A Montanha Mágica
Capítulo VI
Assalto rechaçado
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A roda girava. O ponteiro ia avançando. Já terminara a época do salepo e da aquilégia; o
cravo silvestre desaparecera também. As estrelas azuis da genciana, bem como os pálidos e
venenosos lírios verdes, tornavam a apontar na grama úmida. Por cima dos bosques pairava uma
aura avermelhada. O equinócio de outono acabava de transcorrer. O Dia de Finados achava-se
próximo, e para os mais treinados consumidores do tempo, também o domingo do Advento, o
dia mais curto do ano, e a festa do Natal. Por enquanto, porém, desfiava-se ainda uma série de
belos dias de outubro, dias da espécie daquele em que os primos haviam ido ver os quadros do
conselheiro.
Desde a partida de Joachim, Hans Castorp não mais tomava as refeições à mesa da Srª.
Stöhr, a mesma que o Dr. Blumenkohl abandonara para morrer, e onde Marusja procurara abafar
no lencinho perfumado de flor de laranjeira a sua mal justificada hilaridade. Agora achavam-se ali
pensionistas novos, pessoas completamente desconhecidas. O nosso amigo, porém, entrado no
terceiro mês do segundo ano da sua estadia, recebera da “administração” um outro lugar, numa
mesa vizinha, mais próxima da porta que dava para o avarandado, colocada perpendicularmente
entre a antiga e a dos “russos distintos”, numa palavra: a mesa de Settembrini. Sim, novamente
lhe coubera a ponta, em frente ao lugar do médico, que em cada uma das sete mesas ficava
reservado ao uso esporádico do conselheiro ou do seu assistente.
Na outra extremidade, à esquerda do assento do médico-presidente, tronejava sobre
diversas almofadas aquele mexicano corcunda, o fotógrafo diletante, cuja expressão, em virtude
de seu isolamento linguístico, se assemelhava à de um surdo. A seu lado ficava a solteirona da
Transilvânia, que como já deplorara Settembrini, pretendia interessar o mundo inteiro pelo seu
cunhado, se bem que ninguém soubesse nada desse homem nem quisesse saber. Tendo atrás da
nuca uma bengala de punho de prata, que também lhe prestava serviços durante os passeios
regulamentares, via-se essa criatura, a certas horas do dia, junto da platibanda da sua sacada,
empenhada em alargar o peito chato como uma bandeja por meio de exercícios respiratórios.
Defronte a ela achava-se um tcheco, que chamavam Sr. Wenzel, já que ninguém era capaz de
pronunciar o seu nome de família. Settembrini, em seu tempo, fizera às vezes tentativas no
sentido de articular a exótica sequência de consoantes de que se compunha esse nome; claro que
não o fizera numa intenção séria, senão para demonstrar graciosamente a impotência da sua
nobre língua de latino em face daquele amontoado selvagem de sons. Esse homem, embora fosse
redondo como uma bola e se distinguisse por uma voracidade sensacional mesmo entre os
pensionistas, afirmava, desde havia quatro anos, que estava fadado a morrer. Durante as reuniões
noturnas, tocava de vez em quando, num bandolim enfeitado de fitas, as canções da sua terra, ou
contava historietas das suas plantações de beterrabas, onde trabalhavam exclusivamente lindas
pequenas. Mais perto de Hans Castorp, a ambos os lados da mesa, encontravam-se os Magnus, o
cervejeiro de Halle e a sua esposa. Uma atmosfera de melancolia pairava em torno desse casal,
porque ambos estavam perdendo substâncias essenciais para o metabolismo: o homem, açúcar, e
a mulher, proteínas. A disposição de alma, sobretudo da pálida Srª. Magnus, parecia desprovida
do menor traço de esperança. A vacuidade do espírito desprendia-se dela como um bafio de
adega, e de forma ainda mais pura do que a inculta Srª. Stöhr representava ela a combinação de
enfermidade e estupidez, de que Hans Castorp se escandalizara espiritualmente, sendo por isso
repreendido pelo Sr. Settembrini. O Sr. Magnus revelava maior viveza e loquacidade, embora só
daquele gênero que outrora originara as explosões da impaciência literária de Settembrini. Além
disso, era colérico e frequentemente tinha atritos com o Sr. Wenzel por motivos políticos e
outros. Exasperavam-no as aspirações nacionalistas do tcheco, e ainda mais o fato de ele ser
partidário do antialcoolismo e pôr em dúvida a moralidade da profissão de cervejeiro. Em
oposição a isso, o Sr. Magnus, com o rosto rubro, defendia a perfeição higiênica da bebida à qual
os seus interesses se achavam tão intimamente ligados. Em tais ocasiões, o Sr. Settembrini
costumava fazer, humoristicamente, o papel de pacificador. Hans Castorp, no lugar dele, sentia-se
menos hábil e não dispunha de suficiente autoridade para substituir o italiano.
O jovem não mantinha relações pessoais senão com dois dos seus comensais: o primeiro
era A. C. Ferge, de Petersburgo, seu vizinho da esquerda, o sofredor bonachão que, sob as
brenhas do bigode ruivo, sabia falar ora da fabricação de galochas ora de regiões longínquas, do
círculo polar, das neves eternas do cabo Norte, e de vez em quando acompanhava Hans Castorp
num dos passeios regulamentares. O segundo, porém, que se unia a eles cada vez que se oferecia
uma oportunidade, e tinha o seu lugar na outra extremidade da mesa, em frente ao mexicano
corcunda, era o homem de Mannheim, aquele moço de cabelos ralos e dentes defeituosos;
chamava-se Wehsal, Ferdinand Wehsal, comerciante, e era o mesmo cujos olhares haviam ficado
presos, com um desejo melancólico, à graciosa pessoa de Mme. Chauchat; desde o carnaval
procurava obter a amizade de Hans Castorp.
Fazia-o com obstinação e humildade, com um servilismo suplicante que tinha, aos olhos
de Hans Castorp, qualquer coisa de horroroso e repulsivo, porque compreendia o seu sentido
complicado; mesmo assim, o jovem esforçava-se por acolhê-lo humanamente. Com uma
expressão calma – pois sabia que o menor franzimento do cenho deixaria o rapaz pusilânime
encolhido e sobressaltado – tolerava as maneiras subservientes de Wehsal, que aproveitava todas
as ocasiões para inclinar-se diante dele e para bajulá-lo; permitia até que o outro, durante os
passeios, lhe carregasse o sobretudo, função de que Wehsal se desempenhava com certo fervor;
suportava a própria conversa escusa do homem de Mannheim. Wehsal tinha a mania de ventilar
problemas como este: era ou não era razoável declarar o seu amor a uma mulher que se amava,
mas que manifestamente não correspondia? Que achava da declaração de amor sem esperança?
Ele, da sua parte, atribuía-lhe extraordinário valor; segundo a sua opinião, encerrava ela uma
felicidade indizível. O ato da confissão, embora despertando repulsa e acarretando grandes
vexames, garantia contudo por um instante o pleno contato amoroso com o objeto do desejo,
que era forçado a receber a confidencia e a entrar na esfera da própria paixão. Mesmo que tudo
terminasse nesse ponto, a perda eterna não representaria um preço excessivo pela volúpia
desesperada de um único momento. O desabafo era um ato violento, e quanto maior a
repugnância que se lhe opusesse, mais gozo proporcionaria... A essa altura, uma lua que anuviou
a fisionomia de Hans Castorp fez com que Wehsal retrocedesse. Para dizer a verdade, tinha ela a
sua origem na presença do jovial Sr. Ferge, o qual, como afirmava com frequência, ficava
totalmente alheio a quaisquer assuntos elevados e complexos, e não na austeridade puritana do
nosso herói. Como sempre nos empenhamos em apresentá-lo nem melhor nem pior do que era,
não omitimos o seguinte fato: certa noite, quando estava a sós com Hans Castorp, o pobre
Wehsal, em palavras incolores, insistiu com ele para que lhe confiasse, por amor de Deus, alguns
pormenores daqueles acontecimentos e daquelas experiências da noite de carnaval, que se haviam
realizado depois do fim do baile; Hans Castorp atendeu a esse pedido com tranquilidade
benevolente, sem que – ao contrário do que o leitor talvez acredite – esse diálogo tivesse cunho
leviano ou vil. Temos todavia razões fortes para manter afastados dessa cena tanto o leitor como
nós próprios, e limitamo-nos a acrescentar que a partir do referido dia Wehsal carregava com
redobrado ardor o casacão do condescendente Hans Castorp.
Já falamos bastante a respeito dos comensais de Hans Castorp. O lugar à sua direita
estava vazio. Não fora ocupado senão passageiramente durante alguns dias, por um visitante. Um
parente viera de visita da planície, um emissário, como se poderia dizer – numa palavra: tratava-se
de James Tienappel, tio de Hans.
Era fantástico ver de repente como vizinho de mesa um representante e enviado da
pátria, um homem que ainda trazia fresca no tecido inglês do terno a atmosfera do antigo, do
submerso, da vida passada, do mundo dos vivos que existia lá embaixo. Mas era forçoso que isso
acontecesse. Havia muito que Hans Castorp contara com tal ofensiva da planície e mesmo
previra com exatidão a personalidade que seria incumbida do reconhecimento; o que, aliás, não
fora muito difícil, já que Peter, o navegante, mal entrava em questão, e quanto ao tio-avô
Tienappel era coisa sabida que nem dez cavalos o arrastariam a essas regiões, cuja pressão
atmosférica lhe seria sumamente perigosa. Não, tinha de ser James o encarregado de investigar,
em nome da família, a situação do parente extraviado. Hans Castorp esperara mesmo que ele
chegasse antes. Desde que Joachim regressara sozinho e pusera a família a par do estado das
coisas ali de cima, o assalto era iminente, mais do que iminente. Dessa forma, Hans Castorp não
se surpreendeu nem um pouquinho, quando, duas semanas exatas depois da partida do primo, o
porteiro lhe entregou um telegrama. Abriu-o, cheio de pressentimentos, e ficou sabendo da
próxima chegada de James Tienappel. Este teria de resolver alguns assuntos pendentes na Suíça e
aproveitaria a ocasião para fazer uma excursão até as alturas de Hans. Chegaria daí a dois dias.
– Bem! – pensou Hans Castorp. – Ótimo! – pensou, e acrescentou intimamente qualquer
coisa parecida com “Corno quiser!” – Ah, se você tivesse ideia – disse, falando, nos seus
pensamentos, com o parente que se aproximava. Numa palavra, inteirou-se da notícia com a mais
completa calma. Transmitiu-a ao Dr. Behrens e à “administração”. Mandou reservar um quarto; o
de Joachim estava ainda disponível. Dois dias após, à hora da sua própria chegada, isto é, pelas
oito horas, já depois do escurecer, entrou no mesmo veículo mal estofado em que havia pouco
acompanhara Joachim, e encaminhou-se à estação de Davos-Dorf, para receber o emissário da
planície que vinha endireitar a situação.
Com a tez rubicunda, sem chapéu nem sobretudo, achava-se à beira da plataforma
quando o trenzinho entrou na estação. Pela janela do compartimento convidou o tio a descer
tranquilamente, porque já chegara ao seu lugar de destino. O Cônsul Tienappel – era vice-cônsul
e substituía dignamente o pai também nesse cargo honorário – apareceu friorento, envolto no seu
casaco de inverno. (Com efeito, a noite de outubro estava bastante fria, e pouco faltava para que
pudesse ser qualificada de gélida; de madrugada certamente faria uma temperatura abaixo de
zero.) Desembarcou, ali Clemente surpreendido, o que manifestou à maneira um tanto preciosa,
ultracivilizada, peculiar aos cavalheiros distintos do norte da Alemanha. Cumprimentou o
sobrinho-quase-primo, expressando, com enfáticos elogios, a satisfação que experimentava ao
encontrá-lo com tão bom aspecto. Verificou que o porteiro coxo o dispensava de preocupar-se
com a bagagem. Saiu da estação e galgou, em companhia de Hans Castorp, o alto e duro assento
do coche. Sob o céu abundantemente estrelado puseram-se a caminho, e Hans Castorp, com a
cabeça deitada para trás, explicou ao tio-primo as paragens celestes, circunscrevendo com
palavras e gestos esta ou aquela constelação cintilante, e chamando os planetas pelos nomes.
Enquanto isso, o outro, prestando maior atenção à pessoa do seu companheiro do que ao cosmo,
dizia de si para si que era talvez admissível e não rematada loucura falar das estrelas, precisamente
nesse momento, nesse lugar, e sem mais aquela, mas que existiam outros assuntos mais urgentes.
Perguntou desde quando Hans Castorp estava tão familiarizado com aquele mundo longínquo, ao
que o sobrinho replicou que devia esses conhecimentos ao repouso noturno que fazia na sacada,
durante a primavera, o verão, o outono e o inverno.
– Como? Você fica de noite na sacada?
– Sim. E você fará a mesma coisa. Não há jeito de escapar a isso.
– Perfeitamente, compreendo – disse James Tienappel, complacente e um tanto
intimidado. Seu irmão de criação continuou conversando sossegada e monotonamente. Sem
chapéu, sem sobretudo, estava sentado junto dele, na frescura quase gelada da noite outonal. –
Você não se ressente do frio? – perguntou James, que tiritava sob a grossa fazenda do casacão.
Sua maneira de falar parecia ao mesmo tempo precipitada e hesitante, já que os seus dentes
manifestavam a tendência de entrechocar-se. – Nós não sentimos o frio – respondeu Hans
Castorp calma e laconicamente.
O cônsul não se cansava de olhá-lo de lado. Hans Castorp não procurou informar-se
sobre os parentes e os conhecidos de casa. Recebeu, agradecendo impassivelmente, as lembranças
que James lhe transmitiu, inclusive as de Joachim, que já se apresentara ao regimento e estava
radiante de alegria e orgulho. Fê-lo sem pedir informações pormenorizadas a respeito das coisas
da sua terra. James sentiu-se inquietado por um quê de natureza vaga, o qual não sabia se era
irradiado pelo sobrinho ou se tinha a sua origem no seu próprio estado físico. Olhou em torno,
sem distinguir muita coisa da paisagem alpina. Aspirou profundamente o ar, soltou-o e declarou
que o achava magnífico. – Certamente – respondeu o outro. Não era sem motivo que esse ar
adquirira tanta fama. Possuía virtudes poderosas. Acelerava a combustão geral, e no entanto
permitia ao corpo assimilar as proteínas. Curava doenças que todos os homens traziam latentes
em si, mas antes costumava dar a elas um vigoroso estímulo e causar, por meio de um impulso
geral proporcionado ao organismo, a sua irrupção triunfal.
– Perdão! Por que triunfal?
– Sim. Você nunca notou que a irrupção de uma doença representa uma espécie de
triunfo e constitui de certo modo uma festa do corpo?
– Perfeitamente, compreendo – apressou-se o tio a concordar, sem que pudesse conter o
tremor da mandíbula inferior. A seguir anunciou que permaneceria oito dias, isto é, uma semana,
ou melhor uns sete ou apenas seis dias. Repetiu que o aspecto de Hans Castorp lhe parecia
extraordinariamente bom; o sobrinho estava muito mais robusto, devido a esse tratamento, cuja
duração se estendera além de toda expectativa. Assim, era de supor que Hans Castorp regressaria
junto com ele.
– Ora, ora, que precipitação é essa? – disse o jovem. O tio James falava à maneira lá de
baixo. Bastaria que estudasse um pouco o “nosso” ambiente e se aclimatasse a ele, para que
mudasse de ideia. Tudo dependia da cura definitiva. Só o definitivo tinha importância, e
recentemente o Dr. Behrens lhe pespegara mais seis meses. Ao ouvir isso, o tio tratou-o por
“meu filho” e perguntou se estava louco. – Está completamente doido?! – exclamou. Afinal de
contas, essas férias já duravam quinze meses, e agora se falava de mais meio ano! Deus do céu, a
gente não tinha tanto tempo! Mas Hans Castorp deu uma risada serena e abrupta, com a cabeça
erguida em direção às estrelas. Pois sim, o tempo! Nesse ponto, justamente, com referência ao
tempo humano, James teria de retificar, antes de mais nada, os conceitos que trouxera consigo da
planície, antes de abrir a boca aqui em cima. – No seu interesse falarei seriamente com o Dr.
Behrens, amanhã mesmo – prometeu Tienappel.
– Não deixe de falar – disse Hans Castorp. – Você gostará dele. É um tipo interessante,
ao mesmo tempo enérgico e melancólico. – A seguir apontou para as luzes do Sanatório
Schatzalp e se referiu, de passagem, aos cadáveres que eram transportados pela pista do trenó.
Jantaram juntos no restaurante do Berghof, depois de Hans Castorp ter levado o visitante
ao quarto de Joachim, para dar-lhe uma oportunidade de se lavar um pouco. A peça fora
fumigada com H2
CO – contou Hans Castorp – Como se se tratasse, não de uma partida “em
falso”, mas de uma de caráter bem diferente, quer dizer, de um exitus em vez de um exodus. E
quando o tio pediu uma explicação do sentido dessas palavras, disse o sobrinho:
– É a gíria local; nossa maneira de falar... Joachim desertou. Fugiu para as fileiras do
exército. Isto também existe. Mas, vamos, ligeiro, para que a gente ainda arranje alguma comida
quente! – Sentaram-se um à frente do outro no restaurante agradavelmente aquecido, sobre o alto
estrado. A anã atendeu-os sem demora, e James encomendou uma garrafa de borgonha, que foi
trazida deitada numa cestinha. Chocaram os copos e deixaram-se penetrar pelo doce ardor do
vinho. O sobrinho falou da vida que se levava ali em cima, no ciclo das estações; mencionou
certas personagens da sala de refeições; passou para o pneumotórax, cujo processo explicou,
citando o caso do jovial Sr. Ferge e alongando-se sobre o fenômeno horripilante do choque
pleural, sem omitir as três síncopes de cor diferente, que o russo pretendia ter sofrido, bem como
a alucinação do olfato, que desempenhava um papel importante no momento do choque, e da
gargalhada que soltara ao desmaiar. Hans Castorp conduzia toda a conversa. James comeu e
bebeu muito, segundo o seu costume, com um apetite que a mudança de ar e a viagem haviam
estimulado. Mesmo assim interrompia de vez em quando o processo de alimentação e
permanecia com a boca cheia, sem pensar em mastigar; mantendo a faca e o garfo em ângulo
obtuso sobre o prato, cravava os olhos em Hans Castorp, aparentemente sem se dar conta disso.
De resto, o sobrinho tampouco se melindrava com esse procedimento do tio. As veias inchadas
ressaltavam nas fontes do Cônsul Tienappel, que estavam cobertas de ralos cabelos louros.
Não trataram dos acontecimentos da pátria, nem de coisas familiares ou pessoais, nem da
cidade, nem dos negócios, nem finalmente da firma Tunder & Wilms, Estaleiros, Fábrica de
Máquinas e Caldeiras, que prosseguia aguardando a chegada do jovem Hans Castorp, o que,
porém, estava tão longe de ser a sua única ocupação, que caberia perguntar se de fato continuava
esperando. Decerto, James Tienappel já aludira a todos esses assuntos, enquanto o carro os
levava ao sanatório, e mais tarde tornara a fazê-lo, mas eles haviam caído ao chão e jaziam
mortos, rejeitados pela indiferença tranquila, decidida e perfeitamente natural de Hans Castorp,
por algo que o tornava, em certo sentido, intangível e inatacável e fazia pensar na sua
insensibilidade quanto ao frio da noite outonal ou naquelas suas palavras: “Nós não sentimos o
frio”. Talvez fosse por isso que o tio o olhava de vez em quando, fixamente. A conversa
focalizou também a Superiora, os médicos, as conferências do Dr. Krokowski. James poderia
assistir a uma delas, se a sua estadia durasse oito dias. Quem dissera ao sobrinho que o tio tinha a
intenção de ouvir a palestra do médico? Ninguém. Mas dava-o por garantido, presumia-o com
uma segurança tão plácida, que o simples pensamento de não presenciar esse espetáculo devia
parecer absurdo ao outro. Daí sucedeu que o tio se apressou a dizer “Perfeitamente,
compreendo”, como para prevenir a suspeita de ter projetado uma coisa impossível. Era
precisamente essa a força cujo efeito indistinto, porém imperioso, fazia com que o Sr. Tienappel,
sem querer, fitasse o sobrinho – agora já com a boca aberta, pois obstruíra-se-lhe o canal
respiratório do nariz, ainda que o cônsul não tivesse gripado. Ouviu como o parente falava da
enfermidade que ali em cima formava o interesse profissional comum a todos, e da predisposição
que certas pessoas tinham para contrai-la. Foi posto a par do caso do próprio Hans Castorp, caso
sem gravidade, mas de cura lenta; da atração que os bacilos exerciam sobre o tecido celular das
ramificações dos brônquios e dos alvéolos pulmonares; da formação de tubérculos; da secreção
de venenos solúveis e embriagadores; da decomposição das células e do processo de caseificação,
a cujo respeito era interessante saber se o mal se deteria em virtude de uma petrificação calcária
e de uma cicatrização do tecido conjuntivo, curando-se dessa forma, ou se, pelo contrário,
estenderia a sua área, criando cavernas cada vez maiores e corroendo o órgão. James Tienappel
ficou sabendo da forma loucamente acelerada, “galopante”, desse processo, que em poucos meses
e mesmo em algumas semanas levava ao exitus; informou-se sobre a pneumotomia, técnica
magistralmente praticada pelo conselheiro, e sobre a ressecção pulmonar, que fariam no dia
seguinte, ou em breve, numa doente recém-chegada em estado gravíssimo, uma escocesa outrora
muito formosa, mas agora atacada de gangraena pulmonum, a necrose dos pulmões, de modo que
nela operava uma peste negro-esverdeada, que a obrigava a respirar durante todo o dia uma
solução vaporizada de ácido carbólico, para que não perdesse o juízo de tanto nojo de si própria...
E de súbito aconteceu ao cônsul, inopinadamente e para a sua maior confusão, desatar a rir.
Explodiu numa gargalhada, procurou imediatamente conter-se, dominou-se, espantado, tossiu e
empenhou-se em disfarçar, por todos os meios, a gafe inexplicável. Verificou, porém, entre
tranquilizado e novamente inquieto, que Hans Castorp absolutamente não prestara atenção a esse
incidente que não lhe podia ter escapado; bem ao contrário, o sobrinho passou por cima dele com
uma displicência que não era devida ao tato, à consideração ou à cortesia, senão à mera
indiferença e impassibilidade, e manifestava uma tolerância de dimensões exorbitantes, como se,
de havia muito, fosse incapaz de estranhar ocorrências dessa espécie. No entanto, o cônsul, seja
porque desejava encobrir posteriormente com um manto de siso e de lógica o seu acesso de
hilaridade, seja por qualquer outro motivo, enveredou de repente numa conversa “só para
homens” e, com as veias frontais túrgidas, meteu-se a falar de uma chansonnette, cantora de cabaré,
mulher para lá de boa, que a essa época se exibia no bairro de Sankt Pauli e com os seus encantos
carregados de paixão virava a cabeça ao mundo masculino da república hamburguesa. No
decorrer dessa narrativa, a língua do tio James mostrou-se um tanto embargada, mas não havia
necessidade de se preocupar com isso uma vez que a complacência inabalável do seu interlocutor
evidentemente incluía esse fenômeno. Contudo, notou o tio, pouco a pouco, a imensa fadiga da
viagem que o dominava, a tal ponto que já por volta das dez e meia optou pelo fim do encontro.
Intimamente sentiu pouca satisfação quando no vestíbulo toparam com o Dr. Krokowski, que
estava lendo um jornal junto à porta de um dos salões, e ao qual James Tienappel foi apresentado
pelo sobrinho. Como resposta às palavras enérgicas e alegres do assistente, o cônsul foi incapaz
de proferir mais do que “Perfeitamente, compreendo”. Deu-se por feliz quando o sobrinho,
anunciando que iria buscá-lo às oito para o café da manhã, passou pelo caminho da sacada, do
quarto desinfetado de Joachim para o seu próprio. Então o cônsul pôde finalmente deixar-se cair
sobre a cama do desertor. Tinha na boca o cigarro que estava habituado a fumar antes de
adormecer, e por um triz não provocou um incêndio, porque duas vezes começou a cochilar com
o toco aceso entre os lábios.
continua pág 282...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Assalto rechaçado (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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