olhar, perdendo-se num vazio suave, passava facilmente para o cochilo. Um estremecimento acompanhava o instante da transição, mas depois não podia haver sono mais puro do que esse em meio ao frio glacial, sono sem sonhos, não afetado por qualquer reminiscência do peso da vida orgânica, uma vez que a respiração do ar rarefeito, inconsistente e inodoro, não era mais difícil para o corpo vivo do que a não-respiração para o morto. Na hora do despertar, a cordilheira sumira por completo atrás da bruma nevosa, e só por alguns momentos apontavam certos fragmentos dela, um pico aqui, uma rocha saliente ali, que logo tornavam a ocultar-se. Esse jogo silencioso de espectros era sumamente divertido. Precisava-se muita atenção para acompanhar todas as fases dessa fantasmagoria de véus. Bravio e grandioso, desprendendo-se da cerração, exibia-se um grupo de penhascos, cujos cumes e bases permaneciam invisíveis; mas o olhar que os abandonasse por um minuto apenas já não os tornaria a encontrar.
     De quando em quando desencadeavam-se tempestades de neve que impossibilitavam absolutamente a permanência na sacada, porque o torvelinho branco, invadindo o compartimento em grandes quantidades, cobria tudo, tanto o chão como os móveis, com uma camada espessa. Sim, havia até tempestades nesse vale alto, cercado de montanhas. Tumultuava então a atmosfera inconsistente; os flocos pululavam nela com tamanha abundância que nada se enxergava a um passo de distância. Rajadas de um vigor sufocante imprimiam à neve um movimento selvagem, flutuante, oblíquo, arrastando-a de baixo para cima e fazendo-a remoinhar numa dança louca. Isso já não era nevada, era um caos de trevas alvas, uma monstruosidade, a extravagância fenomenal de uma região distante da zona temperada, onde somente os tentilhões brancos que de repente apareciam em enormes bandos eram capazes de sentir-se em casa e de orientar-se.
     Não obstante, Hans Castorp amava aquela vida na neve. Achava-a, sob diversos aspectos, muito parecida com a vida à beira-mar. A monotonia primitiva da natureza era comum aos dois ambientes. A neve, aquele pó de neve, profundo, fofo, imaculado, desempenhava ali o mesmo papel que lá embaixo cabia à areia de brancura amarelada. O conluio com uma e outra era igualmente limpo. O pó seco e frio era sacudido dos sapatos e das roupas, como na planície os pulverizados detritos de conchas e pedras, oriundos do fundo do mar, sem que deixasse nenhum vestígio. Caminhar pela neve era laborioso, tal e qual um passeio pelas dunas, a não ser que as superfícies derretidas de dia pelo ardor do sol tivessem endurecido em virtude do frio da noite. Então se andava ali mais ligeiro e mais agradavelmente do que sobre um assoalho, com a mesma facilidade e o mesmo prazer que sente quem passeia sobre a areia lisa, firme, úmida e elástica à beira-mar.
     Esse ano, porém, trouxera consigo nevadas e quantidades de neve depositada que restringiam fortemente as possibilidades de exercícios ao ar livre, para todos, exceção feita nos esquiadores. Mourejavam os arados limpa-neves, mas só a muito custo conseguiam manter as veredas mais frequentadas e a rua principal de Davos num estado de precária praticabilidade. Os poucos caminhos que continuavam abertos, e rapidamente acabavam em zonas intransitáveis, estavam abarrotados de pessoas sadias ou enfermas, nativas ou pertencentes à sociedade internacional dos hotéis. As pernas dos pedestres eram atropeladas pelos trenós que, gingando e jogando, precipitavam-se encosta abaixo, guiados por homens e mulheres que lançavam gritos de advertência, cujo tom patenteava o quanto essa gente, no seu veículo infantil, estava compenetrada da importância das suas atividades. Chegados embaixo, logo voltavam a subir, arrastando atrás de si, numa corda, o seu brinquedo da moda.
     Hans Castorp estava mais do que farto desse tipo de passeio. Tinha dois desejos, entre os quais o mais forte era ficar a sós com seus pensamentos e sonhos. Para esse fim, o seu compartimento de sacada poderia bastar-lhe, embora de um modo superficial. O outro desejo, porém, que acompanhava o primeiro, fazia-o anelar vivamente um contato mais íntimo e mais livre com as montanhas assoladas pela neve, a qual o jovem começara a querer bem. Mas esse desejo era irrealizável, enquanto o peito que o abrigava pertencesse a um pedestre desprovido de asas e de instrumentos. Pois imediatamente mergulharia até o pescoço no elemento branco, se tentasse avançar além dos caminhos habituais, abertos com a pá, e cujo fim se alcançava depressa em toda parte.
     Assim, aconteceu, um belo dia desse segundo inverno que Hans Castorp passava ali em cima, que o jovem decidiu comprar um par de esquis e aprender a servir-se deles, na medida que o exigiam as suas necessidades reais. Não era desportista; nunca o fora, por falta de uma mentalidade preocupada com a educação física, e tampouco fingia sê-lo, à maneira de certos pensionistas do Berghof que, para corresponder à moda e ao espírito do lugar, fantasiavam-se excentricamente. Sobretudo as mulheres faziam isso; Hermine Kleefeld, por exemplo, que, embora a respiração insuficiente lhe tingisse de um constante azul a ponta do nariz e os lábios, gostava de aparecer, à hora do lanche, trajando calças de lã, e depois da refeição costumava refestelar-se assim numa das poltronas de vime do vestíbulo, abrindo as pernas de modo bastante inconveniente. Se Hans Castorp tivesse solicitado a autorização do conselheiro para o seu extravagante intento, decerto teria recebido uma resposta negativa. Atividades desportivas estavam rigorosamente proibidas à comunidade de enfermos, tanto no Berghof como em outros lugares, nos estabelecimentos do mesmo gênero. Pois aquela mesma atmosfera que aparentemente era aspirada com muita facilidade exigia dos músculos cardíacos esforços violentos, e no que dizia respeito à pessoa de Hans Castorp, continuava em pleno vigor a sua atilada frase sobre “o hábito de não se habituar”. A tendência febril que Radamanto atribuía a uma mancha úmida persistia obstinadamente. Não fosse ela, que é que Hans Castorp ia fazer ali em cima? Seu desejo e seu projeto eram, portanto, incoerentes e ilícitos. Mas convém procurar compreendê-lo. Hans Castorp não estava aguilhoado pela ambição de igualar-se aos almofadinhas do ar livre e aos pseudodesportistas que, se a moda o mandasse assim, jogariam cartas numa sala abafada com o mesmo zelo ardoroso. Sentia-se estreitamente ligado a uma outra comunidade, menos livre do que a pequena comunidade dos turistas. Sob um ponto de vista mais amplo e mais novo, devido a certo senso de dignidade, que o distanciava dos demais, e a consciência das suas obrigações, que lhe restringia os planos, tinha a impressão de que não lhe cabia brincar nas alturas como aquela gente e rolar pela neve feito um louco. Não tencionava realizar escapadas; propunha-se proceder com moderação, e Radamanto bem poderia permitir-lhe o que desejava fazer. Mas Hans Castorp previa que o médico, em nome do regulamento do sanatório, não deixaria de vetar a realização do intento, e por isso decidiu agir à revelia dele. Numa oportunidade, comunicou o seu projeto ao Sr. Settembrini. Este quase o abraçou de tanta alegria. – Sim, senhor! Claro! Faça isso, engenheiro, por amor de Deus! Não consulte ninguém e faça-o. Foi o anjo da guarda quem lhe deu essa ideia. Faça-o imediatamente, antes de perder a vontade saudável! Irei com o senhor, vou acompanhá-lo até a loja, e juntos adquiriremos sem demora esses abençoados utensílios! Gostaria até de acompanhá-lo através das montanhas, de correr a seu lado, com os esquis alados nos pés, como Mercúrio, mas não me é permitido... Ora, permitido! Se apenas se tratasse da “permissão”, pouco me importaria, mas não posso, porque sou um homem perdido. Mas o senhor... Isso não lhe fará mal nenhum, absolutamente, desde que se mostre prudente e não abuse. Tolice, mesmo que lhe fizesse um pouquinho de mal, seria ainda o seu anjo da guarda quem... Não quero dizer mais nada. Que plano excelente! Encontra-se aqui faz dois anos e ainda é capaz de ter ideias assim! Sim, senhor, sua natureza íntima é boa. Não temos motivos para desespero. Bravos, bravos! O senhor pregará uma peça ao príncipe das trevas. Compre os esquis e mande-os para minha casa, ou para Lukacek, ou para o merceeiro que mora embaixo. Ali pode buscá-los, quando quiser exercitar-se e deslizar sobre a neve...
     E assim foi feito. Sob os olhos do Sr. Settembrini, que se fingia de crítico perito, embora nada entendesse de esportes, Hans Castorp adquiriu, numa loja especializada da rua principal, um par de bonitos esquis, de boa madeira de freixo, lustrados com verniz castanho-claro e providos de magníficas correias e de pontas levantadas. Também comprou os necessários bastões de pontas de ferro e munidos de pequenas rodas, e fez questão de levar tudo isso nos seus próprios ombros até o domicílio de Settembrini, onde não teve dificuldade em combinar com o merceeiro as condições do depósito dos utensílios. Pela observação frequente de outros esquiadores inteirara-se do modo de usar os esquis, o bastante para que, longe das multidões reunidas nos campos de exercício, começasse sozinho a dar os primeiros e malsucedidos passos numa encosta quase despida de árvores e situada nas proximidades do Sanatório Berghof. De vez em quando, o Sr. Settembrini ia assistir às suas tentativas, de alguma distância, apoiando-se na bengala, com as pernas graciosamente cruzadas, e premiando com brados de elogio a progressiva habilidade do jovem. Tudo se passou sem incidentes, mesmo aquele momento em que Hans Castorp, ao descer pela curva da estrada aberta a pá, na intenção de encaminhar-se à “aldeia” e de deixar os esquis na casa do merceeiro, encontrou-se com o conselheiro. Behrens não o reconheceu, embora isso se desse em pleno meio-dia e o principiante quase se chocasse com ele; passou pelo jovem, envolvendo-se numa nuvem de fumaça de charuto.

continua pág 310...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Neve (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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