segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Edgar Allan Poe - Contos: A Máscara da Morte Vermelha

Edgar Allan Poe - Contos


A Máscara da Morte Vermelha
Título original: The Masque of the Red Death 
Publicado em 1842

      Havia muito que a « Morte Vermelha» assolava a região. Jamais houve peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era o seu avatar ou o seu selo — a vermelhidão e o horror do sangue. Sentiam-se dores agudas, seguidas de um súbito estonteamento, dos poros brotava profusamente o sangue, e, por fim, sobrevinha a morte. As manchas escarlates no corpo, e especialmente na cara, eram o estigma que baniam a vítima de todo o convívio humano, a isolavam de todo o auxílio e de toda a simpatia dos seus semelhantes. E a doença acometia um desgraçado, torturava-o e matava-o em menos de meia hora.
     O Príncipe Próspero, porém, era feliz, intrépido e sagaz. Quando os seus domínios se achavam meio despovoados, chamou para junto de si mil amigos robustos e joviais, escolhidos dentre os fidalgos e damas da sua corte, e com eles se retirou para o remoto remanso de uma das suas abadias acasteladas.
     Era esta um edifício extenso e magnífico, criação do gosto excêntrico, mas majestoso, do Príncipe. Circundava-a uma forte e alta muralha com portões de ferro. Os cortesãos, logo que entraram, serviram-se de forjas e pesados martelos e soldaram os ferrolhos dos portões. Haviam resolvido vedar todos os meios de saída ou de entrada aos impulsos súbitos do desespero ou da loucura. A abadia estava fartamente abastecida. Com tais precauções podiam desafiar o contágio. O mundo exterior que cuidasse de si. No entretanto, era loucura sofrer ou cismar. O Príncipe preparara para os seus hóspedes todos os gozos do prazer. Havia bobos, havia improvisadores, havia bailarins, havia músicos, havia Beleza, havia vinho. Dentro havia o prazer e a tranquilidade. Fora havia a « Morte Vermelha.»
     Foi pelos fins do quinto ou sexto mês da sua reclusão, e enquanto a epidemia lavrava mais furiosamente pelo país, que o Príncipe Próspero mimoseou os seus mil amigos com um baile de máscaras da mais rara magnificência.
     Foi um espetáculo voluptuoso aquele baile. Mas antes deixem-me descrever as salas em que se realizou a festa. Eram sete — à moda imperial. Em muitos palácios estas salas são a seguir umas às outras, formando uma perspectiva extensa e retilínea, de modo que de uma pode abranger-se o conjunto de todas as outras. Aqui, porém, o caso era muito diferente, como, aliás, era de esperar do amor do Príncipe por tudo o que fosse fantástico e extravagante. As salas estavam de tal modo dispostas, que a vista pouco mais de uma podia abranger de cada vez. De vinte em vinte metros, pouco mais ou menos, havia um ângulo muito agudo, e a cada canto que se dobrava descortinava-se um efeito novo.
     À direita e à esquerda, ao meio de cada parede, uma janela gótica, alta e estreita, dava para um corredor que seguia a todo o comprimento das salas. Estas janelas eram de vitrais, cuja cor variava consoante o tom predominante nas decorações da sala a que pertencia. A do extremo oriental, por exemplo, era forrada de azul — e, portanto, rutilamente azuis eram os vitrais da sua janela. A segunda sala era de púrpura nos seus adornos e nas suas tapeçarias, e a janela era igualmente purpúrea. A terceira era toda verde, e verdes eram os seus vitrais. A quarta era toda cor de laranja, a quinta forrada de veludo negro, que revestia as paredes, do teto ao chão, caindo em pesadas pregas sobre um tapete do mesmo estofo e da mesma cor. Mas só nesta sala é que a cor da janela não correspondia à das decorações. Os vidros eram, aqui, escarlate — cor de sangue.
     Em nenhuma das sete salas havia qualquer espécie de lâmpada ou candelabro, por entre a profusão de ornatos de ouro que se exibiam aqui e ali ou pendiam do teto. Nenhuma espécie de luz de lâmpada ou vela iluminava aquela série de salas. Mas nos corredores que marginavam as salas, em frente a cada janela, erguia-se uma pesada trípode, em que ardia uma grande chama, cujos raios, coando-se através dos vitrais, resplandeciam na sala. Obtinham-se assim efeitos pulquérrimos e fantásticos. Mas na sala do extremo ocidental, a sala negra, o efeito da luz que incidia sobre o veludo negro, através dos vitrais cor de sangue, era sumamente tétrico, e imprimia uma aparência tão estranha às fisionomias de quem lá entrava, que poucas pessoas tinham a coragem de penetrar naquele recinto.
     Era também nesta sala que, encostado à parede ocidental, se erguia um gigantesco relógio de ébano. O seu pêndulo oscilava com um som lúgubre, pesado, monótono; e, quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do mostrador, e a hora batia, saía dos pulmões de bronze do relógio um som nítido, forte e profundo e extraordinariamente musical, mas de um timbre e de uma ênfase tão singulares, que, a cada hora que batia, os músicos da orquestra eram obrigados a parar, momentaneamente, para escutarem o estranho som; e desse modo quem andava valsando cessava forçosamente as suas evoluções. Todo aquele alegre bulício se retraia e perturbava por uns momentos; e enquanto soavam as badaladas do relógio, notava-se que os mais arrebatados empalideciam, e os mais idosos e calmos passavam as mãos pelas frontes, como se de súbito se abismassem em confusa meditação ou absorto cismar.
     Quando, porém, se apagavam os ecos importunos, imediatamente retumbava por toda a sala uma estridente gargalhada; os músicos olhavam uns para os outros e sorriam, como se deles próprios, do seu nervosismo e da sua insensatez, sorrissem, e juravam uns aos outros que o badalar seguinte do relógio os deixaria absolutamente indiferentes; mas, passados sessenta minutos (que abrangem três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa) o relógio batia de novo as suas badaladas sinistras, e produzia-se a mesma estupefação, o mesmo nervosismo e a mesma meditação que anteriormente.
     Apesar de tudo isto, porém, a festa decorria alegre e magnífica. Os gostos do Príncipe eram sem par. Tinha um olho apuradíssimo para cores e efeitos. Desdenhava as meras sugestões da moda. Os seus pianos eram arrojados, vibrantes de estro e de fogo. Havia quem o considerasse doido. Os que mais com ele privavam sentiam que o não era. Era necessário ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para se ter a certeza de que o Príncipe não era doido.
     Ele próprio dirigira, em grande parte, as ornamentações das sete salas, por ocasião desta grande festa; e fora o seu gosto que dera caráter aos mascarados. Fiquem certos de que eram grotescos. Havia cintilações, refulgências, mordacidades e fantasmas — muito do que depois se viu no Hernani. Havia muita coisa bela, muita coisa frívola, muita coisa extravagante, alguma coisa terrível e não pouco daquilo que poderia suscitar asco ou tédio. Para um lado e para outro, nas sete salas, deambulava uma multidão de sonhos. E estes — os sonhos — entravam e saíam, como que torcendo-se, revestindo-se da cor das salas, e fazendo com que a desaustinada música da orquestra parecesse como que o eco dos seus passos.
     De repente, ouve-se o badalar do relógio de ébano da sala de veludo negro. E então, por um momento, tudo se queda em silêncio, todas as vozes se calam, menos a voz do relógio. Os sonhos estacam, como que gelados, no sítio onde estão. Mas os ecos das badaladas apagam-se prestes — duraram apenas um instante — e uma álacre gargalhada adeja pelas salas. E de novo voam pelo ambiente as vibrações da música, os sonhos voltam à vida e entram e saem, mexem-se e contorcem-se mais jovialmente do que antes, revestindo-se das cores dos vitrais por onde se coam as fulgurações das trípodes.
     Mas na sala que fica mais a oeste, na sala forrada de negro, é que nenhum dos mascarados se abalança agora a penetrar; pois a noite vai já muito alta, e é de um rubro mais carregado a luz que dos vitrais cor de sangue agora cai; o negrume dos estofos aterra; e para aquele que pisa o tapete de veludo negro tem o relógio de ébano uma pancada surda, mais solenemente enfática do que as que ferem os ouvidos daqueles que se comprazem nas mais remotas folganças das outras salas.
     As outras salas estavam densamente concorridas e nelas palpitava febrilmente o coração da vida. A orgia prosseguia delirantemente como o redemoinho de um turbilhão, até que o relógio começou a bater compassadamente a meia-noite. Parou a música, como acima disse; cessaram os rodopios das valsas; extinguiram-se todos os ruídos; houve, como das outras vezes, uma inquieta paralisação de tudo.
     Agora, porém, eram doze as badaladas que o relógio devia vibrar; e, assim, aconteceu que, sendo mais largo o lapso de tempo, mais demoradas e profundas foram, decerto, as meditações em que se abismaram os que foliavam. E, foi por isso, talvez, que, antes de se apagarem os ecos da última badalada, muitas pessoas da turba foliona tiveram ensejo de dar pela presença de um mascarado que até aí a atenção de ninguém atraíra. E, como logo de boca em boca se divulgasse a surpreendente nova, de toda a assistência se ergueu um zunzum, um murmúrio expressivo de repúdio e surpresa — e, por fim, de pasmo, de horror e de asco.
     Numa assembleia de fantasmas como aquela que descrevi, é lícito supor que nenhuma aparição banal daria causa a tamanha excitação. Na verdade, quase não tinha limites a liberdade de que, naquela noite, fruía cada mascarado; não havia peias que detivessem a fantasia de cada um; mas o mascarado em questão excedera tudo o que se poderia conceber e transpusera mesmo as indefinidas barreiras do decoro do Príncipe. Há cordas nos corações dos mais afoitos que se não podem desferir sem emoção. Mesmo para os homens absolutamente perdidos, para quem a vida e a morte são igualmente gracejos, há coisas com que se não pode brincar.
     Toda aquela gente, efetivamente, parecia agora sentir profundamente que no trajo e no porte do intruso nem havia espírito nem propriedade. Era alto e magro e embrulhava-se, da cabeça aos pés, numa mortalha funerária. A máscara que lhe ocultava a cara tinha as feições rígidas de um cadáver, imitadas com tal perfeição, que o mais atento exame teria dificuldade em perceber o logro. E, todavia, tudo isto podia ter sido admitido, se não aprovado, pelos loucos foliões que se aglomeravam nas salas. O mascarado, porém, levara o seu atrevimento até o ponto de assumir a forma e o tipo da Morte Vermelha! A mortalha que o envolvia estava pintalgada de sangue — e a sua ampla fronte, tal qual como a cara, estava toda salpicada com o horror escarlate.
     Quando os olhos do Príncipe Próspero deram com esta figura espectral (que com um movimento lento e solene, como que para mais realce dar ao seu papel, passeava por entre os valsantes), acometeu-o, de súbito, um violento tremor convulso, de terror ou de enfado; mas, passado um momento, as faces coraram-se-lhe de raiva.

— Quem ousa? — perguntou, em voz rouca, aos cortesãos que o rodeavam. — Quem ousa insultar-nos com esta blasfema zombaria? Agarrem-no e desmascarem-no, para nós sabermos quem havemos de enforcar, ao raiar da alva, nas ameias do palácio!

     Estava o Príncipe Próspero na sala azul ao proferir estas palavras. Elas ressoaram pelas sete salas em voz vibrante e nítida — pois o Príncipe era audaz e robusto, e a música calara-se a um aceno da sua mão.
     O Príncipe achava-se, como disse, na sala azul, rodeado por um grupo de pálidos cortesãos. A princípio, quando ele falou, os presentes fizeram uma leve menção de se atirarem ao intruso, que, nesse momento, se achava muito perto e agora, com passo resoluto e firme, se aproximara mais do Príncipe.
     Mas, por uma espécie de terror inominado que as macabras atitudes do mascarado infundiram em todos os circunstantes, não houve um só que se atrevesse a lançar-lhe a mão; de modo que pôde, à sua vontade, passar a menos de um metro da pessoa do Príncipe; e, enquanto todos, obedecendo a um só impulso, recuavam para junto das paredes, ele seguia ininterruptamente o seu caminho, com o mesmo passo solene e cadenciado que desde o princípio o distinguira: passou da sala azul para a purpúrea — da purpúrea para a verde — da verde para a cor de laranja — desta para a branca — e desta para a roxa, sem que o mínimo gesto o detivesse.
     Foi então que o Príncipe Próspero, louco de cólera e de vergonha da sua momentânea cobardia, se precipitou em desabalada correria através das seis salas; nenhum dos seus amigos o seguiu, em virtude do terror mortal que deles todos se apoderara. Brandia no ar um punhal, e havia chegado, no ímpeto da perseguição, até cerca de um metro do fugitivo quando este, havendo atingido o extremo da sala de veludo negro, parou de repente e fez frente ao seu perseguidor.
     Ouviu-se um agudo grito — e o punhal caiu, cintilando, no tapete negro, sobre o qual, um instante depois, tombava, prostrado de morte, o Príncipe Próspero...
     Então, acicatados pela desvairada coragem do desespero, os cortesãos irromperam em tropel pela sala negra, e, agarrando o mascarado, cujo alto vulto se quedara, ereto e imóvel, na sombra do relógio de ébano, arquejaram de inexprimível horror ao verificarem que, por baixo da lúgubre mortalha e da macabra máscara que seguravam com violenta sanha, nenhuma forma tangível se encontrava!...
     Reconheceu-se então a presença da Morte Vermelha. Entrara de noite, como um ladrão. E um a um, todos os foliões caíram mortos nas salas, orvalhadas de sangue, onde tumultuara a sua orgia. E a vida do relógio de ébano terminou quando o último exalou o seu suspiro derradeiro. Apagaram-se as chamas das trípodes. E as trevas, as ruínas e a Morte Vermelha firmaram sobre tudo o seu domínio ilimitado...

continua na página 388...
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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