quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Assalto rechaçado (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Assalto rechaçado
.

     A roda girava. O ponteiro ia avançando. Já terminara a época do salepo e da aquilégia; o cravo silvestre desaparecera também. As estrelas azuis da genciana, bem como os pálidos e venenosos lírios verdes, tornavam a apontar na grama úmida. Por cima dos bosques pairava uma aura avermelhada. O equinócio de outono acabava de transcorrer. O Dia de Finados achava-se próximo, e para os mais treinados consumidores do tempo, também o domingo do Advento, o dia mais curto do ano, e a festa do Natal. Por enquanto, porém, desfiava-se ainda uma série de belos dias de outubro, dias da espécie daquele em que os primos haviam ido ver os quadros do conselheiro.
     Desde a partida de Joachim, Hans Castorp não mais tomava as refeições à mesa da Srª. Stöhr, a mesma que o Dr. Blumenkohl abandonara para morrer, e onde Marusja procurara abafar no lencinho perfumado de flor de laranjeira a sua mal justificada hilaridade. Agora achavam-se ali pensionistas novos, pessoas completamente desconhecidas. O nosso amigo, porém, entrado no terceiro mês do segundo ano da sua estadia, recebera da “administração” um outro lugar, numa mesa vizinha, mais próxima da porta que dava para o avarandado, colocada perpendicularmente entre a antiga e a dos “russos distintos”, numa palavra: a mesa de Settembrini. Sim, novamente lhe coubera a ponta, em frente ao lugar do médico, que em cada uma das sete mesas ficava reservado ao uso esporádico do conselheiro ou do seu assistente.
     Na outra extremidade, à esquerda do assento do médico-presidente, tronejava sobre diversas almofadas aquele mexicano corcunda, o fotógrafo diletante, cuja expressão, em virtude de seu isolamento linguístico, se assemelhava à de um surdo. A seu lado ficava a solteirona da Transilvânia, que como já deplorara Settembrini, pretendia interessar o mundo inteiro pelo seu cunhado, se bem que ninguém soubesse nada desse homem nem quisesse saber. Tendo atrás da nuca uma bengala de punho de prata, que também lhe prestava serviços durante os passeios regulamentares, via-se essa criatura, a certas horas do dia, junto da platibanda da sua sacada, empenhada em alargar o peito chato como uma bandeja por meio de exercícios respiratórios. Defronte a ela achava-se um tcheco, que chamavam Sr. Wenzel, já que ninguém era capaz de pronunciar o seu nome de família. Settembrini, em seu tempo, fizera às vezes tentativas no sentido de articular a exótica sequência de consoantes de que se compunha esse nome; claro que não o fizera numa intenção séria, senão para demonstrar graciosamente a impotência da sua nobre língua de latino em face daquele amontoado selvagem de sons. Esse homem, embora fosse redondo como uma bola e se distinguisse por uma voracidade sensacional mesmo entre os pensionistas, afirmava, desde havia quatro anos, que estava fadado a morrer. Durante as reuniões noturnas, tocava de vez em quando, num bandolim enfeitado de fitas, as canções da sua terra, ou contava historietas das suas plantações de beterrabas, onde trabalhavam exclusivamente lindas pequenas. Mais perto de Hans Castorp, a ambos os lados da mesa, encontravam-se os Magnus, o cervejeiro de Halle e a sua esposa. Uma atmosfera de melancolia pairava em torno desse casal, porque ambos estavam perdendo substâncias essenciais para o metabolismo: o homem, açúcar, e a mulher, proteínas. A disposição de alma, sobretudo da pálida Srª. Magnus, parecia desprovida do menor traço de esperança. A vacuidade do espírito desprendia-se dela como um bafio de adega, e de forma ainda mais pura do que a inculta Srª. Stöhr representava ela a combinação de enfermidade e estupidez, de que Hans Castorp se escandalizara espiritualmente, sendo por isso repreendido pelo Sr. Settembrini. O Sr. Magnus revelava maior viveza e loquacidade, embora só daquele gênero que outrora originara as explosões da impaciência literária de Settembrini. Além disso, era colérico e frequentemente tinha atritos com o Sr. Wenzel por motivos políticos e outros. Exasperavam-no as aspirações nacionalistas do tcheco, e ainda mais o fato de ele ser partidário do antialcoolismo e pôr em dúvida a moralidade da profissão de cervejeiro. Em oposição a isso, o Sr. Magnus, com o rosto rubro, defendia a perfeição higiênica da bebida à qual os seus interesses se achavam tão intimamente ligados. Em tais ocasiões, o Sr. Settembrini costumava fazer, humoristicamente, o papel de pacificador. Hans Castorp, no lugar dele, sentia-se menos hábil e não dispunha de suficiente autoridade para substituir o italiano.
     O jovem não mantinha relações pessoais senão com dois dos seus comensais: o primeiro era A. C. Ferge, de Petersburgo, seu vizinho da esquerda, o sofredor bonachão que, sob as brenhas do bigode ruivo, sabia falar ora da fabricação de galochas ora de regiões longínquas, do círculo polar, das neves eternas do cabo Norte, e de vez em quando acompanhava Hans Castorp num dos passeios regulamentares. O segundo, porém, que se unia a eles cada vez que se oferecia uma oportunidade, e tinha o seu lugar na outra extremidade da mesa, em frente ao mexicano corcunda, era o homem de Mannheim, aquele moço de cabelos ralos e dentes defeituosos; chamava-se Wehsal, Ferdinand Wehsal, comerciante, e era o mesmo cujos olhares haviam ficado presos, com um desejo melancólico, à graciosa pessoa de Mme. Chauchat; desde o carnaval procurava obter a amizade de Hans Castorp.
     Fazia-o com obstinação e humildade, com um servilismo suplicante que tinha, aos olhos de Hans Castorp, qualquer coisa de horroroso e repulsivo, porque compreendia o seu sentido complicado; mesmo assim, o jovem esforçava-se por acolhê-lo humanamente. Com uma expressão calma – pois sabia que o menor franzimento do cenho deixaria o rapaz pusilânime encolhido e sobressaltado – tolerava as maneiras subservientes de Wehsal, que aproveitava todas as ocasiões para inclinar-se diante dele e para bajulá-lo; permitia até que o outro, durante os passeios, lhe carregasse o sobretudo, função de que Wehsal se desempenhava com certo fervor; suportava a própria conversa escusa do homem de Mannheim. Wehsal tinha a mania de ventilar problemas como este: era ou não era razoável declarar o seu amor a uma mulher que se amava, mas que manifestamente não correspondia? Que achava da declaração de amor sem esperança? Ele, da sua parte, atribuía-lhe extraordinário valor; segundo a sua opinião, encerrava ela uma felicidade indizível. O ato da confissão, embora despertando repulsa e acarretando grandes vexames, garantia contudo por um instante o pleno contato amoroso com o objeto do desejo, que era forçado a receber a confidencia e a entrar na esfera da própria paixão. Mesmo que tudo terminasse nesse ponto, a perda eterna não representaria um preço excessivo pela volúpia desesperada de um único momento. O desabafo era um ato violento, e quanto maior a repugnância que se lhe opusesse, mais gozo proporcionaria... A essa altura, uma lua que anuviou a fisionomia de Hans Castorp fez com que Wehsal retrocedesse. Para dizer a verdade, tinha ela a sua origem na presença do jovial Sr. Ferge, o qual, como afirmava com frequência, ficava totalmente alheio a quaisquer assuntos elevados e complexos, e não na austeridade puritana do nosso herói. Como sempre nos empenhamos em apresentá-lo nem melhor nem pior do que era, não omitimos o seguinte fato: certa noite, quando estava a sós com Hans Castorp, o pobre Wehsal, em palavras incolores, insistiu com ele para que lhe confiasse, por amor de Deus, alguns pormenores daqueles acontecimentos e daquelas experiências da noite de carnaval, que se haviam realizado depois do fim do baile; Hans Castorp atendeu a esse pedido com tranquilidade benevolente, sem que – ao contrário do que o leitor talvez acredite – esse diálogo tivesse cunho leviano ou vil. Temos todavia razões fortes para manter afastados dessa cena tanto o leitor como nós próprios, e limitamo-nos a acrescentar que a partir do referido dia Wehsal carregava com redobrado ardor o casacão do condescendente Hans Castorp.
     Já falamos bastante a respeito dos comensais de Hans Castorp. O lugar à sua direita estava vazio. Não fora ocupado senão passageiramente durante alguns dias, por um visitante. Um parente viera de visita da planície, um emissário, como se poderia dizer – numa palavra: tratava-se de James Tienappel, tio de Hans.
     Era fantástico ver de repente como vizinho de mesa um representante e enviado da pátria, um homem que ainda trazia fresca no tecido inglês do terno a atmosfera do antigo, do submerso, da vida passada, do mundo dos vivos que existia lá embaixo. Mas era forçoso que isso acontecesse. Havia muito que Hans Castorp contara com tal ofensiva da planície e mesmo previra com exatidão a personalidade que seria incumbida do reconhecimento; o que, aliás, não fora muito difícil, já que Peter, o navegante, mal entrava em questão, e quanto ao tio-avô Tienappel era coisa sabida que nem dez cavalos o arrastariam a essas regiões, cuja pressão atmosférica lhe seria sumamente perigosa. Não, tinha de ser James o encarregado de investigar, em nome da família, a situação do parente extraviado. Hans Castorp esperara mesmo que ele chegasse antes. Desde que Joachim regressara sozinho e pusera a família a par do estado das coisas ali de cima, o assalto era iminente, mais do que iminente. Dessa forma, Hans Castorp não se surpreendeu nem um pouquinho, quando, duas semanas exatas depois da partida do primo, o porteiro lhe entregou um telegrama. Abriu-o, cheio de pressentimentos, e ficou sabendo da próxima chegada de James Tienappel. Este teria de resolver alguns assuntos pendentes na Suíça e aproveitaria a ocasião para fazer uma excursão até as alturas de Hans. Chegaria daí a dois dias. 

– Bem! – pensou Hans Castorp. – Ótimo! – pensou, e acrescentou intimamente qualquer coisa parecida com “Corno quiser!” – Ah, se você tivesse ideia – disse, falando, nos seus pensamentos, com o parente que se aproximava. Numa palavra, inteirou-se da notícia com a mais completa calma. Transmitiu-a ao Dr. Behrens e à “administração”. Mandou reservar um quarto; o de Joachim estava ainda disponível. Dois dias após, à hora da sua própria chegada, isto é, pelas oito horas, já depois do escurecer, entrou no mesmo veículo mal estofado em que havia pouco acompanhara Joachim, e encaminhou-se à estação de Davos-Dorf, para receber o emissário da planície que vinha endireitar a situação.

     Com a tez rubicunda, sem chapéu nem sobretudo, achava-se à beira da plataforma quando o trenzinho entrou na estação. Pela janela do compartimento convidou o tio a descer tranquilamente, porque já chegara ao seu lugar de destino. O Cônsul Tienappel – era vice-cônsul e substituía dignamente o pai também nesse cargo honorário – apareceu friorento, envolto no seu casaco de inverno. (Com efeito, a noite de outubro estava bastante fria, e pouco faltava para que pudesse ser qualificada de gélida; de madrugada certamente faria uma temperatura abaixo de zero.) Desembarcou, ali Clemente surpreendido, o que manifestou à maneira um tanto preciosa, ultracivilizada, peculiar aos cavalheiros distintos do norte da Alemanha. Cumprimentou o sobrinho-quase-primo, expressando, com enfáticos elogios, a satisfação que experimentava ao encontrá-lo com tão bom aspecto. Verificou que o porteiro coxo o dispensava de preocupar-se com a bagagem. Saiu da estação e galgou, em companhia de Hans Castorp, o alto e duro assento do coche. Sob o céu abundantemente estrelado puseram-se a caminho, e Hans Castorp, com a cabeça deitada para trás, explicou ao tio-primo as paragens celestes, circunscrevendo com palavras e gestos esta ou aquela constelação cintilante, e chamando os planetas pelos nomes. Enquanto isso, o outro, prestando maior atenção à pessoa do seu companheiro do que ao cosmo, dizia de si para si que era talvez admissível e não rematada loucura falar das estrelas, precisamente nesse momento, nesse lugar, e sem mais aquela, mas que existiam outros assuntos mais urgentes. Perguntou desde quando Hans Castorp estava tão familiarizado com aquele mundo longínquo, ao que o sobrinho replicou que devia esses conhecimentos ao repouso noturno que fazia na sacada, durante a primavera, o verão, o outono e o inverno.

– Como? Você fica de noite na sacada? 
– Sim. E você fará a mesma coisa. Não há jeito de escapar a isso. 
– Perfeitamente, compreendo – disse James Tienappel, complacente e um tanto intimidado. Seu irmão de criação continuou conversando sossegada e monotonamente. Sem chapéu, sem sobretudo, estava sentado junto dele, na frescura quase gelada da noite outonal. – Você não se ressente do frio? – perguntou James, que tiritava sob a grossa fazenda do casacão. Sua maneira de falar parecia ao mesmo tempo precipitada e hesitante, já que os seus dentes manifestavam a tendência de entrechocar-se. – Nós não sentimos o frio – respondeu Hans Castorp calma e laconicamente. 

     O cônsul não se cansava de olhá-lo de lado. Hans Castorp não procurou informar-se sobre os parentes e os conhecidos de casa. Recebeu, agradecendo impassivelmente, as lembranças que James lhe transmitiu, inclusive as de Joachim, que já se apresentara ao regimento e estava radiante de alegria e orgulho. Fê-lo sem pedir informações pormenorizadas a respeito das coisas da sua terra. James sentiu-se inquietado por um quê de natureza vaga, o qual não sabia se era irradiado pelo sobrinho ou se tinha a sua origem no seu próprio estado físico. Olhou em torno, sem distinguir muita coisa da paisagem alpina. Aspirou profundamente o ar, soltou-o e declarou que o achava magnífico. – Certamente – respondeu o outro. Não era sem motivo que esse ar adquirira tanta fama. Possuía virtudes poderosas. Acelerava a combustão geral, e no entanto permitia ao corpo assimilar as proteínas. Curava doenças que todos os homens traziam latentes em si, mas antes costumava dar a elas um vigoroso estímulo e causar, por meio de um impulso geral proporcionado ao organismo, a sua irrupção triunfal.

– Perdão! Por que triunfal? 
– Sim. Você nunca notou que a irrupção de uma doença representa uma espécie de triunfo e constitui de certo modo uma festa do corpo? 
– Perfeitamente, compreendo – apressou-se o tio a concordar, sem que pudesse conter o tremor da mandíbula inferior. A seguir anunciou que permaneceria oito dias, isto é, uma semana, ou melhor uns sete ou apenas seis dias. Repetiu que o aspecto de Hans Castorp lhe parecia extraordinariamente bom; o sobrinho estava muito mais robusto, devido a esse tratamento, cuja duração se estendera além de toda expectativa. Assim, era de supor que Hans Castorp regressaria junto com ele. 
– Ora, ora, que precipitação é essa? – disse o jovem. O tio James falava à maneira lá de baixo. Bastaria que estudasse um pouco o “nosso” ambiente e se aclimatasse a ele, para que mudasse de ideia. Tudo dependia da cura definitiva. Só o definitivo tinha importância, e recentemente o Dr. Behrens lhe pespegara mais seis meses. Ao ouvir isso, o tio tratou-o por “meu filho” e perguntou se estava louco. – Está completamente doido?! – exclamou. Afinal de contas, essas férias já duravam quinze meses, e agora se falava de mais meio ano! Deus do céu, a gente não tinha tanto tempo! Mas Hans Castorp deu uma risada serena e abrupta, com a cabeça erguida em direção às estrelas. Pois sim, o tempo! Nesse ponto, justamente, com referência ao tempo humano, James teria de retificar, antes de mais nada, os conceitos que trouxera consigo da planície, antes de abrir a boca aqui em cima. – No seu interesse falarei seriamente com o Dr. Behrens, amanhã mesmo – prometeu Tienappel. 
– Não deixe de falar – disse Hans Castorp. – Você gostará dele. É um tipo interessante, ao mesmo tempo enérgico e melancólico. – A seguir apontou para as luzes do Sanatório Schatzalp e se referiu, de passagem, aos cadáveres que eram transportados pela pista do trenó.

     Jantaram juntos no restaurante do Berghof, depois de Hans Castorp ter levado o visitante ao quarto de Joachim, para dar-lhe uma oportunidade de se lavar um pouco. A peça fora fumigada com H2 CO – contou Hans Castorp – Como se se tratasse, não de uma partida “em falso”, mas de uma de caráter bem diferente, quer dizer, de um exitus em vez de um exodus. E quando o tio pediu uma explicação do sentido dessas palavras, disse o sobrinho: 

– É a gíria local; nossa maneira de falar... Joachim desertou. Fugiu para as fileiras do exército. Isto também existe. Mas, vamos, ligeiro, para que a gente ainda arranje alguma comida quente! – Sentaram-se um à frente do outro no restaurante agradavelmente aquecido, sobre o alto estrado. A anã atendeu-os sem demora, e James encomendou uma garrafa de borgonha, que foi trazida deitada numa cestinha. Chocaram os copos e deixaram-se penetrar pelo doce ardor do vinho. O sobrinho falou da vida que se levava ali em cima, no ciclo das estações; mencionou certas personagens da sala de refeições; passou para o pneumotórax, cujo processo explicou, citando o caso do jovial Sr. Ferge e alongando-se sobre o fenômeno horripilante do choque pleural, sem omitir as três síncopes de cor diferente, que o russo pretendia ter sofrido, bem como a alucinação do olfato, que desempenhava um papel importante no momento do choque, e da gargalhada que soltara ao desmaiar. Hans Castorp conduzia toda a conversa. James comeu e bebeu muito, segundo o seu costume, com um apetite que a mudança de ar e a viagem haviam estimulado. Mesmo assim interrompia de vez em quando o processo de alimentação e permanecia com a boca cheia, sem pensar em mastigar; mantendo a faca e o garfo em ângulo obtuso sobre o prato, cravava os olhos em Hans Castorp, aparentemente sem se dar conta disso. De resto, o sobrinho tampouco se melindrava com esse procedimento do tio. As veias inchadas ressaltavam nas fontes do Cônsul Tienappel, que estavam cobertas de ralos cabelos louros.

     Não trataram dos acontecimentos da pátria, nem de coisas familiares ou pessoais, nem da cidade, nem dos negócios, nem finalmente da firma Tunder & Wilms, Estaleiros, Fábrica de Máquinas e Caldeiras, que prosseguia aguardando a chegada do jovem Hans Castorp, o que, porém, estava tão longe de ser a sua única ocupação, que caberia perguntar se de fato continuava esperando. Decerto, James Tienappel já aludira a todos esses assuntos, enquanto o carro os levava ao sanatório, e mais tarde tornara a fazê-lo, mas eles haviam caído ao chão e jaziam mortos, rejeitados pela indiferença tranquila, decidida e perfeitamente natural de Hans Castorp, por algo que o tornava, em certo sentido, intangível e inatacável e fazia pensar na sua insensibilidade quanto ao frio da noite outonal ou naquelas suas palavras: “Nós não sentimos o frio”. Talvez fosse por isso que o tio o olhava de vez em quando, fixamente. A conversa focalizou também a Superiora, os médicos, as conferências do Dr. Krokowski. James poderia assistir a uma delas, se a sua estadia durasse oito dias. Quem dissera ao sobrinho que o tio tinha a intenção de ouvir a palestra do médico? Ninguém. Mas dava-o por garantido, presumia-o com uma segurança tão plácida, que o simples pensamento de não presenciar esse espetáculo devia parecer absurdo ao outro. Daí sucedeu que o tio se apressou a dizer “Perfeitamente, compreendo”, como para prevenir a suspeita de ter projetado uma coisa impossível. Era precisamente essa a força cujo efeito indistinto, porém imperioso, fazia com que o Sr. Tienappel, sem querer, fitasse o sobrinho – agora já com a boca aberta, pois obstruíra-se-lhe o canal respiratório do nariz, ainda que o cônsul não tivesse gripado. Ouviu como o parente falava da enfermidade que ali em cima formava o interesse profissional comum a todos, e da predisposição que certas pessoas tinham para contrai-la. Foi posto a par do caso do próprio Hans Castorp, caso sem gravidade, mas de cura lenta; da atração que os bacilos exerciam sobre o tecido celular das ramificações dos brônquios e dos alvéolos pulmonares; da formação de tubérculos; da secreção de venenos solúveis e embriagadores; da decomposição das células e do processo de caseificação, a cujo respeito era interessante saber se o mal se deteria em virtude de uma petrificação calcária e de uma cicatrização do tecido conjuntivo, curando-se dessa forma, ou se, pelo contrário, estenderia a sua área, criando cavernas cada vez maiores e corroendo o órgão. James Tienappel ficou sabendo da forma loucamente acelerada, “galopante”, desse processo, que em poucos meses e mesmo em algumas semanas levava ao exitus; informou-se sobre a pneumotomia, técnica magistralmente praticada pelo conselheiro, e sobre a ressecção pulmonar, que fariam no dia seguinte, ou em breve, numa doente recém-chegada em estado gravíssimo, uma escocesa outrora muito formosa, mas agora atacada de gangraena pulmonum, a necrose dos pulmões, de modo que nela operava uma peste negro-esverdeada, que a obrigava a respirar durante todo o dia uma solução vaporizada de ácido carbólico, para que não perdesse o juízo de tanto nojo de si própria... E de súbito aconteceu ao cônsul, inopinadamente e para a sua maior confusão, desatar a rir. Explodiu numa gargalhada, procurou imediatamente conter-se, dominou-se, espantado, tossiu e empenhou-se em disfarçar, por todos os meios, a gafe inexplicável. Verificou, porém, entre tranquilizado e novamente inquieto, que Hans Castorp absolutamente não prestara atenção a esse incidente que não lhe podia ter escapado; bem ao contrário, o sobrinho passou por cima dele com uma displicência que não era devida ao tato, à consideração ou à cortesia, senão à mera indiferença e impassibilidade, e manifestava uma tolerância de dimensões exorbitantes, como se, de havia muito, fosse incapaz de estranhar ocorrências dessa espécie. No entanto, o cônsul, seja porque desejava encobrir posteriormente com um manto de siso e de lógica o seu acesso de hilaridade, seja por qualquer outro motivo, enveredou de repente numa conversa “só para homens” e, com as veias frontais túrgidas, meteu-se a falar de uma chansonnette, cantora de cabaré, mulher para lá de boa, que a essa época se exibia no bairro de Sankt Pauli e com os seus encantos carregados de paixão virava a cabeça ao mundo masculino da república hamburguesa. No decorrer dessa narrativa, a língua do tio James mostrou-se um tanto embargada, mas não havia necessidade de se preocupar com isso uma vez que a complacência inabalável do seu interlocutor evidentemente incluía esse fenômeno. Contudo, notou o tio, pouco a pouco, a imensa fadiga da viagem que o dominava, a tal ponto que já por volta das dez e meia optou pelo fim do encontro. Intimamente sentiu pouca satisfação quando no vestíbulo toparam com o Dr. Krokowski, que estava lendo um jornal junto à porta de um dos salões, e ao qual James Tienappel foi apresentado pelo sobrinho. Como resposta às palavras enérgicas e alegres do assistente, o cônsul foi incapaz de proferir mais do que “Perfeitamente, compreendo”. Deu-se por feliz quando o sobrinho, anunciando que iria buscá-lo às oito para o café da manhã, passou pelo caminho da sacada, do quarto desinfetado de Joachim para o seu próprio. Então o cônsul pôde finalmente deixar-se cair sobre a cama do desertor. Tinha na boca o cigarro que estava habituado a fumar antes de adormecer, e por um triz não provocou um incêndio, porque duas vezes começou a cochilar com o toco aceso entre os lábios.

continua pág 282...
___________________

Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Assalto rechaçado (a)
___________________

A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário