em busca do tempo perdidovolume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...O Sr. de Charlus em sociedade. - Um médico. - Face característica da Sra. de Vaugoubert. - A
Sra. d'Arpajon, o repuxo de Hubert Robert e a alegria do grão-duque Wladimir. - A Sra. d
Amoncourt, a Sra. de Citri, a Sra. de Saint-Euverte, etc. - Curiosa palestra entre Swann e o
príncipe de Guermantes. - Albertine ao telefone. - Visitas enquanto espero minha segunda e
última viagem a Balbec. - Chegada a Balbec. - Ciúme em relação a Albertine. - As intermitências
do coração.
Como não tinha pressa em chegar àquele sarau dos Guermantes a que não estava certo
de que fora convidado, fiquei à toa na rua; porém, o dia de verão não parecia ter mais pressa do
que eu em se mover. Embora já fossem mais de nove horas, era ainda esse dia que, sobre a
Praça da Concórdia, dava ao obelisco de Luxor um aspecto de nougat cor-de-rosa. Depois,
modificou-lhe o matiz e mudou-o em matéria metálica, de modo que o obelisco tornou-se não só
mais precioso, mas também pareceu adelgaçado e quase flexível. Imaginava-se que poderiam
torcê-lo, que talvez já houvessem falseado ligeiramente aquela joia. A lua estava agora no céu
como um quarto de laranja delicadamente descascada, conquanto meio amassada. Porém, mais
tarde devia ser feita do ouro mais resistente. Encolhida sozinha atrás dela, uma pobre estrelinha ia
servir de companhia única à lua solitária, ao passo que esta, sempre a proteger a sua amiga,
porém mais ousada e indo na dianteira, brandiria como uma arma irresistível, como um símbolo
oriental, o seu amplo e maravilhoso crescente de ouro.
Diante do palácio da princesa de Guermantes, encontrei o duque de Châtellerault; já não
me lembrava que meia hora antes ainda me perseguia o receio que em breve iria dominar-me de
novo de comparecer sem ter sido convidado. Inquietamo-nos, e é por vezes muito depois da hora
do perigo esquecida graças à distração, que nos lembramos de nosso desassossego.
Cumprimentei o jovem duque e entrei no palácio. Mas aqui, faz-se antes necessário que eu
aponte uma circunstância mínima, que permitirá se compreenda um fato que se seguirá em breve.
Existia alguém que, nesta noite como nas noites precedentes, pensava muito no duque de
Châtellerault, aliás sem suspeitar de quem se tratava: era o porteiro da Sra. de Guermantes, a
quem por esse tempo chamava-se "o ladrador". O Sr. de Châtellerault, bem longe de ser um dos
íntimos da princesa visto ser um de seus primos-, era recebido em seu salão pela primeira vez.
Seus pais, brigados com ela por dez anos, tinham-se se reconciliado há duas semanas e,
forçados a se ausentarem de Paris, haviam encarregado o filho de representá-los. Ora, alguns
dias antes, o porteiro da princesa encontrara nos Champs-Élysées um jovem a quem achara
encantador, mas que não lhe fora possível identificar. Não que o jovem não se mostrasse tão
amável como generoso. Todos os favores que o porteiro imaginara ter de ceder a um senhor tão
moço, ele, ao contrário, os havia recebido. Mas o Sr. de Châtellerault era tão medroso quanto
imprudente; e tanto mais decidido estava a guardar o incógnito por ignorar de quem se tratava;
teria medo bem maior, embora sem fundamento, se o tivesse conhecido. Limitara-se a se fazer
passar por um inglês, e a todas as perguntas apaixonadas do porteiro, desejoso de reencontrar
uma pessoa a quem tanto devia em prazer e liberalidades, o duque se restringira a responder, ao
longo da avenida Gabriel: "
l do not speak french."
Se bem que, apesar de tudo devido à origem materna de seu primo-, o duque de
Guermantes afetasse achar um nadinha de CourvoisicK no salão da princesa de Guermantes-Baviera, em geral julgava-se o espírito de iniciativa e a superioridade intelectual dessa dama
conforme uma inovação que não se encontrava em nenhuma outra parte naquele meio. Após o
jantar, e qualquer que fosse a importância da reunião que deveria seguir-se os assentos, na casa
da princesa de Guermantes, achavam-se dispostos de tal maneira a formar pequenos grupos que,
se necessário, davam-se as costas. A princesa então evidenciava o seu sentido social indo
sentar-se como por preferência sua, em um deles. De resto, ela não temia eleger atrair um
membro de outro grupo. Se, por exemplo, ela fizera notar ao Sr. Detaille, que naturalmente
concordara, como a Sra. de Villemur, cuja posição em outro grupo a fazia ser vista de costas,
possuía uma bela nuca, a princesa não hesitava em erguer a voz:
- Sra. de Villemur, o Sr. Detaille, como grande pintor que é, está admirando o seu pescoço.
A Sra. de Villemur sentia naquilo um convite direto à conversação; com a destreza que dá o hábito
da equitação, fazia sua cadeira girar lentamente num arco de três quartos de círculo e, sem
incomodar em nada os vizinhos, ficava quase de frente para a princesa.
- Não conhece o Sr. Detaille? - perguntava a dona da casa, a quem não bastava a hábil e
recatada conversão de sua conviva.
- Não o conheço, mas conheço as suas obras. - respondia a Sra. de Villemur com o ar de
respeito, insinuante e oportuno, que muitos lhe invejavam, enquanto dirigia ao famoso pintor, que
a interpelação não lhe bastara para apresentá-lo de maneira formal, um cumprimento
imperceptível.
- Venha, Sr. Detaille - dizia a princesa; vou apresentá-lo à Sra. de Villemur. -
Esta, então, empregava tanto engenho para abrir espaço ao autor do Sonho como há
pouco em se virar para ele. E a princesa avançou uma cadeira para si própria; de fato, só
interpelara a Sra. de Villemur para ter um pretexto de largar o primeiro grupo, onde passara os
dez minutos regulamentares, e conceder ao segundo igual duração de presença. Em três quartos
de hora, todos os grupos tinham recebido a sua visita, que parecia ter sido guiada, de cada vez,
somente pelo imprevisto e pelas predileções, mas tivera por objetivo sobretudo pôr em relevo com
que naturalidade "uma grande dama sabia receber". Mas agora os convidados do sarau
começavam a chegar, e a dona da casa se havia sentado não longe da porta altiva e
empertigada, em sua majestade quase régia, os olhos flamejantes de incandescência própria
entre duas Altezas sem beleza e a embaixatriz da Espanha.
Eu era o último da fila, atrás de uns convidados que tinham chegado um pouco antes de
mim. À minha frente estava a princesa, cuja formosura, entre tantas outras, não é só o que me faz
recordar essa festa. Mas o rosto da dona da casa era tão perfeito, cinzelado como uma tão linda
medalha, que conservou para mim uma virtude comemorativa. A princesa tinha o hábito de dizer
aos convidados, ao encontra-los alguns dias antes de seus saraus:
- O senhor virá, não é mesmo? - como se estivesse grandemente desejosa de conversar
com eles. Mas como, pelo contrário, não tinha nada para lhes falar quando chegavam junto dela,
contentava-se, sem se erguer, em interromper por um instante a sua vã conversação com as duas
Altezas e a embaixatriz e agradecer, dizendo:
- Foi gentil em ter vindo -, não que achasse que o convidado dera provas de gentileza ao
comparecer, mas para aumentar ainda a sua; e logo, devolvendo-o à correnteza, acrescentava: -
Encontrará o Sr. de Guermantes à entrada dos jardins de modo que o convidado saía e a deixava
tranquila. Para alguns até, ela nem dizia nada, contentando-se em lhes mostrar seus admiráveis
olhos de ônix, como se tivessem vindo exclusivamente para uma exposição de pedras preciosas.
A primeira pessoa a passar antes de mim era o duque de Châtellerault. Tendo de
corresponder a todos os sorrisos, a todos os apertos de mão que lhe vinham do salão, ele não
reparara no porteiro. Mas, desde o primeiro instante, o porteiro o reconhecera. Aquela identidade
que tanto desejara saber, num momento iria conhecê-la. Perguntando ao seu criado da
antevéspera qual o nome que devia anunciar, o porteiro não estava; mas comovido, julgava-se
indiscreto, indelicado. Parecia-lhe que ia revelar a todos (que no entanto não desconfiariam de
coisa alguma) um segredo que era o culpado de surpreender daquele modo e expor em público:
ouvir a resposta do convidado:
- O duque de Châtellerault -, sentiu perturbado por tamanho orgulho que emudeceu por um
instante. O duque o encarou, reconheceu-o, viu-se perdido, ao passo que o criado, que se
lembrara e conhecia perfeitamente o seu cerimonial para completar por si mesmo um apelativo
tão modesto, gritou com a energia profissional que se aveludam com uma ternura íntima:
- Sua Alteza Monsenhor o duque de Châtellerault -
Mas agora era a minha vez de ser anunciado. Absorvido na contemplação da dona da
casa que ainda não me vira, nem pensara nas funções terríveis para mim, conquanto de modo
diverso do que para o Sr. Châtellerault desse porteiro vestido de preto como um carrasco, cercado
de uma tropa de lacaios das mais ridentes librés, robustos latagões prontos para agarrarem um
intruso e pô-lo porta afora. O porteiro perguntou meu nome; dei-lhe tão maquinalmente como o
condenado à morte se deixa prender ao cepo. De imediato ele ergueu majestosamente a cabeça
e, antes que eu tivesse podido implorar-lhe que me anunciasse a meia voz a fim de resguardar
meu amor-próprio, caso não fosse convidado, e o da princesa de Guermantes, caso o fosse,
berrou as sílabas inquietadoras com uma força capaz de abalar a abóbada do palácio.
O ilustre Huxley (aquele cujo sobrinho ocupa atualmente um cume preponderante no
universo da literatura inglesa) conta que uma de suas doentes não mais tinha coragem de
freqüentar a sociedade, pois muitas vezes, na própria poltrona que lhe indicavam com um gesto
cortês, ela via sentado um velho senhor. Estava bem certa de que, ou o gesto convidativo ou a
presença do velho senhor, seria uma alucinação, pois não lhe designariam daquele modo uma
poltrona ocupada. E, quando Huxley, para curá-la, obrigou-a a voltar a uma festa, ela teve um
momento de penosa hesitação perguntando-se se o gesto amável que lhe faziam era a coisa real,
ou se para obedecer a uma visão inexistente, ela iria em público sentar-se nos joelhos de um
senhor de carne e osso. Sua breve incerteza foi cruel. Mais talvez do que a minha. A partir do
momento em que ouvira o ribombar de ouvir meu nome, como o rumor prévio de um possível
cataclismo, fui obrigado para em todo caso defender minha boa-fé e como se não estivesse
atormentado por nenhuma dúvida, avançar para a princesa com ar resoluto.
Ela me avistou quando eu estava a poucos passos de distância o que não me permitiu
mais duvidar de que fora vítima de uma maquinação em vez de permanecer sentada como fazia
quanto aos outros convidados, ergueu-se e veio ao meu encontro. Um segundo após, pude soltar
o suspiro de alívio da doente de Huxley, quando, tendo resolvido sentar-se na poltrona,
encontrou-a desocupada e compreendeu que o velho senhor é que era uma alucinação. A
princesa acabava de me estender a mão, sorrindo. Ficou de pé durante alguns momentos, com o
tipo de graça particular à estância de Malherbe que termina assim:
E os
Anjos para honrá-los se levantam.
Ela se desculpou pelo fato de a duquesa ainda não ter chegado, como se eu devesse me
aborrecer sem a presença dela. Para me fazer esse cumprimento, ela executou a meu redor,
segurando-me a mão, um giro cheio de graça, em cujo turbilhão eu me sentia arrastado. Quase
esperava que ela me entregasse então, como uma condutora de
cotillon (dança), uma bengala de
cabo de marfim ou um relógio-pulseira. Na verdade, não me deu nada disso e, como se em lugar
de dançar o
bóston tivesse antes ouvido um sacrossanto quarteto de Beethoven, cujos sublimes
acentos temesse perturbar, parou nesse ponto a conversa, ou melhor, não a principiou e, ainda
radiante de me ter visto entrar, limitou-se a indicar o local onde se encontrava o príncipe.
Afastei-me dela e não mais tive coragem de me aproximar, sentindo que ela não tinha
absolutamente nada a me dizer e que, em sua imensa boa vontade, aquela mulher
maravilhosamente alta e bela, nobre como o eram tantas grandes damas que subiram tão
altivamente ao cadafalso, não poderia, sem ousar oferecer-me água de erva-cidreira, senão
repetir-me o que já me havia dito duas vezes:
- O senhor encontrará o príncipe no jardim. -
Ora, ir ao encontro do príncipe seria sentir renascer minhas dúvidas sob forma diversa. Em
todo caso, precisava encontrar alguém que me apresentasse. Ouvia-se, dominando todas as
conversações, o inesgotável falatório do Sr. de Charlus, que estava conversando com Sua
Excelência o duque de Sidonia, com quem acabava de travar conhecimento. De profissão para
profissão, nós nos adivinhamos, e de vício para vício também. O Sr. de Charlus e o Sr. de Sidonia
tinham de imediato farejado cada um o do outro, que, quanto a ambos, era, em sociedade, o de
serem monologadores, a ponto de não poderem suportar nenhuma interrupção. Tendo logo
percebido que o mal era sem remédio, como diz um célebre soneto, tomaram a resolução não de
se calar, mas de falar cada qual sem cuidar do que o outro dizia, o que provocara aquele rumor
confuso, produzido nas comédias de Moliere por vários personagens que falam ao mesmo tempo
coisas diferentes. O barão, sua voz estrepitosa, estava certo, aliás, de que teria a vantagem, que
cobria a voz fraca do Sr. de Sidonia, sem no entanto desencorajar a este, quando o Sr. de Charlus
retomava fôlego por um instante, o intervalo era preenchido pelo sussurro do nobre da Espanha,
que continuara imperturbavelmente o seu discurso. Bem que eu podia pedir ao Sr. de Charlus que
me apresentasse ao príncipe de Guermantes, mas receava (com sobra das razões) que ele se
irritasse comigo. Eu agira com ele da maneira mais ingrata, desdenhando pela segunda vez os
seus oferecimentos, nem lhe dando sinal de vida desde a noite em que me reconduzira tão
afetuosamente à minha casa. E no entanto não dava de modo algum, como desculpa prévia, a
cena que acabara de ver, naquela mesma tarde, entre ele e Jupien. Não suspeitava nada de
parecido. É verdade que pouco tempo antes, como meus pais me censurassem a preguiça e por
ainda não ter escrito um bilhete ao Sr. de Chary eu os censurara violentamente por quererem que
aceitasse propostas deste nestas. Mas somente a cólera e o desejo de achar a frase que lhes
podia ser mais desagradável é que me haviam ditado aquela resposta mentirosa. Na realidade, eu
nada imaginara de sensual, nem sequer de sentimental, sob as ofertas do barão. Dissera aquilo a
meus pais como simples besteira. Mas às vezes o futuro nos habita sem que o saibamos, e
nossas palavras que crêem mentir estão descrevendo uma realidade que se aproxima. O Sr. de
Charlus decerto perdoaria minha ingratidão. Mas o que o deixaria furioso é que a minha presença
esta noite na casa da princesa de Guermantes, como fazia algum tempo na casa da prima desta,
parecia desprezar a solene declaração:
- Não se entra nesses salões senão por mera intermédio. -
Falta grave, crime por ventura irreparável, eu não seguira a ordem hierárquica. O Sr. de
Charlus sabia muito bem que os raios que brandia contra aqueles que não se curvavam às suas
ordens, ou a quem criara rancor, começavam a ser tidos, para muita gente, por mais ódio que ele
lhes imprimisse, por raios de cartolina, e já não tinham forças de expulsar fosse quem fosse de
lugar algum. Mas talvez julgasse que seu poder diminuído grande ainda, permanecia intacto aos
olhos dos novatos como eu. Assim não julguei muito apropriado pedir-lhe um favor numa festa em
que só a minha presença parecia um irônico desmentido a suas pretensões.
continua na página 18...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - O Sr. de Charlus em sociedade)
Volume 6
Volume 7